29 dezembro, 2006


CLASSIFICADOS
(Hoje no «Mil Folhas» do Público)

Para muitos será no mínimo estranha, talvez mesmo escandalosa, esta existência paredes-meias, nas páginas de um jornal. A morte e a vida. Os velhos e as novas. As cruzes e os corpos. Poderá ser estranha para olhos de hoje, mas na realidade é ancestral e intrínseca ao Vivo, nem promíscua nem obscena. A vida – a totalidade do que está aí e acontece no mundo – nunca é obscena. Obscenos são a injustiça, a hipocrisia da política, a guerra, o kitsch e o mau gosto em tudo aquilo a que falta qualquer réstia de beleza. Ali, nas páginas de um jornal diário, em natural sequência, a austeridade negra da necrologia e o eufemismo furtacores das mensagens e massagens da secção do «Relax», chocam-se apenas como se tocam os opostos, os limites extremados de uma única realidade. Para ligar as pontas e dar a ver o espectro total da existência no que de mais radicalmente vivo a constitui. Para mostrar a sustentável unidade entre Eros e Tanatos, numa espécie de grande elegia profana, burguesa e moderna (nas grandes elegias eróticas dos Antigos, como ainda nas Elegias Romanas de Goethe, a morte é uma presença natural e quase tranquila).
Leio a secção dos «Classificados» no Diário de Notícias. Leio mesmo, e mais do que um dia, porque me interessam hoje, estranhamente ou não, os conteúdos destas páginas, a sua escrita, os seus efeitos de estilo, as suas flores de retórica. Quem morreu e é objecto de «últimas homenagens» no jornal. Quem está vivo (melhor: viva, já que, por enquanto, o objecto dos anúncios destas páginas são apenas mulheres) e oferece o corpo. Não há choque nem escândalo nesta aproximação. Não imagino estas secções juntas com as do imobiliário, do emprego e dos automóveis, matéria corriqueira e sinal exterior de riqueza, sem a mínima afinidade com as «últimas coisas», puras realidades metafísicas, como são a Morte e o Sexo. O sexo: eterno retorno de pequenas e intensas mortes. A morte: inevitável passagem, serena ou dolorosa, que transporta para o Nada. Neste quadro não há lugar para a doença, essa sim, a grande obscenidade da natureza.


Sexo e morte sempre foram pilares inseparáveis da grande literatura desde os Antigos, e não apenas da escrita do erotismo – que, naturalmente, não se confunde com a dos pequenos prazeres de cama, mesa e roupa lavada, muito menos com a do kitsch sexual porno-mediático-sentimental hoje dominante. É a distância que vai de Homero, Henry Miller ou Bataille ao romance burguês mais caseiro ou aos seus simulacros actuais, em «escritoras» de classe média que transformam em matéria narrativa, anódina e sempre igual, rasteira e confessional, vivências de mulherzinhas mal-amadas ou de executivas dominadoras.
Nas páginas de anúncios não se encontra nada disto: são claras nos seus desígnios, graves ou borbulhantes, o seu discurso vive da respeitável frase feita e do sólido substantivo, ou então do colorido do adjectivo, da hipérbole superlativa, do chamariz do diminutivo («loirinha, meiguinha, gordinha"), da força viva do pormenor, da excitação da promessa. Escrita limpa e saudável, previsível e sem culpa (todo o romance burguês, que não abdica de ser espelho de uma vida limitada, carrega consigo um compexo de culpa que não pode ter grandeza trágica, e esta é uma das grandes perdas de toda a modernidade, ainda nossa). Aqui, nestas páginas estilisticamente marcadas, enquanto a da necrologia fala com circunspecção do que foi, a do «relax-mensagens» anuncia festivamente o que será, com as suas miragens de «deusas do prazer», «lindonas sensuais», «baronesas mestradas em dominação», «arrebatadoras cabritinhas» e – momentos altamente enigmáticos em páginas como estas – «Brunas (ou outras), 18 anos, primeira vez»!
As páginas da morte e do sexo deslocaram-se também já para a Internet, como seria de esperar. Um jornal do Centro oferece desde há algum tempo a necrologia em formato PDF, um blogueiro comenta o que designa de «necrologia suave», expressão não desprovida de sentido, nem chocante, já que o comentário distingue argutamente entre a necrologia suave de um Eça que se morreu e a violenta de um Camilo que se matou – o que me leva a regressar à tradicional página de jornal para constatar que, neste nosso mundo cada vez mais socialmente correcto ninguém ousa lembrar a morte livre de um suicida (porque a «deontologia» o não permite? Porque neste campo santo de papel não cabem, como nos de terra cristã, aqueles que ousaram «pôr a mão em si», como diz a forte expressão alemã?).
Por outro lado, essa mesma página admite sem problemas ser usada para inconfessáveis fins promocionais, num aproveitamento, esse sim, obsceno, da morte de personalidades de destaque (mais local do que nacional), para daí retirar dividendos político-financeiros: aconteceu há bem pouco tempo com a morte do pai de um conhecido autarca do Norte, que encheu as páginas de necrologia de um jornal com «sentidas» mensagens. No discurso apelativo, dirigido aos sentimentos e aos sentidos, das páginas da morte e do sexo, imiscui-se hoje o próprio discurso publicitário, essa inesgotável fonte de renovação da retórica da língua, húmus criativo como poucos, e como poucos agressivamente (de)formador das consciências. Nas páginas de necrologia, uma boa parte do espaço é ocupada pelos anúncios das agências funerárias e da própria associação do sector, que informam sobre os princípios pelos quais se devem reger os seus profissionais, exigindo e prometendo «Ética, Confiança, Dignidade, Humanidade, Qualidade, Profissionalismo», tudo em maiúsculas, como convém a uma indústria de pompes funèbres. No espaço de Eros, e para preencher o rodapé livre da página, dou com o anúncio do próprio jornal a promover os seus «Classificados», que, com o slogan publicitário escolhido, parece querer ir direito ao essencial e ser uma resposta clara, simples e directa às floridas mensagens verbais e visuais que ornamentam a página. Diz apenas (apelando ao envio de anúncios por SMS): «Resolva tudo com um dedo!»
Golpe de génio do «criativo» que inventou o anúncio!

27 dezembro, 2006


OS DILEMAS DO PODER

«Um rei que pára para olhar para si é um homem desgraçado». A frase, de Pascal, é aplicada por Walter Benjamin ao príncipe do drama barroco. E quer significar que o homo politicus está condenado, faça o que fizer. Preso por ter cão e preso por não ter, está condenado à fuga para a frente, ou à imobilidade fatal. Não pode parar para olhar para si, para o que é – mas ele nunca é, serve sempre qualquer fim – e para o que fez, sob pena de ter de se suicidar; e se pára, caindo na melancolia, contradiz o seu papel no mundo, e cai na loucura (mas os políticos, pelo menos hoje, nunca enlouquecem, porque nunca param).


Todo o político, hoje também, é presa do «demónio dos opostos», da dialéctica de Saturno. Mas as coisas mudaram, também neste campo. No espaço desta dialéctica, entre a indolência acidiosa e a força da inteligência na contemplação, se desenrola a história da melancolia do soberano no ancien régime, conclui Benjamin. Hoje, não há qualquer relação entre política e melancolia. O alibi democrático e a cegueira do «progresso» libertam o político para a irresponsabilidade, para a não necessidade de saber (própria da contemplação melancólica): o que ele tem de fazer é apenas «realizar obra» e preparar as próximas eleições. E não lhe faltam bobos, dentro e fora da corte, para o distrair e evitar se desgrace, que o mesmo é dizer: que olhe para si.

24 dezembro, 2006


OS ANJOS DE GIOTTO

(que recebi hoje, entre uma profusão barroca de imagens, de c.c.s.c.)

Parecem artistas de circo, ou paraquedistas em queda livre! São dez, cada um seu estilo e sua pose_____________ anjo-acrobata, anjo-contemplativo, anjo-ginasta, anjo-turbo, anjo-mergulhador, anjo-surfer... Os céus – um mar, uma onda havaiana, uma pista de neve azul – são o lugar de uma agitação tumultuada, prenunciando grandes mudanças cósmicas no momento da deposição de Cristo no túmulo________________ Ou talvez o espaço de júbilo, ludus angelical quase infantil, gerado por uma presciência da ressuscitação...



É deles toda a metade superior da composição, céu e terra em equilíbrio vibrátil, e é neles que se concentra desde logo a atenção do observador. Em baixo, mulheres e discípulos, e a morte que é uma festa e a esperança a incubar na gema de ovo de cada auréola________________
Quasi un scherzo musicale_______________

20 dezembro, 2006

A ESPERA

Parou há dias a escrita. Suspenderam-se as imagens. E ainda será assim por algum tempo, até regressar em pleno, espero, a pulsão do verbo. Por agora, o investimento é todo físico e libidinal. De corpo afectante e afectado. A altura dos afectos, a potência de agir total, sobrepõe-se à rasura das afecções parciais. O real mais fechado do intelecto, que tem na palavra o seu veículo privilegiado, deu lugar a uma realidade amplificada e nova, não alegre, mas humana, a uma forma particular de júbilo que nasce da convivência com a dor que lentamente cede à força anímica e vital de um corpo acompanhado de outros corpos.
Para esta nova realidade, feita de afectos activos, a contenção (con-tensão) intensa da imagem é, ainda assim, janela mais adequada. Até que as águas deste rio de escrita voltem a correr, ficam apenas três imagens, roubadas não sei de onde:

o fio da lágrima, agora já seca, que vi no rosto da V.,



o Tigre reencontrado para a Emily



e a réstia de sol entrando pela janela da MG, que lentamente volta a abrir as portadas da alma.



E ainda: um sorriso sereno e interior para a Albertina, anjo nocturno destes dias:



(E no próximo encontro esperado dos diversos, este lápis será teu!):

12 dezembro, 2006

A DOR E A VOZ

Mais um caderno, ainda de 1999, que contém apenas matéria relativa a duas intervenções então feitas: sobre o poeta «popular» António Aleixo e o lugar da dor na sua poesia, num colóquio em Loulé; e sobre a «voz» que fala no texto traduzido, neste caso uma intervenção em alemão (e aqui fica um fragmento na língua original, para quem o possa ler) na Universidade Católica.



Aleixo: «A dor também faz cantar...»

... a poesia cria espaços em que a dor é, não excluída, não travestizada nem espectralizada (como acontece nas sociedades de hoje), mas serena ou violentamente convocada, e a arte mostra então como ela é uma parcela inalienável da condição humana. Como quase sempre, é a arte, e não a sociedade, a revelar essa consciência. Aceitando o desafio do abandono dos deuses como fonte da dor, o poeta coloca-se acima deles e fala «sobre a escassez, escombros (Maria Velho da Costa, Dores), «cantar, cantar e arranhar / a velha cicatriz» (Casimiro de Brito O Livro das Quedas, Roma Editora, 2005) ou «a torpe sociedade onde nasci» (Aleixo), num tempo que parece ter alguma dificuldade em entender que a dor é necessária «neste nosso mundo que se arrisca a afogar-se numa maré de instruções para ser feliz» (como escrevia, já em 1983, o psiquiatra Paul Watzlawick no curioso livrinho Instruções para se ser infeliz).



Também um dos poemas minimais de António Osório (agora reeditado numa selecção da sua poesia pela Assírio & Alvim: Casa das Sementes. Poesia escolhida) diz: «O tempo não deseja ser feliz. / Por isso nós o seguimos.».


Aleixo, esse foi construindo com os seus versos um roteiro da sua própria infelicidade e da miséria dos tempos. Hoje, os novos mandarins da sociedade do consumo e dos «big shows» não nos deixam ser infelizes, não nos deixam fumar nem beber, no fundo não querem deixar-nos fazer o amor livremente. Esquecem, ou nunca souberam, que o indivíduo tem direito a gozar a sua solidão, ou a construir a sua própria infelicidade. Que mais não seja, para não ir na onde. Como um dos meus autores preferidos, Pascal Quignard, autor de «pequenos tratados» nem sempre jubilosos, e que também não vai certamente na onda:
«A minha vida, se tivesse dependido da felicidade e do reconhecimento, teria sido privada dos únicos valores que eu lhe atribuí: a imprevisibilidade dos dias, a violência da alma, os desejos que se mantêm à margem do mundo, o irromper da linguagem silenciosa, a independência rude, região mais ciosa de si, e ainda mais susceptível e mais inacessível do que a liberdade.» (Rhétorique spéculative, 1997). Aleixo – que, na verdade, nunca chegou a ser um homem livre – foi também um espírito de «independência rude» que não comprou a felicidade com ilusões.


Die dritte Stimme

Die Frage nach der Übersetzung ist heute für mich die Frage nach der Stimme, besser: den Stimmen, die in der Übersetzung gehört werden können. Anders ausgedrückt: Wer, oder Was, spricht im übersetzten Text, einem Text, dessen Beschaffenheit sich meines Erachtens über das hergebrachte Begriffspaar Identität-Alterität nicht mehr bestimmen läßt. Bei Paul Ricoeur (in Soi-même comme un autre, Paris. Seuil 1990) finden wir einen dritten Begriff, den der "Ipseität", den ich für die Bestimmung der sprachlichen Besonderheit des übersetzten Textes angemessener finde. Die Stimme, die in der Übersetzung hörbar wird, kann natürlich nicht die des Originals sein (Benjamin sagt: höchstens ein Echo davon), aber sie ist auch nicht die der Originalwerke der Zielsprache (nicht einmal wenn der Autor-Übersetzer, wie die herrschende Praxis in Portugal seit dem 19. Jahrhundert zeigt, den Anderen völlig an sich assimiliert und ihn "domestiziert"). Schon Goethe hebt diese Sonderstellung der Sprache von übersetzten Werken und ihren oft innovativen Charakter hervor, wenn er in den "Noten" zum Divan von einem "Dritten" spricht.


Der Übersetzer ist somit, um noch mit Ricoeur zu sprechen, ein vom Anderen affiziertes - ich scheue nicht zu sagen: inffiziertes - Ich, oder, wie dieser französische Philosoph sagen würde, ein Selbst, das den Anderen von vornherein in sich trägt (Soi-même comme /= en tant que/ un Autre; Deutsch: Das Selbst als ein Anderes, oder, bei Goethe, "eins an der Stelle des Anderen", und nicht “an seiner statt”). Diese dritte Stimme habe ich woanders (nun an den genetisch-performativen Aspekt des Problems denkend) als "das vielfältige, mehrschichtige Gedächtnis meiner Muttersprache und ihrer poetischen Tradition" definiert, und sie näher bestimmt als den verfügbaren Fundus (Wittgenstein sprach von einem "Werkzeugkasten") von alledem, was ich davon bewußt und unbewußt mit mir herumtrage. Wer in der Rolle des Übersetzers schreibt, teilt sich zwischen dem Appell des Anderen und der Suche nach verborgenen, oft verschütteten Schichten seiner eigenen Sprache und Literatur, jenseits dessen, was die Gemeinsprache oder jene sinnlose Abstraktion der Sprache schlechthin zu bieten haben. Die geteilte Stimme des Übersetzers wäre in diesem Sinne eine "vaterlandslose Sprache" (wie ein junger portugiesischer Autor es sieht), was jedoch nicht heißt, daß sie ohne Muttersprache dasteht, sondern, daß sie bereits eine Reife erreicht hat, die es ihr erlaubt, ohne sie auszukommen, um sich frei von den Zwängen und Einengungen der Gemeinsprache, vom grammatikalischen Nomos entfalten zu können. In dieser dritten Stimme hallt dann, sowohl das aus dem Anderen kommende fremdartige Sprach- und Kulturgut, als auch jenes "unendliche Rauschen", das, laut Maurice Blanchot, sich unter dem gemeinen Wort öffnet und eine unerschöpfliche Quelle zu sein scheint. Es enthält, virtuell, die Totalität des latenten, auf eine Form wartenden Textes der Übersetzung: Wort und Buchstabe, Metrik und Rhythmik, Geschichte und kulturelle Bezüge, Schweigen und Atmen der Rede... Folgt man dieser performativen Auffassung der Sprache im Prozeß der Übersetzung, dann wird das Wort, der Logos (wie in Fausts Übersetzungsmonolog) zur Tat: etwas wird zwischen zwei Sprachen aktiviert (Benjamin, Rosenzweig oder Derrida würden hier hinzufügen: mit Blick auf eine drittletzte, reine Sprache, so etwas wie Goethes “Urphänomen” im Bereich des Sprachlichen); etwas, ein Drittes, mischt sich ein.

09 dezembro, 2006

CADA OBRA UMA MÓNADA

Só mais de dois meses depois de concluída a tradução do primeiro volume das Obras Escolhidas de Benjamin retomei o trabalho da edição (na parte do Comentário) e este diário. Houve razões de peso para a interrupção. A amizade, a entrega a outros ou a causas em que se acredita, são razões mais do que suficientes para deixarmos de olhar para o espelho, para nos tomarmos pelo centro do universo, esquecendo que há mais mundo.


O comentário do primeiro volume progredia, e entretanto li, com outros olhos e mais atenção do que tinha feito antes, o posfácio dos responsáveis da edição crítica alemã. E na primeira página encontro a justificação para o aparecimento tardio desta edição portuguesa. Esta aparece – como aconteceu com a edição crítica original quando começou a sair em 1974 – para que se possa finalmente, em português, passar do «mero tactear no escuro» para o «passo seguro de uma ciência» na leitura dos textos e do aparato que os ilumina. A edição não ambiciona mais do que isso – e não é pouco.
Extraio ainda desse posfácio, sóbrio e rigoroso, duas ideias que servem à edição portuguesa em curso:
1. «Também no que à edição diz respeito, cada obra de Benjamin é, no sentido que ele deu ao termo, uma mónada». Isto é: tem uma autonomia que não permite o recurso a critérios rigidamente uniformes.
2. «A forma de um texto é tangencial à sua interpretação». Isto aplica-se, e muito, à tradução do texto e do aparato conceptual de Walter Benjamin, e é mais um argumento válido para a ausência de grandes ensaios de interpretação, de algum modo supérfluos quando o que se pretende é deixar falar os textos e a sua história.
Em cima: Manuscrito de W. B.


O PARAÍSO PERDIDO

Lição do Barroco (e das suas alegorias) para a arte moderna: «é preciso desmembrar o orgânico para recolher dos seus estilhaços a sua verdadeira significação, fixa e escritural» (W. Benjamin).


É o que está ainda a acontecer hoje com a presença do corpo na arte (mas refazendo agora o caminho em sentido inverso): os estilhaços produzidos pelos Modernos reintegram-se em construções híbridas que parecem querer desmentir a ideia da «naturalidade» constitutiva do corpo, e afirmar a outra, a da sua natureza mecânica e de uma vocação «construtivista» – que estão também já na rigidez e na dispersão dos objectos alegóricos do Barroco e nos autómatos do Romantismo. Kleist vem dizer, em Sobre o teatro de marionetas, que o paraíso está perdido para sempre, e que a arte só momentaneamente, pela porta do inconsciente, espreita lá para dentro.

07 dezembro, 2006



PRAZERES

Estamos em 1999. Por esses anos, e até há pouco tempo, planeei e fiz, com Casimiro de Brito, muitos «Jornais Falados da Actualidade Literária» do PEN Clube, no Acarte da Fundação Gulbenkian e por esse país fora. Aquele ano fechou com uma sessão que intitulei simplesmente «Prazeres». O tema era e continua a ser actual. Vivemos numa época de hedonismo, num tempo que esqueceu o lado sério e mesmo trágico de décadas de história infeliz da Europa, um tempo que procura gostar de si, viver-se, fruir-se – apesar dos pesadelos e dos desassossegos, da Sida e das guerras fomentadas, da fome no mundo. Gozamos os nossos prazeres, talvez merecidos depois de décadas de ditaduras e guerras, à custa da miséria de outros mundos. Mas o prazer, os prazeres do corpo e os do espírito, são qualquer coisa de inalienável na natureza humana; nisto, somos e sempre fomos incorrigíveis, e é bom que assim seja, sobretudo se isso acontecer «com alguma espontaneidade, sem barulho, sem ostentação», como escrevia Alfredo Saramago num dos livros então apresentados (Os Prazeres de Alfredo Saramago, da Assírio & Alvim).



Das minhas notas saltam algumas que colocam questões que continuam vivas. Continuamos numa época de livros de culto e de fetichismo. Os vinhos, a gastronomia, os charutos, os carros... Cresceu nos últimos anos – porquê? Porque precisamos de contrapôr o culto do «autêntico» à descaracterização trazida pela globalização? Porque não sabemos o que fazer com o nosso tempo e o nosso tédio, e nos voltamos para certos prazeres radicais, estranhos prazeres que moem, são perigosos e saem caros?
Os prazeres arrumam-se, como sugeria Alfredo Saramago? Há necessidade disso? Arrumá-los é atribuir-lhes um lugar próprio nas nossas vidas? Somos nós a descobrir os prazeres, ou são eles que nos descobrem? Por onde passa a linha divisória entre os prazeres e as modas? Há prazeres que não são certamente modas, entre eles os da mesa, tão generosamente presentes na bela edição A Viagem dos Sabores, viagem alargada no espaço (o orbe inteiro) e do tempo, cobrindo aspectos práticos e simbólicos da comida, percorrendo os caminhos do interdito, do permitido e do culturalmente comum nessa arte da cozinha que é também uma leitura do mundo. E que convoca, como talvez nenhuma outra, os instrumentos do prazer que são os sentidos (todos), estabelecendo correspondências entre o físico (o corpo) e o cósmico (deste e de outros prazeres e artes fala também, em tom de surdina desolada crescendo progressivamente para o jubiloso, o texto que fecha o meu livro acabado de sair, com o título A Escala do Meu Mundo, na Assírio & Alvim).



Depois, há entre os prazeres inatos os do erotismo e da maledicência, pulsões das mais fortes da humanidade. E por fim os gostos – esses discutem-se, mas essa seria uma longa história, pelo que encerro as reminiscências por aqui...

06 dezembro, 2006



A FORÇA DO OBSCURO

Benjamin lembra que o teatro jesuíta do século XVII, escrito e representado em latim, era visto também por um público que não sabia latim. Porque «a autoridade de uma afirmação depende tão pouco da sua inteligibilidade que pode sair reforçada se for obscura». Esta relação entre autoridade e inteligibilidade funciona também hoje, nomeadamente na esfera do discurso político: numa época em que só conta a imagem e o espectáculo, o público ensurdeceu, não ouve se o que lhe dizem tem ou não sentido e fundamento. Só é preciso «saber estar», «ter estilo» e «boa imagem» (ao que se diz, Durão Barroso aprendeu a «saber estar», e isso só lhe pode trazer dividendos eleitorais; e Marco Paulo, essa coisa de quem se diz que atrai multidões, «tem estilo na voz», como dizia a D. Suzete que me alugava uma casa no Verão).

J. B., Diário para W. B.

Na arte que acaba por vingar, seja ela de que tipo for, é ao contrário: a aparente ininteligibilidade está carregada de significação, mas não quer ser ou ter autoridade (nem aquela que decorre de haver por detrás de cada obra um «autor»: também essa autoridade desaparece a partir do momento em que a obra se expõe). A autoridade da arte é o seu mistério, aquele resto que desafia o olhar e o pensamento.
Mas talvez se possa dizer – como Benjamin também anota e desenvolve a propósito da linguagem do drama barroco – que ambas, a política e a arte, tendem para a música: a primeira, para embalar o eleitor, a segunda, para (e)levar o leitor/espectador para lá da pesadez do sentido (na linguagem: do empecilho da dupla articulação do signo), ao encontro de um encontro «natural» com o corpo, como nas «origens» (as duas formas mais naturais desse encontro são o nascimento e a morte).



Num caso como no outro, o discurso adormeceu as faculdades mais racionais, a vontade de conhecimento, para envolver a percepção numa névoa intuitiva. Na visão alegórica, porém, a palavra escrita ou a imagem isolada perfilam-se com invulgar nitidez. Se virmos as coisas do ponto de vista de uma teoria da linguagem como a do físico romântico Ritter, em que a palavra, e mesmo a letra, são projecções naturais e necessárias de uma vida das coisas, se pensarmos que elas são também imagem, e como tal «assinatura, monograma da essência» (como toda a imagem «escrita»), estamos no cerne da visão alegórica. Aí, pelo menos no drama do Barroco e do Romantismo, arte e discurso político encontram-se na sua intencionalidade comum: projectar o homem comum para lá dos limites do senso comum e da razão prática. Nisto, o discurso político participa do teológico (é a linguagem dos milagres que não acontecerão), e a arte é sempre a expressão do paradoxo (linguagem destinada a abrir-se e a abrir, mas que, por imposições intrínsecas da expressão, se fecha nos seus mais fundos arcanos).



QUEM SOMOS? QUEM NOS FAZ?

Dei há anos uma entrevista à TSF, daquelas em que se espera que ponhamos a nu a nossa vida, não a privada, mas a interior, intelectual, mais ou menos pública. O jornalista pedia-me que falasse de mim. Sou péssimo observador de mim próprio, não costumo parar muito para olhar para trás e ver o que fiz ou deixei de fazer. Acredito que muito do que se faz acontece por força das circunstâncias e dos apelos das nossas vidas. E foi isso que disse: o que fiz, o que sou, o que li, são resultado disso – dos outros e das contingências. Algumas notas neste caderno dão conta dessa conversa:



E eu próprio, que papel assumo no meio dessa história? Fui um gestor, talvez nem sempre hábil, mas empenhado, desses chamamentos. Definir objectivos estreitos, saber a cada momento o que se quer ou julga querer não deixa qualquer margem de imprevisibilidade a uma vida. Há uma longa balada de Brecht que ensina isto: a «Lenda da origem do Livro do Taoteking quando Laotse ia a caminho da emigração». O sábio chinês dita o célebre Livro do Caminho como resposta às perguntas do guarda de fronteira. A sabedoria – com as devidas distâncias – nasce porque alguém quer saber.



Perguntava-me ainda o jornalista – pergunta sacramental – pelos «livros da minha vida». Pergunta sem resposta para quem lê em permanência e se transforma permanentemente com o que lê. Um livro só raramente muda a vida de uma pessoa. Muitos sim, e no tempo, na duração de uma vida. Há demasiados livros para que nos possamos aperceber do que cada um deles nos deu. Não tenho livro de cabeceira. Se alguns livros nos marcam, esses são muitas vezes os da adolescência e juventude, quando lemos mais abertos e disponíveis, sem rede. Depois, ganhamos cada vez mais defesas e aprendemos cada vez mais truques. Nem sempre são os «melhores» os que ficam, são os inaugurais, que nos marcam e revelam a nós próprios. Mais tarde, somos nós que marcamos os livros, quero dizer, usamo-los, reduzimo-los à dimensão dos nossos interesses, metemos neles os nossos fantasmas já instalados (muitos dos quais recebemos dos livros!), consolamo-nos com eles, revemo-nos neles. É um pouco como na relação com as pessoas: somos moldados cedo, por pais, professores, padres, Mocidade Portuguesa ou Juventude Comunista, Escuteiros... Depois, a experiência abre um leque de possibilidades insuspeitadas, como acontece com amores e paixões, e deixamos de saber exactamente como as coisas se passam: há-os à primeira vista, de combustão em lume brando, os fogos de palha (que ateiam depressa e ardem pouco), as grandes pedradas, os de pedra e cal...
Foi disto que falei nessa entrevista, antes de me obrigarem a escolher livros e autores.

04 dezembro, 2006

ENSAIO GERAL DO ENSAIO



Continuo a seguir o rasto dos meus cadernos. Deste nasceu, entre outras coisas, um ensaio sobre o ensaio, que pouca gente deve conhecer, e a que dei o título: «Geografia do acaso. Ensaio geral do ensaio». Transcrevo três ou quatro fragmentos:
«O ensaio faz-se a bordo dos dias. E a bordo dos livros, na leitura acidental, mais do que na dirigida. É sempre mais o tangencial que me leva ao centro, núcleo duro, pérola de ostra, nó de rizoma, ponto e ponte da fuga. E o ensaio expande-se, dissemina-se, constrói-se. Trabalha como a gisandra de Finisterra: pulula, mata, faz renascer.»




«Quando começa a configurar-se um ensaio, é uma dupla configuração que acontece: impõe-se-me a ideia, vislumbro-lhe o corpo (a forma). Mas desconheço a lei por que se rege. O ensaio é um género sem género, mas tem sexo(s) [...], não é neutro, mas andrógino. O seu princípio é o da contaminação, e não rejeita o incesto. Se nenhum género tem origens puras, estigmatizado que está, no nome mesmo (genos / genus) pelo sema (sémen) da gestação, o ensaio é, entre todos, aquele sobre o qual mais pesa esse pecado original. Traz consigo o estigma dos cruzamentos, da enxertia, pode ser mesmo um clone de laboratório, um coelho albino às riscas pretas, ou uma zebra sem elas (a imagem caiu-me literalmente nas mãos em plena génese deste ensaio, cruzando-o com outro, de experiências de escrita diversas, dos afectos aos textos e do corpo ao inefável). O ensaio é a ambiguidade consciente. A pureza, sente-a como violência, a sua lei é sempre mais a do hibridismo, da travestização genológica.»



«O ensaio é uma filologia do inútil. Numa daquelas pequenas e tristes «tábuas» de Alvarez (Chuva, como tinha de ser) há um magote de figuras, negras e tremidas, de chapéu de chuva, crianças pela mão, como quem lhes quer ensinar algum caminho. É claramente um grupo, um clã, que parece saber para onde vai, mas o quadro não mostra destinos visíveis: o ocre de fundo é um deserto. Num dos cantos, como que entrando em cena pela esquerda baixa, mas claramente à margem dela, um cão, vadio, por certo.
Numa leitura alegórica e arbitrária da tábua, eu diria que esse cão é o ensaísta, e que o magote que sabe para onde vai, mas não tem destino visível, é a abominável comunidade dos que... "sabem". Se há passo decidido e porte indiferente nesta cena, eles são sem dúvida os do cão. Só ele é livre.»



03 dezembro, 2006

A LIBERDADE DA MOSCA

«... admiro o poderoso impulso para a liberdade até na mosca que se debate». Benjamin cita esta frase da peça Julius von Tarent, de um autor, hoje esquecido, do século XVIII alemão, Johann Anton Leisewitz. Esse impulso é, de facto, mais forte na mosca do que em todas as vidas, cada vez mais frouxamente humanas e menos livres na ilusória liberdade das democracias formais, de sociedades em que tudo se compra e vende. E quem vive para comprar e vender não pode ser livre.

J.B., Páginas do Diário para W.B.

Comprar e vender é a actividade dos que perguntam «Quem sou eu?» (e respondem: «Sou o dinheiro que ganhar!»); quem não compra nem vende, está disponível para a «pergunta de homem livre», segundo Maria Gabriela Llansol. Essa é a pergunta que responde aos apelos do mundo dos Vivos e das coisas «sem interesse».
© J.B.

É a pergunta «Quem me chama?», o apelo da relação com outro, a que eu sou livre de responder ou não. Mas se a minha atenção recaiu nele, responder-lhe-ei.

© J.B.