19 maio, 2014

AS NUVENS E O VASO SAGRADO
Um livro de 
Maria Filomena Molder

Apresentei há dias mais um livro de Maria Filomena Molder, na Livraria Ler Devagar da Lx-Factory. Fica aqui o essencial do que disse na ocasião.

Pergunto-me por que estou eu aqui, para comentar um livro que, entre os já muitos de Maria Filomena Molder, convoca matéria mais estritamente filosófica e aparentemente «especializada». E encontro uma resposta múltipla, que porventura contém um leque de razões que poderão também esclarecer alguns dos laços, mais visíveis ou mais escondidos, que nos ligam.
1º – Ambos temos vindo, desde há uns 20 anos, a encontrar-nos, a cruzar-nos, a trocar acenos, numa conversa «finita», por vezes ao vivo, as mais das vezes à distância, uma discreta troca que desde há algum tempo vemos como um diálogo sottovoce, ou uma «troca verdadeira» (diria Llansol) alimentada por interesses comuns e convergências de caminhos, cada um pelos seus atalhos próprios: em torno de Goethe ou Benjamin (mais evidentes), mas também de Nietzsche ou Wittgenstein, de Hofmannsthal ou de Broch, de um ilustre desconhecido que descobrimos quase em simultâneo já há muitos anos, o Roberto Bazlen de Note senza testo; e os encontros passaram também pela discussão do «estado da arte» contemporânea e da atracção comum por alguns artistas, que podem chamar-se Rui Chafes ou Aleksandr Sokurov; ou ainda – last, not least – pela nossa posição comum de desacordo frontal com essa coisa a que se chama novo Acordo Ortográfico!
2º – Para além destes laços pessoais mais ou menos acidentais (mas, como diz um filósofo alemão contemporâneo, Odo Marquard, «somos mais feitos de acasos do que de escolhas»), talvez nos aproxime também aquilo a que J. Habermas chamou um dia a «coragem do diletantismo», no sentido mais nobre e próprio da palavra «diletante», o que tem a ver com a escolha daquilo e daqueles que nos são mais dilectos – o que, em última análise, nos podia levar já à página de abertura deste livro e ao sentido que, aí, a Filomena dá à palavra «leitura»  (lá iremos).
3º – Este diletantismo (ou «amadorismo», que também poderíamos usar a propósito de Goethe, como já fiz em tempos num ensaio que intitulei «Goethe, o eterno amador»), que afinal mais não é do que a nossa forma de responder a alguns apelos mais fortes, condiciona, por um lado, a imagem que por vezes de nós se faz – a Filomena confessa que já lhe têm perguntado se é «germanista» (como se sabe, uma espécie entretanto extinta), eu próprio já fui visto como «filósofo», ou poeta escondido; por outro lado, há um método – de escrita, de pensar – que decorre deste hibridismo. Falarei mais dele a propósito deste livro, mas deixo já a ideia de fundo: o método da Filomena Molder (em parte talvez também o meu) é, nas respectivas áreas mais específicas, se é que as há, atípico e des-concertante.
4º – Finalmente, aproxima-nos uma amizade entretanto cimentada. Mas isso não vem agora ao caso, tendo tudo a ver com o acaso de eu me encontrar aqui.


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Que livro é então este?
Começaria por dizer o que ele é, mas também o que ele não é – porque, como diria o Wittgenstein do Tratado, o que lá não está é que ajuda a descobrir melhor a marca distintiva da escrita da autora.
Vejamos então: à superfície, a um primeiro olhar, este livro reune um conjunto de intervenções sobre Goethe e Kant, textos quase todos com destinatário à vista (colegas de profissão, professores e estudantes de Filosofia) e com uma destinação própria: um colóquio, uma homenagem, um volume colectivo... Ele é isso na ordem da circunstância. Mas, visto por dentro, lido (ou, na origem, ouvido), isto é, na ordem da sua forma interior ou da sua essência, ele deixa de ser um mero conjunto de textos sobre temas filosóficos, destinados a especialistas, para passar a ser um livro de ensaios de Maria Filomena Molder (com todos os riscos assumidos que o ensaio comporta); ou, se colocarmos o Eu à distância, uma fascinante travessia da própria forma, de uma forma própria, do pensar. Para lá dos seus objectos – neste caso sobretudo Kant (e a estética) e Goethe (a obra científica, mas não só); isto para não falar de outros que, incognito ou de passagem, com eles se cruzam (a Filomena lembra alguns, como Benjamin ou Schiller) – para lá dos seus objectos imediatos, mas ao mesmo tempo sem que seja possível ignorar que há objectos preferenciais e concretos desse pensar, que são a Terceira Crítica de Kant e, em Goethe, todo o espectro do seu pensamento morfológico e a Teoria das Cores.
E que forma própria de pensar é esta? É aquela que é capaz de fazer do métier do filósofo uma flânerie rigorosa do pensamento, a arte (como diria Benjamin) de saber perder-se e encontrar-se na floresta das ideias e das suas manifestações sensíveis, em particular a própria arte. Flânerie do pensamento e também da inteligência, se olharmos para a raiz desta palavra: uma deambulação livre (bem mais livre do que a de muito discurso filosófico fechado sobre si mesmo) por entre matérias, percepções, figuras que se escolhem e se apanham – como diz o verbo legere – numa colheita pessoal.
Ainda assim, este é um livro de MFM que, muito mais do que outros seus, se move adentro dos limites do trabalho filosófico mais estrito. Quero dizer que discorrer sobre Kant, ou também sobre a obra científica de Goethe, implica um discurso apesar de tudo mais «técnico» do que falar das «matérias sensíveis» das artes, do «Semear na neve» dos temas benjaminianos, ou mesmo de toda uma «arqueologia do século XIX» (e do XX) subjacente ao seu Baudelaire, e poderá parecer um terreno mais árido do que o das assumidas «Imperfeições da Filosofia», ou desse maravilhoso e aliciante livrinho sobre Símbolo, Analogia e Afinidade, em que a Filomena faz ou refaz os seus caminhos entre Kant e Goethe, Benjamin e Aby Warburg, e onde dou também com algumas encruzilhadas pelas quais eu próprio fui passando.
Esta mobilidade, uma capacidade única, ou quase, entre aqueles que operam no campo filosófico estrito (mas – o que é isso, perguntará a Filomena, e com ela mais alguns, como Fernando ou José Gil?) – essa capacidade é certamente uma das marcas mais visíveis e determinantes do modo de dar forma escrita ao pensamento, e corpo pensado à escrita, por Maria Filomena Molder. Com esta dupla formulação estou a chamar a atenção para qualquer coisa que nem todos os filósofos conseguiram realizar da mesma maneira: levar á prática e às últimas consequências a unidade intrínseca entre língua e pensamento. A Filomena fala disto na nota de apresentação do livro, tem consciência plena da língua que nos escreve, sobretudo quando metemos por caminhos que «não vão a direito». Na história recente da Filosofia são visíveis algumas diferenças que mostram como alguns dos grandes abridores de brechas, ou «matadores de dragões» (como Kant) foram aqueles que melhor souberam usar a língua – a sua, e não uma qualquer língua franca da comunicação, mas não do pensar, como o inglês de hoje (Spinoza foi um caso à parte de desterritorialização, entre línguas – o português, o neerlandês, o hebraico –, como o não foi Descartes no seu tempo, e isso o levou a escrever no seu latim tão peculiar). De resto, Kant escrevia melhor do que Hegel, Nietzsche entra na Enciclopédia Brockhaus de inícios do século XX como grande estilista da língua (como acontece com Freud, mas já não com Husserl), Schopenhauer é muito mais aliciante do que Nicolai Hartmann (que dá a conhecer a sua obra maior), Benjamin ou Ernst Bloch usam a língua como Adorno nunca o fez.
A Filomena é desta estirpe: uma filósofa que dá gosto ler (ou ouvir), porque nela a argúcia do pensar, a originalidade do ponto de vista e o prazer do texto são inseparáveis. Talvez porque aquilo que lhe interessa, nomeadamente neste livro – pensar a forma – é impensável apenas «filosoficamente», já que, como ela reconhece, isso tem de passar pelo corpo e pelas suas energias (o que, por sua vez, nos reenvia novamente para esse outro filósofo que habitou as margens da Filosofia, de seu nome Baruch Spinoza...).
De facto, Maria Filomena Molder faz com a Filosofia o que Benjamin fez com a História – escova-a a contrapêlo, contra a corrente. Mas, tal como Benjamin faz com a Filosofia da História, isso acontece adentro dos mais estritos e rigorosos limites da Filosofia ou da Estética. É este o milagre...
Ora, tudo isto pode ter a ver com um método de pensamento (= um caminho próprio) avesso ao sistema conceptual e axiomático. Para o mostrar, podíamos analisar os modos como, ao longo do livro, se vão fazendo as mais diversas incursões pela Crítica de Faculdade de Julgar de Kant, ou pela Obra – toda a Obra – de Goethe. Mas bastará olhar para o subtítulo do livro e para o que a Filomena sobre ele diz logo a abrir: «'Kant e Goethe. Leituras', o que não é propriamente o mesmo que 'Leituras de Kant e Goethe'». Que significa esta diferença subtil? Significa toda a diferença entre Maria Filomena Molder e outros, como sugeri. Uma diferença decisiva nos modos de ler – e de escrever. «Leituras de» instaura imediatamente, em relação ao objecto, a determinação, o comentário que fixa. Dizer «Kant e Goethe. Leituras» abre, diria a «minha» Maria Gabriela Llansol, «as dobras que apuram o silêncio» – o do texto que se lê e o do pensamento que sobre ele e com ele se produz. A Maria Filomena Molder, sabemo-lo, não lê como os filósofos encartados, nem o mesmo que eles. «Ler», como um dia escreveu ainda Llansol [que, lembre-se, Gonçalo M. Tavares já tratou, num pequeno livro a que chamou Ligações, a par de M. F. Molder e María Zambrano], «ler é nunca chegar ao fim de um livro» (Amar um Cão), «ler estende-se por vertentes desconhecidas, e eu leio pouco, mas infinitamente. Desses metais preciosos escolho um metal, e torno-o integralmente minha estrela.» (Finita). E a Filomena, numa imagem igualmente sugestiva: «fazem-se as leituras por coagulação, sem plano prévio, de centros de atracção e irradiação que vão largando vestígios, alguns destroços, coisas perdidas...», etc.


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Voltemos ao método sem método (= sem sistema) de MFM neste livro. Podíamos começar por perguntar que aspectos ou vias de acesso privilegiam estes ensaios no tratamento das duas figuras de que se ocupam, com quem convivem: Kant, com destaque maior para a Terceira Crítica; e Goethe, todo o Goethe, pois é difícil separar nele pensamento e arte, ciência e acção prática, o que equivale a dizer que, ao falarmos de Goethe, estamos a falar de todos os campos do saber e do fazer! Há, no entanto, como já referi, uma presença maior da chamada obra científica, nomeadamente A Metamorfose das Plantas e a Teoria das Cores (de que a Filomena já se ocupara nesse opus maior que é a sua tese sobre O Pensamento Morfológico de Goethe, e também na tradução e comentário de A Metamorfose das Plantas).
Pergunto então: o que interessa mais a MFM nestes autores clássicos, e que faz ela com eles? E responderia, em síntese:


Em Kant:
– precisamente o lado «problemático» (= o que nos coloca diante de obstáculos) do sistema, e a instabilização do cânone kantiano;
– a necessidade de, muitas vezes por uma via «parabólica», clarificar alguns enigmas que subsistem, ou que se descobrem aqui, da filosofia kantiana;
- ou, pelo olhar atento às palavras e aos conceitos, pelo gosto filológico do filósofo, traduzir o corpo das palavras em pensamento (um pouco à maneira dos Gregos e de Heidegger), evitando a reflexão abstracta. As reflexões sobre Kant são aqui exercícios de releitura, quase sempre à margem do comentário filosófico mais habitual, que permitem re-situar, ver a outra luz e a partir de um pormenor, questões essenciais da estética kantiana (e da que daí deriva);
– por exemplo, a reflexão vista, não como uma actividade antagónica da intuição sensível, mas como «uma relação feliz do ânimo (Gemüt) consigo próprio e com o mundo» (p. 99) – o que pode significar toda a diferença quanto à questão das relações entre sensível e inteligível/mental.
– Ou: o modo surpreendente como, com uma dada palavra-chave (belo, beleza), nos leva, a partir de Kant e já nele, para a indeterminação moderna daquela categoria que Benjamin usa para a poesia de Hölderlin, das Ausdruckslose, o «sem-expressão» (a que eu por vezes chamo «o grau zero da expressividade»), ou também para o problema do indizível – que é afinal visível do outro lado do muro, no Tratado de Wittgenstein (ou no símbolo, como tão bem dizem as últimas linhas do Fausto de Goethe).
André Masson, Goethe, ou La métamorphose des plantes (1940)

E em Goethe, que aspectos se exploram?
– Aqui, é a permanente (e necessária) passagem de fronteiras, a metamorfose como lei;
– ou: a desconstrução da ideia do «especialista», deixando a especialização e entrando em formas muito sérias de «amadorismo»;
– Daqui segue-se: o desfazer de todos os dualismos substituídos por um duplo princípio goethiano de polaridade e intensificação ou potenciação. A partir destes princípios abrem-se caminhos que os ensaios do livro vão explorando: o nascimento do poeta anti-clássico e não necessariamente romântico, mas demoníaco (na figura de Tasso, num ensaio que serviu de prefácio à minha tradução para a encenação de Jorge Silva Melo em 1999); a antecipação da História como narrativa problemática em cujo centro está o ponto de vista e não o facto (um «perspectivismo» avant la lettre?); a oscilação entre e a coexistência de forças aparentemente antagónicas: o impulso vital, de um lado, e a consciência do transitório e da morte, do outro (muito importante para contrariar a imagem apenas olímpica de Goethe).

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Encontramos assim no livro, como traço comum a todos os ensaios, a existência de uma relação própria, e muito particular, entre o sujeito e o seu objecto de pensamento, de análise, de evocação, que resumiria assim: essa relação não se processa, nem pela via da mera empatia desproblematizada (a empatia contém sempre um momento de cegueira), nem pela desumanização do pensamento: tende sempre a iluminar com benevolência e olhar crítico (e uma coisa não anula a outra), a imagem dos seus autores, de modo a desfazer lugares-comuns ou imagens feitas – sempre redutoras e acríticas. É assim que a Filomena não poupa adjectivos generosos quando admira, nem palavras críticas quando, com razão, questiona (por ex. a evidência da tradução errada do Menschliches, allzumenschliches de Nietzsche por Humano, demasiado humano, quando de facto se trata de Coisas Humanas, demasiado humanas!). É assim que Goethe, reclamado por alguns como «alemão» por excelência, nos surge aqui na sua verdadeira dimensão, universal e europeia, a par de Dante ou Shakespeare; e é assim também que o poeta olímpico e luminoso nos é dado nos seus momentos humanamente menos heróicos, por vezes mesmo muito próximos daquilo que ele sempre quis evitar – um sentimento trágico do mundo. É assim também que Kant e a sólida construção do seu sistema crítico são quase sempre abordados em alguns dos seus recantos escondidos, instabilizando o sistema e sugerindo que também aqui «deus se esconde no pormenor».
Se a isto acrescentarmos alguns temas, motivos e posturas dominantes, poderemos ir chegando perto disso que designei de método sem método de Maria Filomena Molder. Por exemplo:
– a busca dos limiares, do instável e do infixo – um topos muito benjaminiano, mas também já kantiano, como deixa perceber o primeiro ensaio («A única comunidade humana») e também o 2º capítulo, sobre «A imaginação na Crítica da Faculdade de Julgar», com Kant a redimir «as inquietas passagens entre o visível e o invisível» (p. 23);
– o fascínio pelo símbolo, que é o outro da linguagem, ou a essência da plenitude inatingível, mas dizível, ou sensível dessa mesma linguagem, precisamente no símbolo;
– a especulação (= reflexo no espelho do pensar) filosófica sobre as palavras, não apenas os conceitos, mas também as palavras comuns. Ou seja: um entendimento da Filosofia como modo de indagação dos «modos sensíveis do pensar», levando por ex. a que o conceito de «fundamento» (Grund) possa (re)nascer a partir de um processo importante da estética kantiana como uma hipotipose (=colocar a coisa sob o olhar): aqui, a dessa palavra Grund colocada sob o nosso olhar com todo o peso do seu corpo obscuro, da terra de onde emergiu, dos seus usos... (p. 27, 29).

É por estas e por outras, talvez, que a filósofa MFM navega tanto, e tão bem, pelas águas da literatura, da poesia e das artes. Nisso, leva à prática o postulado kantiano da possibilidade, e necessidade, de revelar no sensível o invisível ou inteligível. E confirma novamente a «minha» M. G. Llansol quando fala da «explosão do sensível» que «ilumina completamente, sem causa e sem efeito» (Onde Vais, Drama-Poesia?, p. 141); ou mais claramente ainda, quando escreve: «reparar no real faz eclodir o real que, no invisível, lhe corresponde» (O Senhor de Herbais,  p. 246).
E é isto que confere um tonus inconfundível à reflexão filosófica de MFM entre nós: essa sua capacidade de juntar a limpidez do pensamento, uma certa efabulação que humaniza as ideias e o mot juste, para pôr em cena/em acto o conceito (talvez melhor, com Goethe e Benjamin: a Ideia por detrás do fenómeno), evidenciando o que, para outros, é um quase impossível: a sedução do pensamento a fazer-se, o lado quase mágico, e mais humano, da Filosofia (como a Filomena um dia tão bem mostrou nesse texto-parábola de A Imperfeição da Filosofia que traz o título socrático: «Escutaríamos nós um carvalho ou uma pedra, se eles dissessem a verdade?»).
E quando fala de poesia, de textos da imaginação em geral (de Goethe, Dante, Broch, Jorge de Sena...), MFM revela ainda uma outra faculdade muito própria, que em geral os filósofos mais analíticos conhecem menos: a de, num discurso de cumplicidades intuitivas (com outros grandes leitores das mesmas obras), ocupar todo o cerne da obra, e iluminá-lo no que nele é determinante e essencial. Já a ouvi falar assim da Comédia de Dante, do Fausto de Goethe e de Sokurov, dos Sinais de Fogo de Jorge de Sena, de Baudelaire ou do Gilgamesh. O método da Filomena nessas leituras – se de método se pode ainda falar – é muitas vezes mais parabólico ou alegorizante do que analítico ou normativo – e é isso que torna tão aliciantes as suas incursões, frequentes, mais do que acontece geralmente com os filósofos, pelos territórios poéticos.

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 Goethe: desenho de nuvem (stratus: banco de nevoeiro)

Kant, Edição original da Crítica da Faculdade de Julgar

Permitam-me que termine voltando ainda a Llansol e às suas «ligações» com a escrita e os «objectos principais» (um eco de um poeta-filósofo, A. Franco Alexandre) do pensamento de MFM. Pode dizer-se que, no percurso da Filosofia, esses objectos convergem para um campo a que, já um pouco antes de Kant, a partir de Baumgarten, no século XVIII, conhecemos sob o nome de Estética. Acontece que há poucos dias encontrei num dos cadernos manuscritos do espólio de M. G. Llansol uma definição – na verdade, um pouco mais do que isso – de «Estética» que, penso, nos serve na perfeição aqui. Diz ela (e ouço aí a Filomena): «A estética é uma brecha para contemplação maior – para além da própria estética (...) –– o inexplorado do inexplorável deste universo»! (Caderno 1.72, pp. 197-198, 20 Fev. 2006).
A definição serve como uma luva às escolhas e ao método sem sistema de MFM, e os ecos são evidentes logo no primeiro texto do livro.
Nesta linha – a de um entendimento da estética para além de si própria, para dar a ver «o inexplorado do inexplorável deste universo» (que o mesmo é dizer: a Natureza, ou, com Kant: as coisas inexpugnáveis em si) –, nesta linha, podemos dizer que o fio condutor da maior parte dos ensaios deste livro será o da tensão, e da confluência, entre natureza e arte, melhor: entre as ideias de natureza e a essência e as manifestações do estético – que o mesmo é dizer ainda: a totalidade do ser e do humano: aquilo que é e a sua trans-formação; a physis e a forma; a empiria (a «suave empiria» das Máximas de Goethe) e a theoria.
Melhor ainda, e para convergir com o enigma do título do livro (que a Filomena também preferiu guardar para o fim), entre as Nuvens (na sua permanente mutação) e o Vaso Sagrado (metáfora para o crânio de Schiller e a sua forma e significação secretas – geheim Gefäss – no poema de Goethe, depois da morte do amigo).
Quaisquer que sejam os nomes que lhes dermos, os dois domínios encontram-se e complementam-se naturalmente no pensamento de MFM, como já acontece em Goethe, que lhe deu expressão num célebre poema intitulado «Natureza e Arte». Deixo-vos com esse poema – que, em certa medida, é também muito kantiano –, porque acredito que ele, no essencial, constitui uma espécie de súmula e espelho final do modo de pensar e estar no mundo que é o da minha querida amiga Filomena:

Natura e arte...

Natura e arte parecem não se dar,
E sem darmos por isso se encontraram;
Também as dúvidas em mim se dissiparam,
E ambas recebem de mim igual favor.

Esforço honesto é o que conta, com certeza!
E se, nas muitas horas que contamos,
De corpo e alma à arte nos damos,
Ao coração, livre, volta a natureza.

E assim é com toda a formação:
O espírito sem regra bem anseia
À perfeição chegar – é veleidade.

Toda a grandeza exige contenção;
Sabe aceitar limites a mestria,
E só a lei nos dá a liberdade.

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