30 novembro, 2014

O FIM DAS POSSIBILIDADES?


No passado dia 25, e no contexto da conferência organizada pelo Teatro Nacional de S. João, a minha intervenção, aqui reconstituída, sobre o ténue «perfil da esperança» deste nosso tempo... 
O pretexto foi a peça de Jean-Pierre Sarrazac (que também participou nas discussões) intitulada O Fim das Possibilidades. Uma fábula satânica, que estreará em Março de 2015 no S. João, encenada por Nuno Carinhas e Fernando Mora Ramos.


Pensei em várias formas possíveis para esta intervenção, do «ensaio falado» à colecção de aforismos para comentarmos, da reflexão sociológica (para que não estaria preparado) a um manifesto feito apenas de interrogações, ou talvez um manifesto surdo, kafkiano, como o do homem que fica anos sentado «À porta da Lei» sem nunca conseguir ter acesso a ela. Cheguei mesmo a pensar, dando por boa a sabedoria de Wittgenstein no final do Tratado Lógico-filosófico («Aquilo de que se não pode falar tem de se silenciar»), em assumir a pose – muito teatral, de resto – de responder com o silêncio ao ruído letal e insuportável deste tempo feito todo de propaganda (portanto oco, e perigoso). Poderia até ser um longo «silêncio falante/loquaz» como aquele de que falava já Hölderlin «em tempos de indigência» – se virmos bem, aqueles tempos que, há dois séculos, foram o berço onde nasceram os fundamentos de uma nova era que a breve trecho haveria de pôr à vista todos os males de que padece a civilização contemporânea, que parece ter chegado hoje ao auge dessa via catastrófica. E «a catástrofe» — escrevia Walter Benjamin nos anos trinta do século passado – «é as coisas estarem como estão.» Esses tempos – os do poeta – foram os da ascensão de classes burguesas que rapidamente deixaram para trás os seus ideais e que levaram ao nascimento de democracias entretanto apenas formais, à total mercantilização das existências, ao retrocesso actual para uma mentalidade inequivocamente fascizante, para a qual Brecht alertava logo no fim da última Guerra («Der Schoß ist fruchtbar noch / Aus dem das kroch» [É ainda fértil o seio / De onde essa coisa veio]).
Por isso, e apesar do eventual fascínio da intensidade teatral do silêncio, é preciso falar. E por falar entendo não apenas aquilo que estamos a fazer neste momento, como também aquilo que se escreve e é lido – ou dito em palco, como irá acontecer em breve com a peça de Jean-Pierre Sarrazac O Fim das Possibilidades. Porque é preciso dar testemunho, apontar o dedo, denunciar aqueles – os Com-rosto que conhecemos diariamente pelas televisões e os Sem-rosto que nunca veremos – que, como lembrava há tempos o filósofo José Gil numa crónica, «nos desapossaram do nosso presente». E com isto estamos já em pleno tema de fundo da peça de Sarrazac.

Em plano de fundo: Job | Fausto | J.B. | Deus | 'O Adversário'

Conversemos então, neste duplo palco (shakespeariano) onde se desenrola e onde podemos ver a grande e mísera parábola das nossas vidas aparentemente sem horizonte, numa época  paradoxalmente balizada, como lembrava há anos Michel Serres, por uma jamais vista potência de invenção, mas também por uma insaciável fome de formatação das consciências. Os dois palcos onde tudo isso se passa são o grande palco que é o mundo («the world is a stage», «el gran teatro del mundo»), onde nos sentimos hoje marionetas ou actores perdidos que já não sabem quais são os seus papéis; e – se aí couberem todos os desastres do mundo – o pequeno palco, «this wooden O», a arena de tábuas em que só a imaginação poderá apreender toda a escala do que (nos) está a acontecer – e uma vez mais não é apenas o Henrique V de Shakespeare que estou a evocar, antecipo a peça parabólica que é O Fim das Possibilidades: uma parábola do naufrágio com espectadores, na encruzilhada, a que assistimos no nosso dia a dia, inspirada no Livro de Job e no «Prólogo no céu» do Fausto de Goethe (que ecoa aqui literalmente), e que reflecte sobre o não-sentido de vidas que o não são, e sobre o sentido de possibilidade da morte livre como forma de afirmação da liberdade humana, que baralha os planos dos senhores do mundo e dos seus mandatários (isto se perceberá melhor quando virmos a peça).
Mas também se trata de uma grande parábola sobre a nossa condição histórica actual e os seus perigos, ou os fracassos dos seus desígnios, se houver quem resista, contradizendo o célebre aforismo de Adorno (em Minima Moralia, um livro de 1951) «não pode haver vida certa no meio da falsa». Há, ou pode haver, alguma vida certa no meio da falsa, e quantos mais forem os que se decidirem por «herdar as margens» (diria Maria Gabriela Llansol), pensando e agindo segundo esta última possibilidade, tanto maior será a probabilidade de evitar a vinda de novos «salvadores» e o total e final «desencantamento do mundo» (que o sociólogo Max Weber via já despontar há um século). O fim das possibilidades (ainda) não está à vista nesta nossa era do vazio, precisamente porque a certa altura ela se apresentou, ilusoriamente, como a era de todas as possibilidades, do anything goes, de um vale-tudo em tempos assumido como um dos grandes lemas do «pós-moderno». O mito da «pós-História» não se confirmará, e os seus próprios mentores, a começar pelo pai da ideia, Francis Fukuyama, já o reconheceram. O modelo que teria vindo ocupar o lugar de uma dialéctica viva da História, o da fatal desmemória, e consequente desprezo do Humano, que é o do capitalismo selvagem ultraliberal e da sua globalização hegemónica, pode estar aí para ficar, mas não será eterno. Todos os impérios tiveram a sua agonia. Há décadas que anda um novo espectro, não apenas pela Europa, como o do Manifesto Comunista de 1848, mas pelo mundo, e muito mais espectral do que o primeiro: o do reino de Mammon, o dinheiro, ainda e sempre, mas agora mais sem rosto e sem cheiro, e emanando de céus que desconhecemos. Os males do mundo – é o que podemos deduzir do prólogo da peça de Jean-Pierre Sarrazac – provêm desse céu infernal onde novos deuses desconhecidos gerem os nossos destinos – as vidas individuais de todos e cada um – através de testas-de-ferro (Satã, ou o Adversário) que dispõem estrategicamente por todo o planeta.

O reino de Mammon: o poder invisível

Como no Fausto de Goethe (também ele inspirado no Livro de Job), as nossas vidas e o nosso destino sobre esta Terra estão dependentes de uma aposta (hoje, de múltiplas apostas nesses antros de jogo ao mais alto nível que são as Bolsas de todo o mundo). Uma instância dominadora sem rosto (Deus não tem rosto nem nome, é simplesmente aquele/aquilo que é, exactamente como o capital anónimo!) faz uma aposta com um seu mandatário (Adversário, menos dele do que das criaturas humanas), para que este resolva, segundo as regras do sistema que ambos representam, e sem contemplações, as desgraças de Job (= a Multidão) ou de Fausto (que a si mesmo, na peça de Goethe, se vê também como «a humanidade») ou, na peça, do protagonista J.B. de seu nome. É todo um programa, e um negócio, social-democrata ultraliberal e ultra-radical! A «solução final» (!) desse gestor do mundo, uma espécie de CEO dos céus, e do seu acessor, um «executivo» que opera no terreno, é a que nós bem conhecemos: a das promessas (aqui, de reconversão do Inferno em Paraíso – lugar desinteressante e entediante, como sempre foram todos os paraísos), ou a da oferta (de um novo Eldorado – que se revela ser nada mais nada menos do que um campo, um novo gulag). Ambas se poderiam designar, com Jean Renoir, de A Grande Ilusão, que a nossa experiência já longa de eleitores confirma, ecoando as palavras do poeta alemão Jürgen Theobaldy já em 1976: «Estas eleições, dizia ele, / fazem-me sempre ver claramente / como vivemos: nunca / escolhemos aquilo / que realmente queremos, e sempre / ficamos com o que escolhemos...» E mais o Adversário e o seu mandante não têm para oferecer. Não há «plano B», nem de quem vem de cima (a quem o modelo único cegou), nem para quem está em baixo (que desaprendeu a acção radical e a revolução, porque lhe falta o incentivo maior: as grandes causas e um inimigo com rosto). E assim tudo tende para o fracasso: Deus desespera porque o seu «servo» (Job / Fausto / J.B.) pôs fim à vida sem Ele ser visto nem achado para aí; e Satã, o Adversário mais não é, afinal, do que um «pobre diabo» sem saídas nem imaginação (ele é, já no Fausto de Goethe, o «inimigo da luz», «o espírito que só sabe negar»; e assumirá esse estatuto de pobre diabo em vários Faustos do século XX, nomeadamente no Mon Faust de Paul Valéry); e os J. B. deste mundo, a Multidão, começam a acreditar que o mal está em nós – no conformismo e no pessimismo reinantes, ou na tendência fatídica para antecipar o apocalipse. Naturalmente que é o próprio Adversário quem prepara esse terreno e nos faz crer nisso: que somos seres de passado sem futuro, ou de um presente sem presença de vida. Homens-sombra, os «sem-rosto» da peça. Mortos sentados a uma mesa cada vez mais vazia, assente sobre areias movediças. É o que parece querer concluir a peça, ao ecoar o poema de Aragon «Est-ce ainsi que les hommes vivent?» (que conhecemos na voz de Léo Ferré) e o seu refrão:

On avait mis les morts à table
On faisait des châteuax de sable...
[Trouxémos os mortos para a ceia
Construímos castelos de areia...]

As possibilidades terão chegado ao fim? Na cena final, quase idílica, do banquete no jardim ecoam apenas como vozes quase inaudíveis aqueles que já tiveram corpo, a partir desse lugar utópico onde Satã/O Adversário faz as honras da mesa como mestre de cerimónias. Espectros num paraíso artificial onde tudo soa a artificial... E tudo neutralizado pelo grande contra-regra, Satã/O Adversário, que parece ter levado a sua a melhor...



 O poema de Aragon dito/cantado por Léo Ferré
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Mas vejamos, fora da eventual mensagem da peça, o que (nos) está a acontecer, aqui e agora. Que o mesmo é dizer, olhemos para o mundo, o nosso, que outro não temos. Como Walter Benjamin, em conversa com Brecht no exílio, em 1934, sugeria: «Não vamos falar das coisas boas e velhas, mas das novas e más». Perguntemo-nos nós também onde estamos, sem nostalgias paralisantes, mas também sem renegar nem esquecer passados que explicam o presente – porque não se vive num ghetto da História, mas no fluxo da História. O que quer dizer que teremos de recuar 20-30 anos, ou mesmo ir até ao fim da Grande Guerra e à implantação de um modelo americano que se tornou hegemónico à escala global. E não nos preocupemos tanto em querer saber (como J. B., o visionário – ou será o lúcido? – da peça) para onde vamos – essa é a pergunta perigosa de quem julga saber os caminhos da História, e a resposta será sempre imposta por algum poder discricionário.
Fomos apanhados numa situação – como a Virgem grávida, sem perceber como tal coisa lhe aconteceu – semelhante à dos mineiros nas galerias quando chega, vai chegando, o grisú, o gás letal (e não temos passarinho, como eles, para nos avisar). (Estou a referir-me ao último livro de Georges Didi-Huberman, Sentir le grisou, em grande parte centrado no filme-manifesto de Pasolini La Rabbia, de 1962). Esse gás não se anuncia, não se dá por ele, e quando chega mata. Também nós, nas últimas décadas de euforia cega, fomos incapazes de ver ou sentir o movimento da catástrofe que viria, que veio, está aí – e que é aquela «coisa nova e má» de que falava Benjamin. Embarcámos numa visão ilusória de um «progresso» a que hoje se chama «crescimento», obsessão estúpida e palavra oca de quem não entende, como diria M. G. Llansol, que o «ofício de crescer» é o de nunca deixar para trás a infância, uma noção dinâmica de «origem» que alimenta o presente. Também Giorgio Agamben viu esta relação entre infância e História, e defende mais recentemente, contra a «maldição do trabalho e da produção», uma inoperosità (o désoeuvrement que Jean-Luc Nancy propusera já nos anos oitenta) que não é um apelo à inoperância ou à inércia, mas o seu modo de reagir à ditadura do «operacional» e do trabalho, para propor como tarefa da filosofia uma política e uma ética libertas dos grilhões do dever e da eficácia, disponibilizando os sujeitos livres e as suas energias para outras «tarefas» (de facto, a humanidade enquanto tal não tem tarefa específica, como já conclui Aristóteles na Ética a Nicómaco).

O grisu, gás da catástrofe...

Mas desçamos ao nível do nosso pequeno rés-do-chão, o T0 português do grande condomínio europeu. Hoje caímos em nós e estamos aí, os desmemoriados («o fascismo nunca existiu», a revolução foi um fogo de palha), subitamente sem presente, olhando para trás, mas não para muito longe, e vendo, não um montão de escombros, como o Anjo de Benjamin (apesar de também os haver, e muitos, em todas as guerras do desconcerto actual do mundo), mas uma «modernidade de chave na mão» que nos ofereceram como se não houvesse juros a pagar, neste país ainda há pouco «novo-rico entre os pobres e agora velho-pobre entre os ricos», como certeiramente escreveu Pedro Rosa Mendes há já dois anos. Quanto ao futuro – simplesmente não está à vista, «entupiu», escreve José Gil, «neste buraco negro do presente» em que caímos sem saber muito bem como (só hoje se vai sabendo...). «Como se» – diz Didi-Huberman – «nas galerias das minas da verdade histórica o tempo fosse ele mesmo um gás grisú e nós tivéssemos de sentir, ver ou prever a cada momento, de reconhecer ou antecipar [como o J. B. da peça] a força da catástrofe».

Kafka, Na Colónia Penal

Também podemos perguntar-nos, deixando de olhar para a História como objecto arqueológico, ou cadeia de causas e efeitos: que tempo é realmente este, o nosso, o vivido por cada um, o que a cada um coube em sorte ou desdita? Este nosso tempo é, num grau proventura inultrapassável, a quinta-essência do que conhecemos como kafkiano. E isto quer dizer o quê? No universo de Kafka todo o desejo, toda a acção, toda a vontade são anulados, tornados impossíveis, levados ao fim de todas as possibilidades, des-potenciados por forças obscuras, burocráticas e absurdas, mas não só, também quase míticas ou demoníacas, que transformam sujeitos em coisas, homens em bichos, indivíduos em números ou, transpondo para o que somos hoje, em meras máquinas passivas do consumo e das TVs, zombies infantilizados pelos aparelhos da propaganda, seja ela publicitária ou eleitoral. Essas forças ominosas, que podem ser as de políticos medíocres, banqueiros gananciosos, especuladores corruptos ou meros subalternos servis e ambiciosos (e esta é a mais terrível figura no universo de Kafka, que tem a sua correspondência modesta no «Pitbull» da peça) — essas forças estão aí, são legião, e inscrevem-nos no corpo, escrito a fogo, o nosso destino (que não escolhemos), como acontece ao prisioneiro na história kafkiana da Colónia Penal.
É um processo de – consciente e deliberada – anulação do indivíduo, em que a «esquerda» (originalmente a Social-democracia histórica de raiz marxista, já há um século) embarcou e que hoje chegou a um ponto de não-retorno. E que por isso só uma convulsão radical, uma implosão do sistema (que não é de excluir) poderia inverter – mas sabemos que os tempos não vão já para revoluções, e tais convulsões da História levam tempo a acontecer. A nossa única esperança poderá ser a do ritmo alucinante a que tudo acontece nestes tempos, e a de que sempre se pode fazer da necessidade uma virtude, como Marx sugere numa célebre carta a Arnold Ruge em 1843, onde escreve: «A situação desesperada da época em que vivemos enche-me de esperança»!

As redes e a «multidão» sem centro...

Por enquanto, à mercantilização total das existências corresponde a mercantilização dos indivíduos, transformados em massas anónimas e despolitizadas que, quando muito, convivem ingénua, alegre e infantilmente nas «redes», o húmus de onde nascem e onde morrem todos os «indignados», todos os «Anonymous» simbolicamente mascarados e todas as «Primaveras árabes» abortadas por poderes e contra-poderes de vária observância, todos eles mais ou menos abertamente bárbaros. No meio disto, e no nosso mundo, uma casta política que se demitiu da polis e se tornou refém de duas «escolas» igualmente perniciosas e perversas: a partidária e a empresarial. Em 1935, tempo de fascismos e totalitarismos (vindos depois da grande crise dos anos vinte), Benjamin resume em duas frases esta situação (e nem sequer está a tratar de matéria propriamente política, mas da obra de arte). 

Os novos templos e seus fiéis...

A primeira: «À reprodução em massa [da mercadoria] responde particularmente a reprodução das massas», i. é, a sua transformação em rebanho disponível para a actuação das ideologias; ou, hoje, para a religião secularizada que é, que sempre foi – também para Benjamin, ou Agamben – o capitalismo, «a mais feroz das religiões, porque não permite sequer expiação» (W. Benjamin, em «O capitalismo como religião»). Agamben lembra que a palavra e a palavra crédito têm a mesma raiz grega, pistis nos Evangelhos. Esta  palavra aparece, de facto, na designação actual, em grego, para «Banco de crédito»: Trapeza tes pisteos! O Banco tomou o lugar da Igreja e manipula a fé e a confiança dos homens (cf. entrevista a Juliette Cerf: http://www.telerama.fr, em 10 de Março 2012). A segunda frase de Benjamin refere-se aos políticos de então e àquilo que designa como «o feitiço podre do seu carácter mercantil» O mesmo se poderia dizer da «aura» estupidamente risonha e feliz (mas totalmente contaminada pela podridão da mentira, particularmente evidente na retórica polida-agressiva dos call centers) da maior parte da «arte» publicitária de hoje, que, no meio de tanto design criativo e original, acaba por se revelar como um dos maiores embustes e uma das maiores pragas do nosso tempo (Benjamin salva ainda a da sua época, numa fase incipiente, entusiasmando-se com o que chama a «literarização da rua» pelos anúncios, ou com a beleza efémera dos cartazes de cinema).
 Entre a agressividade e o embuste...

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Provavelmente, o que a peça de Jean-Pierre Sarrazac nos vem dizer e mostrar (e é muito importante, para o meu ponto de vista, este lado performativo do teatro e de outras artes, para lá da intervenção meramente discursiva, que já teve melhores dias: cf. o meu livro O Mundo Está Cheio de Deuses) é que o que nos quiseram vender como «normalidade» nos levou à queda num estado de alienação a que alguém (o psicanalista Arno Gruen) já chamou «a loucura de uma normalidade» que a si mesma se toma por padrão exclusivo da «realidade» (esta é também a forma de loucura dos ultras do capitalismo neoliberal – e do nosso actual governo!). A normalidade é hoje a ilusão saída da miragem das vacas gordas da produção e do consumo: deste par que há muito sustenta o sistema, deste insustentável círculo vicioso do capitalismo, foi-se libertando o grisú que nos estonteou e hoje nos sufoca. O tempo da abundância – relativa, porque de facto foi, e continua a ser, apenas a de alguns –, também para os pobres do Sul, correu na ilusão de uma caminhada para o melhor dos mundos, quando afinal, lembra Pasolini já em 1962, o tempo «apenas fez passar a nossa cegueira». E assim o grisú do chamado progresso, de um obsessivo «crescimento» sem engrandecimento de alma e sem equilíbrio do corpo (que não passa aqui pelos cultos atlético-hedonísticos que por aí grassam) vai envenenando a História. Que não chegará a um «fim» (na História não há começos nem fins, alguém os decreta sempre como tais, diz o filósofo Hans Blumenberg), mas já desceu ao seu mais baixo nível, fazendo tábua-rasa do Humano, reduzindo a nada a pessoa e a sua dignidade – que, ironia das ironias, todas as constituições dos Estados ditos «de Direito» assumem como artigo primeiro dos seus arrazoados inócuos, que não cumprem.
O nosso tempo (nosso? ou das forças anónimas que o determinam?) foi-nos assim dado como um tempo de «normalidade» que entretanto entrou em «crise» (a fase aguda das doenças, já na medicina grega). De facto, como já disse Agamben, estivemos e estamos sempre em «estado de excepção», que é a condição natural do sistema, gerido hoje por batutas invisíveis e por testas-de-ferro que são os governos que temos, verdadeiras marionetas do poder financeiro abstracto. Alguns sintomas – borbulhantes mas efémeros, muitas vezes sustentados pelo poder lúdico, apenas aparente, das redes e das manifestações de rua – parecem querer dizer que o estado de coisas em que vivemos, mais do que de normalidade, precisaria de ser (começa a ser, com uma insistência que não pode abrandar) um estado de urgência e de emergência (a variante pasoliniana do «estado de excepção« de Agamben). Eu próprio já o vi, com mais optimismo do que hoje, como estado de «an-arquia criativa, nem sempre pensante, mas ainda e sempre crítica», feito da emergência constante de pequenos focos de resistência, «pirilampos» que vão substituindo, de forma pluralizada e disseminada, pela acção e pelo espectáculo, a antiga intervenção crítica do intelectual cuja arma era a palavra (O Mundo Está Cheio de Deuses, 57-58).
Hoje, continuo a pensar que a acção é necessária, mas não tem condições de voltar a ser revolucionária (a «multidão» das redes não tem centro, e pensar que ela poderia ser uma nova «classe» planetária foi a grande ilusão de Toni Negri no seu livro com esse título, Multidão. Guerra e Democracia na Era do Império); mas creio também que o pensamento precisa de voltar a ser reabilitado e a ter caminhos e lugares que lhe permitam chegar às pessoas.
Talvez só mesmo o pensamento possa adiar «o fim das possibilidades», ou evitá-lo, já que o pensamento é o espaço de todas as possibilidades (já Musil o lembra no início d' O Homem sem Qualidades: «Se existe um sentido de realidade, tem de existir também um sentido de possibilidade»): o pensamento é o repositório de tudo o que em nós existe em potência e espera ser activado um dia. A busca de possibilidades é o sentido da própria filosofia. Mas aqui trata-se de teatro: também o dramaturgo sabe disso, mas precisa, naturalmente, de extremar uma situação para melhor explorar tensões dramáticas. É o que acontece na peça de Sarrazac e no seu título à primeira vista demasiado assertivo. Mas também aí são testados os limites de muitas possibilidades, e propostas várias «saídas» do beco.
Será isso possível? O sistema, que tem um grande estômago que tudo digere, permiti-lo-á? E as pessoas estarão dispostas um dia a ser capazes de escutar a voz do pensamento – para voltarem a ter rosto? Estas são algumas das interrogações que se colocam, como contra-questões, à do «fim das possibilidades». Sabemos que não vai ser fácil, porque o sistema que rege o inverno do nosso descontentamento conseguiu, nas últimas décadas de áureas ilusões, «pôr os mortos à mesa», como diz o poema de Aragon. É a forma subtil, e extrema, da sua «violência simbólica« (para usar a linguagem de Pierre Bourdieu), em que cada indivíduo é apenas um elo, previsível, na «grande cadeia do Ser» que, segundo o sociólogo francês, é o modelo da economia de mercado que nos domina. Sentamo-nos à mesa, ou no sofá da TV, e estamos mortos.

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Gostaria de concluir evocando um texto notável, mas desconhecido, de uma grande escritora, pronunciado no 1º Congresso de Escritores Portugueses, numa época que pode ser vista, contra todas as esperanças e ilusões que então alimentámos, como a fonte próxima, e «doméstica», de alguns dos nossos problemas de hoje. No calor da revolução, em Maio de 1975, Agustina – é dela que falo – tem uma visão lúcida e inesperada, e exige uma «visão geométrica dos problemas». Coisa rara, num país pouco habituado ao rigor, antes dado ao populismo, ao facilitismo e às clientelas. E ainda por cima num clima de revolução, que, lembra Agustina, é sempre um rito possuído por uma «ofensiva de artificialidade» e sustentado por uma «enorme brigada romântica que, sob a forma de parada popular, exprime, em termos de uma duvidosa liberdade, o que deveria ser entendido em termos de economia» – economia, entenda-se, não no sentido das abstracções macroeconómicas de hoje, que apagam a pessoa, mas no seu sentido mais autêntico de lei rigorosa para gerir a casa colectiva. Lembrando que depois da revolução vem «o carácter insaciável dos partidos», que «a multidão não tem suficiente imaginação para ser curiosa», que se instalou «a polidez vazia do falso liberalismo», que houve uma demissão da linguagem, e que por isso é urgente «a crítica da linguagem», Agustina chega, nestas afirmações entre a lucidez e a polémica, à conclusão de que «o mundo do futuro será pobre» (e para ela isto não será necessariamente um mal) e de que é preciso recuperar o diálogo crítico e produtivo (para além do pseudo-diálogo de SMSs e redes, diríamos nós hoje), sem perder a consciência de que «todo o poder é impuro».
É uma intervenção extraordinária para uma escritora, no início de um tempo de esperanças que se foram perdendo, e que talvez nos possa servir ainda hoje, tão distantes que estamos dos sonhos ingénuos desses anos heróicos. As possibilidades que eles abriram foram em grande parte ficando pelo caminho, mas não morreram todas, para aqueles que continuam a acreditar que é preciso abrir a boca, ou resistir pela via dos «manifestos mudos» que são todas as intervenções culturais convictas da sua função e convincentes para aqueles a quem se destinam – uma peça de teatro, por exemplo. Sem sonhos ingénuos, mas pela acção lúcida e persistente. Como Agustina dizia no final desse seu discurso aos escritores em 1975:
«Não desejemos o melhor dos mundos, para não chegarmos a desistir dele».
O fim das possibilidades?, ou
«Todas as possibilidades voltam a estar em aberto»?