27 novembro, 2007


DERRUBAR ÁRVORES
ou: o mundo visto de uma poltrona de orelhas





Não temos de nos justificar… Não nos fazemos a nós próprios.» Esta frase, que encontro no romance de Thomas Bernhard Betão [1982] (onde um escritor, candidato a biógrafo do músico Felix Mendelsohn- Bartholdy, leva dez anos à procura da primeira frase), tanto pode ser lida como um programa exacerbadamente individualista ou mesmo anarquista, como querer dizer que são insondáveis, quer os caminhos da existência, quer os mecanismos da escrita, que não decidimos, nem num caso nem no outro.
Mas aplica-se bem a Derrubar Árvores. Uma irritação, o último romance editado em Portugal (juntamente com Correcção) – aplica-se, tanto ao livro em si, enquanto romance «de formação e desencanto», como ao livro enquanto «romance cifrado» (roman à clé) que, como se sabe, deu origem a um processo judicial e à apreensão temporária do livro na Áustria. Tudo aí se decide, de facto, a partir de um encontro fortuito e do jantar de artistas que se lhe segue, um acontecimento banal e afinal insólito que, no romance, tem um centro – um observador implacável, hetero- e auto-fágico, como em quase todos os livros de Thomas Bernhard – e que, neste caso (contrariamente ao do escritor em Betão, a quem «as frases metem medo»), despoleta um impulso incontrolável para a escrita. Em Derrubar Árvores sai-se da existência (da experiência do funeral de uma ex-amiga suicida e de um jantar em que se encontram, num só dia, as mesmas pessoas, figuras do mundo artístico vienense que o Eu-narrador conhece, mas não vê há mais de vinte anos) e entra-se imediatamente na escrita – nas últimas linhas do livro as duas coisas quase se sobrepõem:
«Vou escrever sobre esse chamado jantar artístico na Gentzgasse, sem saber o quê (…), seja o que for, só escrever e imediatamente sobre esse jantar artístico na Gentzgasse, imediatamente, pensei eu, repetidamente, correndo pelo centro da cidade, e imediatamente e , já antes que seja tarde de mais.» (p. 196).
É o romance como ourobouros, a serpente que morde a própria cauda, e em que o leitor, a ser consequente, teria de voltar imediatamente ao princípio, à sua primeira frase, que começa logo por apresentar o narrador, o seu posto de observação, o espaço da acção e a matéria narrativa central:
«Enquanto estavam todos à espera do actor, que lhes prometera vir cerca das onze e meia, depois da representação do Pato Bravo, ao seu jantar na Gentzgasse, observava eu com toda a atenção, da poltrona de orelhas em que, no princípio dos anos cinquenta, me sentava quase todos os dias, o casal Auersberger e pensava que cometera um grande erro ao aceitar o convite do casal. Durante vinte anos não tinha voltado a ver os Auersberger…»

Vinte anos depois, um homem está sentado numa poltrona de orelhas, posto de comando da acção neste romance sem acção, em casa de amigos que o filtro da memória subitamente transforma em figuras execráveis, observa os outros (e a si próprio) e reflecteescreve já mentalmente, re-memora, re-constrói uma vida como quem reconstrói uma casa que entrou em processo de ruína (Bernhard reconstruirá realmente, na vida e na ficção).
O que observa e recorda este narrador implacável? Vejamos se é possível um resumo da «acção», embora com a consciência de que não é a história das figuras reais que importa, em particular para um leitor estrangeiro, mas a tempestade de palavras que vai na cabeça daquele Eu que pensa, sentado na poltrona de orelhas. Quando o livro saiu em 1984, a crítica do jornal Süddeutsche Zeitung – assinada por Wolfgang Schreiber, e provavelmente a melhor que se escreveu sobre este romance – confirmava-o: «Para desilusão de todos os leitores que vão à procura de chaves: aqui só há mundo interior, gerado pela linguagem. A cabeça do narrador, deste sujeito-de-narração-Thomas-Bernhard, que vai produzindo torrentes de recordações, de observação, de raiva, de auto-dilaceramento, é, pode dizer-se, o único mundo deste livro (…) É a linguagem que apela para o leitor, mais do que aquilo de que se fala. (…) É este o indesmentível realismo de Bernhard…» (disto já falei também no texto do Jornal deste ciclo, reproduzido num post anterior).


Ainda assim, arrisco o resumo. Para acompanharmos por uns instantes as figuras desta história exemplar, modelo paradigmático e exacerbado de tantos outros livros de Bernhard, com elementos que permitem uma reconstituição dos modelos reais dessas personagens, que imagino pouco ou nada conhecidos do leitor português. No romance, a história é mais ou menos esta:
O casal Auersberger convidou a melhor sociedade artística vienense para um jantar: ele é um compositor, «continuador de Webern» arruinado pelo álcool, ela uma ex-cantora (cuja voz o narrador até admirava trinta anos antes), hoje uma dama de sociedade hipócrita e fútil – mas rica. O eu-narrador, inconfundível alter ego do autor, observa da sua poltrona de orelhas, qual deus sentado na cadeira do Juízo Final, o que se diz e faz à sua volta. O pretexto do jantar é o de receber um afamado actor do Burgtheater, que lhes dará a honra da sua presença depois de mais uma representação d' O Pato Bravo, de Ibsen, numa das salas do "Burg", o Akademietheater. Acontece que este actor se atrasa tanto que o facto dá ao narrador muito tempo para fazer os seus juízos demolidores sobre todos e tudo, não se poupando também a si próprio por ter aceitado o convite que lhe fora feito no Graben, a rua do centro de Viena onde encontrara por acaso os Auersberger. Cedera ao seu «sentimentalismo», no meio de uma cidade que ama e odeia, ao comprar uma gravata para ir ao funeral de uma amiga de juventude (a «Joana») que se suicidara na província, depois de anos de alcoolismo e depressões. O «jantar artístico» desenrola-se em rituais grotescos, e será o único espaço-tempo de uma acção de menos de vinte e quatro horas, e de onde saltam todas as recordações e respectivas figuras, todas elas representantes de uma geração e de uma cultura artística austríaca que é a do narrador e do autor, e que serão arrasadas sem contemplações ao longo das quase 200 páginas do romance: os próprios Auersberger e as suas duas casas, em Viena e na Estíria (de facto, na Caríntia!); a coreógrafa Joana (Thul) e o marido, o «tapeceiro» Fritz (Riedl); a escritora Jeannie Billroth (de facto Jeannie Ebner), sobrinha do filósofo da «pneumatologia» Ferdinand Ebner (que nos anos vinte desenvolve uma teoria dialógica da linguagem, na sequência e nos antípodas de Wittgenetsin) e durante anos directora da revista Literatur und Kritik (no romance: Literatur in der Zeit); o par de escritores Anna Schreker e o seu companheiro (Friederike Mayröcker e o poeta do concretismo Ernst Jandl, expoente da chamada «Escola de Viena»), vistos como repugnantes lambe-botas do Estado austríaco; finalmente o «actor do Burg», de quem se sabe apenas que estava a representar O Pato Bravo no Akademietheater – o suficiente para eu o identificar, através do site de Ibsen na Internet, como sendo o actor Klaus Behrendt, que representa o papel do velho Ekdal nessa produção, estreada em Viena em 24 de Outubro de 1982, e que se manteve vários meses em cartaz, portanto imediatamente antes da fase de escrita de Derrubar Árvores. Será esse actor do Burg quem, depois de fazer o seu número à mesa do jantar, com uma catadupa de discursos sobre a sua arte teatral, tudo bem regado a vinho branco, faz um excurso que proporciona uma viragem nos juízos negativos que sobre ele fizera o narrador, para se transformar na «figura filosófica» da noite, com o seu «pensamento de ser apenas natureza», fornecendo uma tirada programática em que se fundem arte e natureza, e da qual o escritor, com toda a ironia de que Bernhard é capaz, acabará por retirar o título do seu livro: «Floresta, floresta de grandes árvores, derrubar árvores, isto é que foi sempre importante…».



O que pensa um homem, escritor, vinte anos depois, sentado numa poltrona de orelhas, no meio de gente que já não sabe bem se ama ou se odeia, que deixou de amar para odiar, e que se inclui a ele próprio nessa gente? Os lugares do seu périplo mental, totalmente interior, através de um daqueles longos monólogos de Bernhard, são, num só dia: o Graben em Viena, Kilb, uma aldeia na Baixa Áustria e a casa dos Auersberger, também em Viena, vista da sua poltrona. O homem está no centro de Viena, a cidade de todas as ambiguidades, cidade-canibal que destrói os artistas, e sobretudo os não-artistas que a demandam, e que são, para o narrador, todos os que se reunem naquele «jantar artístico». O centro desta cidade é para ele, ao mesmo tempo, o centro da sua austrofobia e uma espécie de catalizador do pensamento e do impulso para a escrita. Paradoxalmente, um lugar de recuperação, um ambiente de terapia, uma «montanha mágica» urbana, com as suas ruas do centro histórico, o pequeno labirinto do narrador (e dos seus cafés preferidos), logo referido nas primeiras páginas (Graben, Kohlmarkt, Kärntnerstrasse, Spiegelgasse, Stallburggasse, Dorotheengasse, Wollzeile, Operngasse…), e alguns dos seus cafés, em que, na década de 80, era fácil encontrar Bernhard, como me aconteceu um dia, em 1982(?) – o Bräunerhof (onde conversei com ele sobre aquilo a que ele na altura chamou o inevitável «aburguesamento» da revolução portuguesa), o Eiles, o Museum e o Zartl (que foram também cafés de Musil), o Hawelka (um dos mais significativos pontos de encontro dos novos escritores e artistas depois da Guerra, e cuja proprietária se queixava do silêncio e do mau feitio de Bernhard!)…




O homem que, no romance, por aí deambula mentalmente é escritor, um escritor «filosofante» (como, no final, o actor do Burg, que acaba por salvar aquele jantar tardio e dar o título ao livro!), com paralelos na literatura austríaca e fora dela: em Musil, o céptico, ou Cioran, o niilista. Com o primeiro (a quem Bernhard não se refere em particular) talvez partilhasse o desejo de ser escritor sem mais (por oposição aos pretensos «grandes escritores», cujo modelo era, para Musil, Thomas Mann), ou, como Musil anota nos Diários, «homem do circo» (aquele que arrisca o mergulho radical no circo da existência, da sociedade e do mundo). Ao segundo ligava-o a consciência de ser uma figura maldita (provocatória e contraditória), «homem afastado do mundo e à distância de si» (Cioran), o que talvez explique em parte a «fortuna crítica» dos seus livros no estrangeiro, mais do que na Áustria.
E esse que escreve mentalmente sentado na poltrona de orelhas é também um escritor que só fala de si, o que nos coloca directamente no centro da questão, muito discutida, mas que podemos abordar de forma concisa, da escrita autobiográfica de Thomas Bernhard. Pessoalmente, e enquanto leitor, não me interessa particularmente o lado autobiográfico da escrita de um romancista (o que fiz antes, ao identificar as personagens deste romance, foi uma curiosidade, pensando em leitores portugueses menos familiarizados com a cena vienense). Toda a escrita, para ter credibilidade e força (não digo «autenticidade», porque nenhuma escrita é «autêntica» – a não ser talvez para o actor do Burg, que Bernhard ridiculariza ao extremo ao lhe roubar o título para o livro!), tem de ser auto-bio-gráfica: escreve-se sempre o que se vive, ainda que isso seja o que outros escreveram (o que não é certamente o caso de nosso autor, que não escreve com outros, mas confessadamente os esquece). E um leitor português de hoje não tem de conhecer a biografia de Bernhard para ler os seus livros. É um princípio universal: a biografia pode levar-me a ler um romance de modo diferente, mas nada me garante que isso seja literariamente melhor, mais adequado ou mais produtivo. Não se lê um romance como quem lê uma vida de santo, como lembra Thomas Mann, que (num discurso comemorativo dos 80 anos de Freud) vê a escrita biográfica como uma forma de «hagiografia secularizada». Para Bernhard, tudo o que se escreve é autobiográfico, não no sentido de uma qualquer tradição clássica da «poesia e verdade», mas porque «ao fim e ao cabo, o que importa é apenas o conteúdo de verdade da mentira» (Der Keller/ A Cave, um dos volumes da autobiografia). É este o grande paradoxo da maior parte das obras ficcionais (para as distinguir da escrita da imaginação poderia recorrer-se também a Musil, para quem à realidade só se chega através da sua sua reconstituição contraditória, chocante e paradoxal, à luz do seu «sentido de possibilidade»): é o carácter ficcional das narrativas autobiográficas que as faz parecer tão incrivelmente realistas e historicamente concretas.


Eu sei que num caso como o de Derrubar Árvores haverá sempre (e houve na altura), para alguns leitores – mais os austríacos do que os estrangeiros – a tentação da descodificação das figuras, dos lugares, dos acontecimentos; e até admito que, de um ponto de vista mais culturalista/histórico do que literário, isso possa ser muito esclarecedor de uma certa leitura do mundo artístico e intelectual austríaco do pós-guerra (o que nem é muito difícil de fazer, dado estarmos em presença de figuras bastante conhecidas, algumas mesmo paradigmáticas, desse meio artístico). Também para o leitor português pode ser interessante ou curioso – mas não mais do que isso – o reconhecimento de uma topografia cultural vienense (de que já falámos), de uma geografia física e humana da Áustria (presente também neste romance, nos flashbacks sobre o funeral de Joana em Kilb, ou nas referências ao "Tonhof", a quinta dos Auersberger, centro de alguma vida artística austríaca entre os anos 50 e 60), ou ainda, noutros livros (especialmente em Correcção), do processo de reconstrução de uma casa, das várias casas de Thomas Bernhard (ver post anterior sobre isto).


Todos estes aspectos biográficos não serão determinantes para ler a prosa de Thomas Bernhard, que se alimenta de facto desses ingredientes, que se constrói à imagem da casa, que está indissoluvelmente ligada a lugares – Salzburgo, Viena, a província austríaca, toda a Áustria –, mas consegue potenciar o local em universal - como sempre fizeram, afinal, os grandes autores, desde Homero! Os ingredientes pseudo-austríacos do universo de Thomas Bernhard são os da sopa que todos engolimos, damos a comer ou cozinhamos na casa de doidos do mundo, tal como o conhecemos: o grotesco, a perversidade, a futilidade, o ódio, a doença, a genialidade problemática, a boçalidade simplória, o snobismo, a misantropia, um niilismo existencial e social em que tudo isso está presente, e que se tornou suspeito no «apocalipse alegre» em que vamos sobrevivendo hoje.
Mas Bernhard tem mais para oferecer: há nas suas visões amargas um fundo de amabilidade (que transparece na sua fisionomia quando se vêm alguns retratos), de delicadeza e humor, que um contacto pessoal, ainda que breve, pode facilmente evidenciar. O papa da crítica alemã, Marcel Reich-Ranicki definiu um dia lapidarmente a obra de Thomas Bernhard em termos que confirmam esta dualidade: «Esta obra é um motim permanente, uma rebelião infinita. Os elementos essenciais da sua prosa são a litania e o lamento – a litania cómica, o lamento sereno.» E o próprio Bernhard lembra, em O Náufrago: «Quem não é capaz de rir, não pode ser levado a sério.»
Bernhard tem acima de tudo para oferecer a sua prosa, ela mesma, com o seu niilismo redundante e musical instalado no cerne da própria linguagem (e talvez só aí, como já se disse), o fôlego e o ritmo próprios desses longos e únicos monólogos interiores que são quase todos os seus livros, e o que eles representam enquanto ruptura, corte radical com toda a tradição literária austríaca do século XX. Ao ler-se um livro de Thomas Bernhard percebe-se como a acutilância do pensamento e a música da linguagem se misturam num ácido corrosivo que ataca todos os mitos e ideologias, austríacos e ocidentais, começando logo no primeiro romance, Frost / Geada (1963), por não deixar de pé nenhum dos estereótipos sobre os quais assentava uma pretensa identidade austríaca. E continuando-se, depois do último, como uma espécie de rasto de cometa que vem formando aquilo a que um historiador da literatura austríaca contemporânea (Klaus Zeiringer) chamou o «hipertexto contínuo» em que a obra de Bernhard é continuada, em autores contemporâneos tão diversos como Alois Brandstetter, Werner Kofler, Gerhard Ammanshauser ou Josef Haslinger. Ironica e paradoxalmente, a obra de Bernhard, que traz em si um enorme potencial de destruição, gera novas obras que renovam, destroem e multiplicam a sua.


Thomas Bernhard talvez não gostasse de saber que é assim. O seu narrador e alter ego, consciente do que significa escrever sem compromissos, define-se a certa altura neste romance como «escritor, apesar de tudo, apesar de tudo, apesar de tudo…» (147) Antes, dera já de si uma outra definição que me parece servir ainda melhor a quem queira ler os textos de Bernhard como a mais pura ficção lucidamente realista, sem amarras limitadoras da sua liberdade criativa. Resumo-a na fórmula o grande simulador: «durante toda a minha vida apenas simulei e representei como num teatro, vivo e existo apenas como num teatro, tive sempre apenas uma vida teatral» (74). Perguntamo-nos: e se tudo, nos livros e na vida de Thomas Bernhard, for, tiver sido, uma simulação permanente? O escritor que escreve «apesar de tudo» fá-lo porque sabe que a arte é essa simulação. É o velho tema austríaco, calderoniano, barroco do grande teatro do mundo e da vida como sonho (ou então há aqui reminiscências do tema da «mentira vital», explorado precisamente por Ibsen e por alguns filósofos da linguagem no século XIX, para circunscrever o lugar da arte perante a violência da realidade). Não é só nisto que Bernhard é barroco (apesar de todo o seu minimalismo): toda a sua escrita é barroca, no seu excesso e no paroxismo dos seus labirintos do sempre-igual. Seguindo o próprio sistema (algo maniqueísta) de oposições e posições irredutíveis criado por este autor, poderia dizer-se que nele se opõe a simulação (própria do artístico, que em Derrubar Árvores se distingue da arte, melhor, da não-arte dos outros) ao artificialismo (dos comportamentos sociais e da arte que não é arte, porque vive de modas e epigonismos: como nos círculos vienenses que Bernhard conhece e desmistifica, e a que chama «a matilha social de há trinta e vinte anos», «a corja artística da cidade»).
Nesta atmosfera, o narrador-escritor assume-se, «apesar de tudo», temporariamente e com auto-ironia, como «lenhador» na selva artística de um mundo que é também o seu, demolidor de árvores a abater, exterminador, como lhe chamou Eduardo Prado Coelho quando saiu o seu primeiro romance em português, O Náufrago – precisamente um dos livros em que é mais visível aquela duplicidade, ou complementaridade a que aludi antes, entre uma interminável linha de destruição e o permanente adiamento da morte, entre os que se afundam e os que se salvam: no romance O Náufrago, entre a figura de «Wertheimer, o Thomas Bernhard destruído, e a de Glenn Gould, pianista e o mais clarividente de todos os loucos, o Bernhard salvo», como escreveu um crítico (Benjamin Henrichs, no semanário Die Zeit).
O mais clarividente de todos os loucos: é este Bernhard que importa salvar. Porque há uma loucura genial em todos os artistas do excesso. Um livro como Derrubar Árvores, um cenário como o que aí encontramos, sairiam porventura ainda mais reforçados nos seus efeitos hilariantes, hiperbólicos e irritantes se fossem postos em cinema, por um Fellini ou, melhor ainda, por um João César Monteiro. Seriam certamente dois filmes muito diferentes, mas qualquer um certamenmte digno de um expoente contemporâneo de um certo absurdo e do niilismo como Thomas Bernhard, na melhor linhagem de outros grandes autores do «estilo da vontade radical», como diria Susan Sontag. O narrador de Bernhard, na sua poltrona de orelhas, é da estirpe daqueles que – para citar ainda o já referido Cioran – cultivam «o ódio próprio como raiz da consciência» e seguem o lema: «Odeio-me: sou homem». Foi sempre assim com Thomas Bernhard, o amoralista, o «homem sem qualidades» possível neste nosso tempo. Já em 1968 (numa altura em que ainda recebia, precisava de receber, prémios do Estado austríaco!) existia nele uma consciência agónica, que o leva a afirmar, no polémico discurso de agradecimento do Prémio Nacional Austríaco: «somos criaturas de agonia…, habitamos um sonho no fundo do qual se erguem, já muito nítidos, os gigantes da angústia». Porque «tudo se torna ridículo quando pensamos na morte.»


(Na apresentação do romance, ontem, no CCB)



26 novembro, 2007

Thomas Bernhard
UM ROMANCE É UMA CASA
(O «Vierkanthof»
, Obernathal, Ohlsdorf / Alta Áustria

O processo de reconstrução de uma casa (e Bernhard fê-lo com várias casas ) é um tópico extremamente significativo em alguns dos seus livros (particularmente em Correcção, acabado de sair em tradução portuguesa na editora Fim de Século), na medida em que a casa surge aí como uma espécie de obra-de-arte-vital (um Lebenskunstwerk), mas não total (no mundo de Bernhard tudo é parcial e transitório), como metáfora de uma outra relação entre arte e natureza (que altera a própria noção de natureza, deslocando-a para o artificialismo da construção). O romance é então como que o contraponto literário da casa a re-construir, mais do que a construir de raiz – como na casa-cone de Roithamer em Correcção, ou na célebre casa que Wittgenstein projectou para a irmã em Viena, que funcionam como contra-utopias racionalistas a que o rigor arquitectónico-musical da prosa de Bernhard, aliás, não é estranho.
O pequeno video que aí está diz isto muito melhor, na sobreposição ritmada de elementos da casa de Bernhard em Obernathal/Ohlsdorf, numa breve visita – apenas exterior – que é como um passeio por um livro seu. Há uma sequência de páginas (fachadas, janelas, portas, ritmos arquitectónicos, a neve), que se sobrepõem e repetem na sua música, acompanhada por outra, música minimal e repetitiva, mas em que cada acorde (cada página) é ouvido (é lida) num momento diferente, encadeada com as anteriores e as que se seguem, como nos livros de Bernhard, em que o efeito de repetição e variação cria no leitor o desejo de prosseguir, na esperança de que o tom, o registo, os conteúdos, mudem. Mas geralmente não mudam, porque são um baixo contínuo com tema e variações em primeiro plano. Este pequeno video da casa é um excelente espelho disso.




THOMAS BERNHARD
Sobre Derrubar Árvores e a irritação/excitação de escrever


A excitação/irritação de escrever um livro. Bernhard fala disso neste video, a propósito do romance Derrubar Árvores. Uma irritação, agora saído na Assírio & Alvim, e que apresentei hoje no CCB.
Traduzo a seguir o que se diz, para quem não o possa acompanhar no seu alemão de austríaco. A dupla «irritação / excitação» explica-se pelo facto de o termo alemão ter os dois sentidos, umas vezes mais um, outras mais o outro...

Jornalista: Esta obra de prosa é parte do seu trabalho de recuperação do passado?

Th. B.: É um fragmento da minha vida. Fragmento decisivo. A certa altura precisamos de… como é que se diz… fixar momentos decisivos. Com a pena, não é, como se diz. Foi isso o que fiz. Com os anos 50. Agora estamos nos anos 80, já podemos ir buscar uns amigos e metê-los entre as capas de um livro… Fixamo-los, fotografamo-los, tornamo-los públicos, é o trabalho do editor… É assim…

Jornalista: Foi o tempo sobre o qual escreveu que lhe provocou irritação, ou o quê…?

Th. B.: Não, foi a recordação. O tempo de há trinta anos já não nos irrita, a recordação dele sim. Tornamo-lo presente e vemos que há aí uma série de feridas mais ou menos abertas, injectamos um pouco de veneno e tudo isso se incendeia e depois nasce daí um estilo irritado. Depois aparece-nos uma série de pessoas, quando as vemos deixam-nos como doidos e depois metemo-las num livro como este, numa irritação, é isso…

Jornalista: Mas quando se escreve sobre o passado, pensar-se-ia que a distância nos torna um pouco mais sensatos…

Th. B.: Isso é o lugar comum do olhar retrospectivo sobre o passado… É claro que está completamente errado. As pessoas velhas podem escrever livros desses, confortavelmente instaladas na sua poltrona. Não é esse o meu estilo de escrita, ainda não - talvez depois de amanhã… Quando escrevo, ainda me irrito / me excito, também quando escrevo um livro assim… fico irritado / excitado. A irritação /excitação é um estado agradável, agita o sangue frouxo, fá-lo pulsar, e a nós faz-nos mais vivos e daí nascem livros. Sem excitação não há nada disto… É melhor ficar logo deitado na cama e não sair de lá. Também na cama nos divertimos quando nos excitamos, não é?, e com os livros é a mesma coisa. Escrever livros é uma espécie de acto sexual, muito mais cómodo do que antes, escrever um livro é muito mais cómodo do que ir com alguém para a cama…

20 novembro, 2007


THOMAS BERNHARD:

Um realismo agónico


Como se pode ler Bernhard? Como uma espécie de música, claro. É o que todos já disseram. Ainda assim, insistamos no truísmo: Bernhard é um orquestrador de linguagem, muitas vezes de farrapos de linguagem. Estrutura polifonicamente o material linguístico, reduzindo-o essencialmente a dois registos: clichés e banalidades (para os desmistificar) e generalizações filosóficas (para as transformar em afirmações apodícticas). E organiza tudo num ritmo redundante, quebrado aqui e ali por catadupas verbais que levam o baixo contínuo da própria linguagem ad absurdum, mas ao mesmo tempo criam efeitos de estranhamento encantatório. As suas personagens são figuras obcecadas e obsessivamente autocentradas que fazem longos monólogos para sugerir que «as palavras com que falamos, na verdade, já não existem» (O Ignorante e o Louco). A salvação estará, quando muito, na música.


E assim é, de facto. Toda a prosa de Bernhard se lê de forma musical (como a pintura de Mark Rothko, que só pode ser vista musicalmente, como o fez, concretamente, Morton Feldmann). Só a entendemos se formos capazes de desfazer os limites entre a chamada literatura e o permanente murmúrio sem sentido, cheio de falsas promessas e de inesperados ritmos, que é a linguagem que usamos dia a dia. A sua música é a do ritmo das suas frases banais. A sua música é a do cantabile de palavras mais que correntes, e que de facto correm, arfando, pelas páginas, criando harmonias e dissonâncias no corpo dos textos. A sua música é a de uma prosa que «floresce e desabrocha como uma bela flor ou uma flor feia, ou como erva daninha. É um texto todo corpo. Podemos citá-lo, podemos conversar horas a fio com frases de Bernhard. Podemos viver com as suas frases» (o actor Bernhard Minetti sobre Thomas Bernhard). A sua música, ou seja: a partitura em que a linguagem se organiza como dissonância ritmicamente estruturada, segundo o princípio da ecolalia até ao limite da irritação ou do cómico – porque tudo é ridículo perante a morte.


Aí convergem então, como tinha de ser numa prosa ficcional em que tudo é autobiográfico, todos os planos do teatro da existência, do de dentro e do de fora; tragédia, tragicomédia, farsa, cegada, grotesco, absurdo. Aproximamo-nos pouco a pouco da ideia de um realismo agónico como referência possível para ler Bernhard. Esse realismo é o da palavra descarnada e repetida, posta na boca de figuras de inclinação solipsística e de condição monologal. A linguagem, espaço por excelência do artifício, e o monólogo, expressão por excelência do solipsismo, convocam todos aqueles planos existenciais (que, na sua pluralidade tensional, traçam o grande arco do mundo), para que nasça um texto radicalmente realista. Em O Sobrinho de Wittgenstein lemos: «Na verdade, amo tudo menos a natureza». E na «narrativa» O Italiano: «Nas minhas peças tudo é artificial». Wittgenstein, ele mesmo, escreveria por sua vez no Tratado Lógico-Filosófico (5.64): «O solipsismo, consequentemente prosseguido, coincide com o realismo puro». É deste realismo da tábua rasa literária (que espelha, sem mediação, o desencanto histórico do mundo do segundo pós-guerra) que fala também Adorno na Teoria Estética a propósito de Beckett, em muitos aspectos irmão mais velho de Bernhard, e mais radical ainda na redução ao absurdo dos mecanismos comunicacionais e do «sentido» da existência. Adorno explica: «No ponto zero a que chega a prosa de Beckett, à semelhança das forças do plano infinitamente pequeno da física, nasce um segundo mundo de imagens, tão desolado quanto rico, um concentrado de experiências históricas… O carácter sórdido e transtornado desse mundo de imagens é a transposição, o negativo, do mundo alienado. Neste sentido, Beckett [Bernhard] é um realista.» O realismo de Bernhard estará então na sua linguagem não literarizada, mas artificializada ao ponto de se tornar reconhecível, no seu estranhamento quase caricatural, como sendo a do mundo. Também o Tratado de Wittgenstein já vê a linguagem como espelho do mundo, um seu modelo. Um simulacro e um sucedâneo, portanto. E Bernhard: «Tudo o que se diz é citação» (em Caminhar). Ainda como Beckett, Thomas Bernhard leva à prática literária aquilo de que muitos falam e procuram «representar», mas poucos mostram no plano concreto dos signos e da frase (menos que todos os que escrevem, ainda, romances de teor «realista»). «O que se reflecte na linguagem, ela não o pode representar», e «Aquilo que se pode mostrar não se pode dizer» (Wittgenstein, Tratado, 4.121 e 4.1212).
O que nos livros de Bernhard se mostra é então como um círculo (vicioso), a linguagem e as suas insuficiências e redundâncias, no interior de outro círculo (viciado), o mundo a marcar passo, que o outro realismo julga conhecer, o mundo que não é «o desconhecido que nos acompanha», feito de múltiplas estéticas e «puramente estético», como diria Maria Gabriela Llansol. Nisto, a estrutura de um livro de Bernhard revela subitamente paralelos evidentes com a novela clássica, que Goethe definia como o desenvolvimento e a amplificação de um «acontecimento insólito»: a partir de um centro obsessivo vão-se formando ondas concêntricas, mas de órbita irregular, semelhantes, mas de amplitudes diversas, que conferem às obras de Thomas Bernhard a sua natureza constitutivamente redundante (e às de Llansol a impressão de intensidade em permanência). Ler Bernhard seria então descobrir esse núcleo central e seguir os círculos que dele nascem e constituem o mundo próprio do romance, das suas figuras (e do seu autor). O resto, o que está fora dos círculos desse mar de linguagem, é… o mundo – que não existe, ou não interessa, ou, se esse mundo for a Áustria, é objecto de amoródio. Inesperadamente, encontram-se assim dois autores tão distantes como Bernhard e Llansol: penso que Thomas Bernhard não rejeitaria a ideia de que o mundo é puramente estético – ou pelo menos o desejo de que assim fosse. E Llansol, como Bernhard (e Wittgenstein), extrai desse pressuposto conclusões de natureza ética, que orientam todo o seu projecto de escrita e de vida. O grande escândalo, para um mundo de gerentes da arte e merceeiros da cultura (como Bernhard em grande parte o via), esteve sempre no facto de o romancista austríaco transformar em obsessão e em razão de ser de uma vida e de uma obra o que para o seu «modelo» implícito, Ludwig Wittgenstein, era um postulado filosófico: que «a ética e a estética constituem uma unidade» (Tratado, 6.42). Em Bernhard, a ascese e a depuração da linguagem, e o modo hiperbólico, excessivo, do seu uso espelham um modo (ético) de estar no mundo. Porque – e nisto encontram-se os três autores que aqui convoco – a obra é o objecto visto sub specie aeternitatis, e a «vida correcta» é o mundo visto sub specie aeternitatis. A ética de Thomas Bernhard é a da sua arte e, podíamos acrescentar, a do seu excesso num mundo de tibiezas e hipocrisia. Tanto a arte como a loucura criam ilhas de isolamento, até à morte (esperada e quase preparada numa corrida agónica), em relação à festa sem sentido, vazia e desprezada, da sociedade dos outros, criando uma muralha chinesa em torno de uma existência intransigentemente individualizada.


O isolamento solipsista e a intervenção social radical (sempre por via da arte, não como manifestação «política»), expressos no registo monológico e no gesto hiperbólico da prosa de Bernhard, trazem a marca do absoluto e da radicalidade na sociedade dos compromissos e das concessões fáceis. E são fonte de grandes contradições (muitas vezes deliberadas) na obra deste espírito demolidor, do seu acabado niilismo e da sua encenada imperfeição. Mas é precisamente esse registo monologal, essa linguagem da obsessão alucinada, que salva a obra de Bernhard da queda no realismo banal e a torna inconfundível (e a muitas das suas personagens de romance e teatro, que, no entanto, quase sempre se afundam). Esse círculo interior da linguagem é o do despojamento, da redução e da redundância, em blocos encadeados que se fixam muitas vezes em «balões de linguagem hiperdimensionais», à semelhança da banda desenhada. A originalidade desta Obra estará então numa das suas contradições de fundo: a da obsessão da escrita como fracasso necessário. Há paralelos noutros autores do século XX, austríacos e não só (Ingeborg Bachmann ou Robert Walser, Kafka ou Pessoa). É a originalidade da «genial imperfeição» (a expressão é usada pelo narrador do romance Betão) de um autor que conseguiu fazer de uma fórmula a que desde cedo aderiu livros sempre iguais e sempre diferentes, optimizando o princípio da variação. É, no fundo, o caminho dos grandes autores, que desde sempre reflectiram sobre os paradoxos e as contradições de existências que não decidimos, e sobre os imprevisíveis mecanismos ou imperativos da própria escrita, por vezes nos limites do insustentável.


(no Jornal que acompanha o Ciclo Thomas Bernhard, iniciado ontem no CCB)

Na segunda-feira, 26 de Novembro, às 18 horas, na Sala de Leitura Jorge de Sena do CCB, apresento o romance de Bernhard acabado de sair em tradução portuguesa, Derrubar Árvores. Uma irritação. Trad. de José António Palma Caetano, Assírio & Alvim:


De Bernhard saíram em tradução portuguesa os seguintes livros, que o jornal do CCB anuncia (e mais dois: Betão, em tradução de Maria Olema Malheiro, nas Edições 70 em 1989; e O Fazedor de Teatro, com tradução de Idalina Aguiar de Melo, Aveiro, Livraria Estante Editora, 1987):

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03 novembro, 2007

CRÓNICA DA CASA FUTURANTE

O plano do mundo à imagem das palavras



(VIII)
A terrina cor-de-rosa

Ficou ali, do último jantar. Canja de galinha com miúdos. Um jantar comum naquela casa: a avaliar pela foto de família, umas oito pessoas à mesa.

A mesa: poderia ter sido feita pelo meu pai, não é muito diferente da que havia na nossa casa de jantar. O conjunto, o travejamento da base, trazem a marca dos anos cinquenta. O design ainda não tinha nascido, mas havia um saber funcional e estético adquirido e transmitido que dava a muitos móveis uma indiscutível justeza de aspecto e função. O óbvio ganhava forma, e estava aí para durar. Vinham longe ainda os tempos do capitalismo do descartável (a expressão é, no fundo, uma tautologia!). Só os pares de perninhas suplementares, afiladas, nos topos de uma mesa que nem é assim tão comprida, me causam engulhos e destoam: nunca poderiam ser obra da oficina do meu pai. Excrescências enigmáticas, numa casa carregada de enigmas.

A sopa na terrina, essa não seria, afinal, para o jantar: os hábitos de então situavam essa refeição pelas cinco da tarde. Antes ceia, pelas nove da noite, mais coisa menos coisa. Mas uma ceia, pese embora a aura mais solene do termo, ainda por cima em dia comum, não tem história. Uma terrina abandonada, sentinela resistente à espera do último conviva, décadas mais tarde — essa sim!

Ficou aberta, a tampa à distância, desterrada para uma ponta fria da mesa, no meio de estranhos objectos de metal e de restos. A forma, e sobretudo a cor, delicadas e humanas, no lugar certo do humano, nem baixela, nem inox, falam-me ainda e sempre da alma delicada da mulher da casa (não sei se não a imagino e reconstituo à imagem da minha mãe...) — o olhar zeloso, o passo leve, as mãos seguras que podem ter acariciado o esmalte das asas no caminho da cozinha até à mesa.
Outras terão sido as mãos, mais rudes — e porventura mais felizes — da cozinheira que matou e depenou a galinha, a chamuscou e arranjou, separou miudezas e patas para a canja, fez o guisado ou a cabidela. Que dizem as mãos de uma cozinheira num lugar destes, há cinquenta anos? Falam de cores e cheiros e artes que se perdem no tempo. Gritam carências. Silenciam revoltas.

Como a terrina cor-de-rosa. Ficou ali em protesto, ostensivamente a marcar o seu território abandonado. Não tem já, como as suas irmãs das origens — mais genuínas, mas também mais vulneráveis —, corpo de terra (barro), mas é bela como as mais belas, na harmonia de pé, braços e bojo (busto), no brilho discreto e quase erótico da conjunção do branco quente da pele de dentro com o rosa velho, pálido, da capa de esmalte. É o centro resplandecente das ruínas. O seu destino está traçado: servirá de pátera no sacrifício ritual que um dia ditará o fim definitivo da casa futurante.

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01 novembro, 2007

ANIVERSÁRIO COM (A) POESIA


O «Escrito a Lápis» faz hoje um ano.

Acendo-lhe uma vela com um livro de poesia, o último que li, ontem, no comboio para Sintra e lá mesmo, sentado no rebordo de pedra de um gradeamento. É o livro de um poeta que escreve sabendo que a poesia não é importante, e em nada influi no estado do mundo. Esta é a poesia que é possível escrever ainda – possível e necessário, embora o poeta não o diga, nem precisa, porque faz muito mais, insistindo em mostrá-lo com mais este livro –, num tempo que lhe voltou costas e num lugar de onde ela emigrou para outras costas, as de lugares ditos mais atrasados, onde ainda alimenta ilusões e onde sobrevive com alguma pujança ingénua.
Ler poesia hoje, mesmo aquela em que a morte é o único interlocutor possível – e essa parece ser a única poesia provável, i.e. tragável e à prova de prova – é entrar num espaço acentrado e raro, quase feliz. A poesia, esta poesia, é para ler sentindo o equilíbrio instável de estar no mundo hoje e aqui – como eu, na trepidação do comboio ou sentado no rebordo estreito, de pernas estendidas e atrapalhando as pessoas que transitavam no passeio, elas quase tropeçando em mim, eu tropeçando nas palavras sóbrias de poemas de sobre-viver. Hoje, ler poesia, só em espaços sem GPS, onde nos sentimos «perdidos, e a gostar de nos perder». Bem no meio da «barbárie do bem-estar / e dos fossos da democracia». E sabendo que, num tempo cheio de certezas e num «país de restos de palavras», a poesia é cada vez mais aquilo que, com uma vénia inócua ou um sorriso indulgente, se deixa sempre para outro dia — as mais das vezes para nenhum.
Assim seja.
Afinal, «os poetas não passam de estátuas inúteis num jardim / concebido por bestas que nem sequer os leram» (leia-se: o Parque dos Poetas, na Oeiras de Isaltino, ou: o gigantesco lunaparque em que vivemos).
E agora, para abrilhantar a festa de aniversário com uma pirueta-no-real à altura da melhor poesia de sempre, leio o último poema do livro, intitulado

ERRATA

Onde se lê Deus deve ler-se morte.
Onde se lê poesia deve ler-se nada.
Onde se lê literatura deve ler-se o quê?
Onde se lê eu deve ler-se morte.

Onde se lê amor deve ler-se Inês.
Onde se lê gato deve ler-se Barnabé.
Onde se lê amizade deve ler-se amizade.

Onde se lê taberna deve ler-se salvação.
Onde se lê taberna deve ler-se perdição.
Onde se lê mundo deve ler-se tirem-me daqui.

Onde se lê Manuel de Freitas deve ser
com certeza um sítio muito triste.

(Edição: Teatro de Vila Real, 2007)
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