29 dezembro, 2013

METAMORFOSES DO AMOR

Seguindo Ovídio, o grande mestre da ars amandi, pus-me um dia a reescrever algumas das suas histórias das Metamorfoses, histórias de amor e desejo, de cobiça e ciúme, de êxtases inomináveis e de mal-entendidos fatais. De uma maneira ou de outra, elas vão sempre dar  a esse grande «desconhecido que nos acompanha», o mundo, na definição de Llansol.
Deixo aqui algumas das que voltei a narrar, acompanhadas de gravuras que Picasso desenhou um dia para a edição do grande livro das transformações.


0.
Quando o mundo é cruel
o amor adoece e metamorfoseia-se.
E dá-se a ler, dia após
dia, nas mil faces de Eros
fazendo renascer
míticos pares  paixões  loucuras
de deuses humanos, demasiado
humanos, tal como Ovídio 
– um exilado ele também –
os foi escrevendo antes da solidão
tão negra como o mar que lhe banhava
o lugar do desterro.
As Metamorfoses fixaram para sempre
muitas dessas histórias.
E eu volto a contá-las
para iludir este longo e letal tempo
de espera sem mudança.

Quando o corpo adormece
nasce o desejo de narrar
e desvendar os caminhos
das transformações de Eros, o mais
proteico e múltiplo entre todos os deuses.


1.
Deucalião e Pirra

Depois do dilúvio, nós.
Únicos entre os milhões
que povoavam a terra,
o lodaçal sem saída.
Mas eis que o mundo se refaz
no pico do Parnaso ou
em cada lugar que te deixa
olhar para ti, sentir quem és
e voltar por instantes ao princípio
de tudo. Então somos só nós
o povo desta terra – 
frágeis seres sem certezas
a alma ensombrada por nuvens
o medo à espreita  o desalento
e o desejo tão grande de conforto.
Nesses lugares e nesses dias
os deuses falam connosco
na sua língua de enigmas
e dizem-nos que são nossos
os ossos da terra:
as pedras (e as flores, os anéis)
que ninguém nos pode negar
que apanharemos onde nos aprouver
lançando-as uma a uma 
para trás das costas_______

(e cada pedra
é a sólida rocha do amor
é um desejo que se cumprirá
é a certeza de que há sempre
um recomeço.)


2.
Dafne

Tem Cupido setas mais poderosas
que as de Apolo, que um dia a grande Piton
venceu, e a si próprio com ramos
de carvalho a fronde coroou. O loureiro,
esse ainda não existia.
Duas setas disparou o perverso Cupido,
separando o que unir devera:
uma que ateia a chama,
outra que dela faz fugir.
Uma penetra a fundo na carne de Apolo,
a outra atinge a ninfa virgem do Peneu.
Arde o deus e persegue o abraço
da ninfa, o toque do seu cabelo
solto e sem adorno e o mais
que sob a túnica se esconde e paraísos
promete. E ela foge-lhe
como o sopro do vento, e ele
grita-lhe: «Tenho de seguir o amor!»
Foi o temor de amar e o saber-se
bela de mais para o deus e o não ter já
para onde fugir que a fez rogar
ao pai, senhor dos rios,
a metamorfose fatal e salvadora.
Mas Apolo perdeu-se também
pela beleza do loureiro, e a ele
também amou assim:
sentiu-lhe no tronco o peito
ofegante, nos ramos os braços,
abraçou e beijou o lenho. E disse:
«Se em forma de mulher te não tenho,
adornarás doravante a cabeça
de poetas, amantes e caçadores».
E o loureiro acedeu, feliz,
e parecia que a copa lhe sorria
como um rosto de mulher.

(O amor sobrevive a qualquer forma,
efémera e volúvel.)


3. 
Sirinx

Pela Arcádia corria descuidada,
servindo Diana, a deusa virgem, como ela
o arco usando (não de ouro, é certo,
mas não é menos nobre o de corno),
aquela a quem as ninfas chamavam Sirinx.
Era, naturalmente, a mais bela 
entre as Náiades, e uma vez mais
um deus (menor, desta vez, mas sensível)
por ela se transtornou e a seguiu.
E ela depressa junto ao pântano cai
nos braços do grande Pã: mas não foi
o seu belo corpo branco que o fauno
acariciou. Sem auxílio de deuses
(ou talvez andasse por ali o dedo feminista
de Diana), transforma-se a ninfa 
num tufo de canas, que o vento
lhe faz gemer nos braços, num lamento.
E uma vez mais a metamorfose
os separou e os uniu: maravilhado
com os sons que ouvia, inventou Pã
a flauta de seu nome, e proclamou:
«Ela nos manterá unidos!»

(A arte do amor sabe que pode perder
um corpo e ganhar música.)


4.
Europa

Da filha de Agenor não sei sequer
se amou o deus na forma do touro branco.
Que foi desejada e amada, isso sabemos.
Mas não se casam amor e violência.
E Zeus usou a cor branca da pureza,
a mansidão e o brilho precioso
dos cornos pequenos para atrair
e raptar a intocada Europa.
Ainda assim, é digna de ser contada
a história que, sendo breve, traça
o arco completo das artes do amor:
das espirais da sedução aos jogos de contacto
e destes à posse e rapto. Uma arte
que nem só os deuses têm.
Chega Zeus à praia onde brincava Europa,
touro cor de neve nunca pisada, olhar meigo
e doces maneiras,
como àquela batalha 
convinha. Não foge a virgem
à estudada atracção, e já flores lhe oferece, 
que ele rumina, ao mesmo tempo
a mão de beijos lhe cobrindo, mal
podendo adiar já o resto.
E na praia seus jogos continuam:
ousa Europa, inocente, saltar-lhe até
para o dorso. É o começo de uma dança
ardilosa que os leva, juntos,
primeiro à orla de espuma, depois
ao vai-vem distraído das ondas, finalmente
ao fundo pego daquele mar do meio
que tantas histórias destas conhece.
Mas Europa, ofuscada, só deu por si
quando o caminho era
sem regresso. Da praia só se via
a leve túnica enfunada, ao vento.
Ninguém sabe onde o deus a deixou.
Cadmo, o irmão, correu mundo em sua busca.
Perdeu-lhe o rasto, mas viveu muito
e encontrou o de Harmonia.
Mas também a ele o aedo, com voz funda,
adverte da ilusão de felicidade:
«Lembra-te de que terás sempre de esperar
pelo último dos teus dias, e feliz
não poderá dizer-se nenhum mortal
antes da morte.»

(Estranho oráculo: acreditará nele
quem um dia soube o que é amar?
Ou seria ele premonitório
da miséria de Europa?)


5.
Tirésias

Júpiter, a quem o néctar já toldava 
e a proximidade de Juno excitava, 
diz a brincar: «O vosso prazer 
é com certeza muito maior do que aquele 
que a nós, homens, nos é dado ter.» 
Juno nega. Só Tirésias, que, 
por ter tocado as serpentes sagradas 
que se amavam, durante sete outonos 
soube o que era ter corpo de mulher, 
e os dois gozos experimentou, 
pode com seu saber dar-lhes resposta. 
E o sábio (o primeiro transsexual 
da divina e humana história) 
deu razão ao pai dos deuses. 
Não gostou Juno, e em noite eterna 
mergulhou os olhos do ousado juiz. 
Não pode um deus mudar o que outro 
dispôs. Não voltará Tirésias a ver 
de Febo o brilho. Mas quis Júpiter 
que durante muito tempo o dom infalível 
da profecia ocupasse o lugar da luz 
roubada aos olhos do profeta.

(Fica a pergunta: que viu Juno, a mulher, 
de mal na verdade? Ou no prazer, 
insuperável, dos seus múltiplos orgasmos?)

 
6.
Eco

No tempo em que Eco era ainda
uma ninfa faladora que a tudo
e todos respondia, os seus olhos
pousaram um dia no corpo do belo
rapazinho que todos no bosque
cobiçavam, rapazes e raparigas.
Passou a seguir-lhe os passos
por trilhos de caça e campos
nunca pisados, e quanto mais o seguia
mais a chama se acendia no seu peito.
Quantas vezes não desejara
aproximar-se e falar-lhe
com aquelas palavras de amantes
que a natureza lhe proíbe dizer
em primeiro lugar. E assim espera,
ansiosa, pelos sons vindos
da boca dele, e lhes responde.
E ele, perplexo, sem perceber
por que voltava a ouvir o que dizia.
Um dia gritou à sua própria voz:
«Vamos reunir-nos!», e Eco
fez ouvir a mais desejada 
resposta de sempre: «... Unir-nos!»,
e saiu da floresta e enlaçou-o.
Mas ele foge, liberta-se do abraço
e ameaça: «Antes a morte
do que saber que vens para me amar!»
E Eco deixa ouvir: «... Saber que vens 
para me amar!» Mas despede-se,
retira-se para as cavernas e cobre
de folhagem o rosto desprezado.
Permanece o amor, e cresce nela a dor
que consome o triste corpo.
Ficaram a voz e os ossos petrificados.
Desde então, o seu destino
é o de, nunca vista, por todos ser ouvida.

(E vive eternamente só som.
Quantos vivem eternamente sem corpo?)


7.
Narciso
 
Quando da ninfa azul, Liríope, 
nasceu Narciso, perguntaram a Tirésias 
se ele viveria muitos anos. E o cego disse: 
«Se a si mesmo se não conhecer!» 
Quinze anos teria Narciso quando um dia, 
depois da caça, descobre a fonte 
de água sem mácula e, ao beber, 
outra sede, que não a de água, sente: 
a daquela imagem que do lago o chama, 
ser de paixão, belo como uma estátua 
de mármore de Paros. 
Nega-lhe o espelho o beijo 
de cada vez que se aproxima, 
e uma voz lhe diz: «O que desejas 
não existe, mas veio contigo, 
contigo ficará, se ficares, 
e desaparecerá, se dele conseguires   
separar-te.»  Não se afasta Narciso, 
e uma doce loucura desce 
sobre os seus olhos: «Nunca ninguém, floresta, 
assim amou e assim sofreu. Mas os amantes 
são presas da ilusão, e é tão pouco, 
afinal, o que os separa! Consome-me 
o amor por mim, atiço a chama 
que me queima. Não me pesa 
a morte, e vida só desejo àquele 
que amei. E sei que juntos partiremos, 
numa só alma. Adeus!» 
E «Adeus!» lhe responde ainda Eco. 
Choram-no junto à fonte as Náiades, 
as irmãs, e as Dríades, e ouve-se ao longe 
o carpir de Eco com elas. E ao buscarem 
o corpo encontram, em seu lugar, 
uma pequena flor amarelo-açafrão. 
O coração é de pétalas salpicadas de neve.
                
(É tão pouco o que separa amantes
e tão fácil a queda na loucura.)



8.
Píramo e Tisbe

Viviam paredes meias na cidade
que emparedou Semíramis: Babilónia.
Os pais se encarregaram de proibir
o amor que o tempo fez nascer e crescer.
Na parede que as duas casas une e separa,
uma fenda cúmplice, que só o olhar
dos amantes descobrira: mas por ela
nem a mão nem um beijo passam,
apenas a voz sussurrada manda
e recebe juras e carícias.
Não suporta amor separação.
Decidem um dia iludir os olhares
que os guardam e fazer
da noite companheira
junto ao túmulo de Nino, sob a grande
amoreira que namora o lago.
Chega Tisbe primeiro, senta-se
debaixo da grande árvore. Espera
e vê chegar, sequioso, um leão. Foge
para a gruta, deixando atrás de si
o manto que a fera, de juba ensanguentada,
cheira e desfaz. Lê Píramo, ao chegar,
nos vestígios a morte da amada
e ali mesmo ao aço frio a vida entrega.
Jorra o sangue, escurece os claros frutos
e as raízes bebem da negra seiva.
Regressa Tisbe, confunde-a a cor escura
das amoras. Mas um frémito a percorre,
como o do mar quando o zéfiro o beija, 
ao ver o corpo, a ferida, o sangue.
A espada toma, para unir na morte
quem a parede e o mundo separara.
Mas esse mesmo mundo, e os deuses,
as últimas vontades lhe fizeram:
na mesma urna as cinzas dos amantes
juntaram e, em sinal de luto, às amoras
maduras para sempre a cor escura deram.

(Também Romeu e Julieta só encontraram
a fama na tragédia que escolheram.)


9.
Salmácis

Filha das flores, a hippie entre as ninfas 
antigas, incapaz de caçar, trocou 
a aljava pelo ócio. Banhava as pernas 
de leite no lago até ao fundo claro, 
por onde também se perdia em tardes quentes 
o efebo filho de Mercúrio e Citereia. 
Um dia, sua caça haveria de ser! 
Depois de pentear os cabelos com pente de buxo, 
depois de pôr o vestido de luz que o corpo lhe revela, 
feito com ramos frescos, ervas e flores o leito, 
Salmácis, espírito da sedução, aproximou-se 
e ofereceu ao jovem ignorante do amor 
o tálamo nupcial. Ruboriza o efebo 
e ameaça: «Vai-te daqui, ou nunca mais 
no lago me verás mergulhar.» Parece a náiade 
aceder, mas a astúcia aconselha-a a esconder-se. 
Fora de si, ardendo de desejo fica 
quando o rapaz deixa cair as vestes 
e o corpo ainda tenro entrega às águas. 
Consome-se ela, enquanto ele na água resplandece, 
lírio de neve, estátua de marfim 
em campânula de cristal: «Meu será!», grita, 
e ao mesmo tempo lança para longe 
os últimos linhos que lhe cobrem o corpo, 
corre para o espelho das águas, envolve 
em abraço de serpente, de hera, de mulher
o corpo que beija e acaricia – e que a repele. 
Mas ela, filha de deuses, fala: «Numes, 
não deixeis que jamais ele 
de mim e eu dele me separe!» E os dois corpos 
se juntaram na água, enlaçando os membros, 
e formaram um duplo ser, nem efebo nem ninfa, 
parecendo ser nenhum deles e ambos. 
E mais decretaram os deuses 
que quem naquelas águas se banhasse 
como ser duplo havia de sair.       
                
(Nasceu o andrógino naquele dia, a figura
que melhor dá conta da natureza misteriosa
e múltipla do amor. E foi uma mulher
que em paixão o fez nascer.)



10.
Medeia

É fulminante a paixão, e cega.
Chega Jasão ao reino bárbaro
e o fogo apodera-se dos sentidos da virgem
e sacerdotisa da Cólquida. Em vão resiste,
um novo deus se atravessou no seu caminho:
força desconhecida, que Hécate ainda
lhe não havia revelado, a domina,
e mais forte é o desejo que a razão.
O mesmo novo deus que gera a paixão
a atrai e leva a trair pai e pátria.
Mas o pai, esse é insensível,
mas a pátria, essa é bárbara,
e no olhar de Jasão abre-se-lhe o mundo.

(Pelo menos assim lhe pareceu.
Da segunda parte desta saga intensa
e trágica não darei conta.
Não atrai a degeneração do amor.
Só é narrável o germinar e crescer da paixão.)


11.
Filémon e Báucis

Não haverá mais singela história de amor.
Começa na velhice e a memória 
a conta em poucas palavras:
Na cabana entre tília e carvalho,
no alto do monte frígio,
sempre viveram em desejada humildade.
Também no amor muito não pediram:
aí se encontraram e se deram
nos verdes anos, aí testaram
a têmpera do amor pleno no verão
e no outono da vida, daí partiriam,
serenos,
ao cabo de um século
de amor sem tristeza.

(História impossível. Mas diz-se
que assim foi porque Júpiter
quis recompensar a única porta
que se lhe abriu naquelas paragens.
Melhor explicação seria a de que este amor
impossível terá afinal sido possível
porque a cabana ficava fora do mundo.)


12.
Ganímedes
 
É breve e simples a fábula 
do rapazinho cobiçado pelo pai dos deuses 
(é simples a lei da cobiça do corpo, 
e complexas as tábuas onde se inscrevem 
os desregrados caminhos do amor). 
Não conhece Júpiter diferença 
entre desejar e ter. Nem desta vez 
envolve a presa em demorados rodeios. Veste 
as penas fortes da águia, desce 
como o raio sobre a terra frígia onde brinca 
Ganímedes, filho de rei e émulo 
da divina beleza (mais do que isso seria –
de outro modo não se explica o desejo de um deus). 
Num ápice, rouba o mais belo corpo 
de efebo que as planícies de Ílion alguma vez 
tinham visto. Inicia-o nas artes do amor, 
das libações de néctar, e assim vivem,
perante os olhares ciumentos de Juno.

(Conheciam os deuses antigos todos os meandros
do desejo. Do amor pouco quiseram saber.)


 13.
Orfeu e Eurídice
 
A morte veio, apressada, pela boca da serpente 
no calcanhar de Eurídice, noiva ainda 
de poucas noites (as crónicas esquecem sempre 
este episódio, e ele explica tanto de uma paixão 
que passou os umbrais da morte!). 
Lançado que foi aos céus o longo treno, 
desceu Orfeu às profundezas de Perséfone: 
«Curioso não sou do teu reino, 
nem do tricéfalo monstro que o guarda. 
Por minha mulher venho. Venceu Amor, 
lá em cima deus bem conhecido. 
Aqui, não sei, mas só ele vos poderia 
unir assim, também a vós. Por ele te peço: 
Voltai a tecer o fio do destino de Eurídice. 
Ficar juntos apenas nos concedei. 
E se a ela o regresso for negado, 
ficarei eu para sempre entre as sombras do Hades.» 
E ao falar – mais canto era que fala – 
as cordas da lira toca tão pungentes 
que a anémica legião de espanto em si não cabe: 
imobiliza Tântalo a mão que se estende 
para o doce fruto que lhe foge, pára a roda 
de Íxion, deixa a águia de comer o fígado 
e Sísifo senta-se, enfeitiçado, sobre a pedra. 
São generosos os senhores do Tártaro, 
e Eurídice lhe trazem. Com ela vem 
a fatal condição, como sempre 
fazem os que o poder detêm: 
que nela os olhos não porá antes 
de deixar o vale do Averno. 
Não resiste o amor à provação 
(nunca amor entende a arbitrariedade), 
volta-se Orfeu e afunda-se Eurídice 
de novo nas trevas do Hades. 
Sem uma queixa: de assim ser amada
queixar-se também não poderia.

(Tem sempre amor um preço
e a morte sua desrazão.)