21 outubro, 2013

EUROPA – UM SONHO?

Abri um novo caderno da «Escrita dos dias» com notas tomadas no sábado no Teatro S. Luiz. Escrevo hoje quase sem organizar o pensamento, a quente em cima dessas notas. Eduardo Lourenço e Rui Tavares conversaram (lamentavelmente, apenas entre si, ou cada um por si) sobre Portugal e a Europa. O pretexto foi a representação, pel' O Bando, de uma adaptação cénica de A Jangada de Pedra, de José Saramago.
A discussão foi esclarecedora – de algum modo contra a corrente dominante do «apocalipse alegre» que informa estes tempos do fim, porque não se limitou a questões de circunstância, indo às raízes e a alguns nódulos históricos de onde irradiaram processos que explicam parte da situação da Europa actual. A sessão foi ainda esclarecedora porque não teve a ilusão de esclarecer nada em definitivo. Discussões destas são produtivas precisamente por isso – porque, não fornecendo receitas, estimulam o pensamento, coisa cada vez mais rara nas visões estreitas, ditas «pragmáticas» e «realistas», mas de facto limitadas, de políticos e comentadores que, cegos pelo que julgam ser a realidade do mundo, perdem de vista o real e nos massacram dia a dia com números, discursos de ressentimento e ajustes de contas, nem sequer disfarçados.


Mas voltemos ao motivo da conversa, a alegoria político-ideológica de Saramago, e a algumas interrogações que, a partir deste romance, me suscitaram os monólogos de Eduardo Lourenço e Rui Tavares. E a primeira é esta: a ideia de fundo de Saramago, de um regresso à nossa «vocação atlântica», não será, em si mesma, regressiva e anacrónica? O «caminho da água» sempre foi o da nossa glória e perdição, e não seria uma hipotética «Confederação Ibero-afro-americana» (sugerida na conversa por Rui Tavares) que iria mudar as coisas – se fosse viável, coisa que não é, se pensarmos no estado deplorável das nossas relações com Angola e mesmo com o Brasil (para não falar já da constelação mundial, que deslocaria inevitavelmente o centro dessa ilusória confederação, da Europa para um dos chamados «países emergentes» – não vindo daí nenhum mal ao mundo, diga-se!). Por outro lado (o que torna ainda mais dúbia a ideia de fundo do romance de Saramago), o «Iberismo», a que Rui Tavares chamou uma «ideia castiça», é um velho sonho irrealizado (vd. Oliveira Martins, Natália Correia, Torga e outros), a que nós próprios démos o golpe de misericórdia com a fatídica «restauração» de 1640. Depois, como foi recordado, Pombal baniu o «gosto espanhol» para impor o seu, e o século XIX do nosso atraso (apesar do liberalismo) cavou mais o fosso que nos separaria dessa estranha realidade chamada «Europa», culminando na grande lamentação e imprecação pós-ultimato, por uma minoria de «vencidos da vida» (coisa mais nossa não há!). O «orgulhosamente sós» de Salazar só agravou o atávico provincianismo do «caso mental português», e o 25 de Abril, a grande ilusão de uma «revolução», passada que foi a fase da sua «doença infantil» de imitação, abriu as portas a outras ilusões, as do consumismo desenfreado sem suporte económico e produtivo a sério, que deu no que deu – na «miséria alucinada» e triste em que vivemos (como já previu Maria Gabriela Llansol, uma escritora política que, não falando da política deste país, a denunciava, numa grande entrevista em 1995).
O «iberismo» de Saramago (lá bem no fundo, talvez a sua forma de responder á entrada de Portugal na Europa, contemporânea da data de publicação do romance) não tem, de facto, qualquer viabilidade na era global. Talvez antes uma «via mediterrânica», com o seu way of life próprio, antiquíssimo e matricial, onde sempre estivemos mais em casa. Mas também essa via seria hoje problemática, e o seu grande problema, a sua maior pedra no sapato, chama-se Islão, essa outra metade do Mediterrâneo que, quer se queira, quer não, é parte inalienável desse grande espaço cultural.


A grande questão que esteve subjacente à conversa de Eduardo Lourenço e Rui Tavares com Ana Sousa Dias, mas que não foi suficientemente debatida, foi, para mim, a daquilo a que chamaria o descentramento da Europa. A «crise» actual explica-se, de facto, em grande parte por uma mudança de paradigma em curso nas últimas décadas, consubstanciada na viragem radical de uma economia ainda de troca para dominantes macroeconómicas financeiras e especulativas cada vez mais abstractas; e provavelmente também na «americanização» definitiva (já nos anos vinte se falava de americanização da Europa!), à escala global, que acabou por voltar o feitiço contra o feiticeiro. Neste grande processo de mudança, a Europa limitou-se a ser o aprendiz de feiticeiro malgré lui, e não deu por que a vassoura começou a varrer sozinha, fora do seu controlo!


A raiz mais funda da crise será provavelmente esta, e sendo assim de nada serve falar da necessidade de abolir ou deslocar os velhos paradigmas das «fronteiras», sejam elas quais forem. A Europa anda confusa com este descentramento que a atinge no que ela mais preza e julgava intocável – o seu, nosso, proverbial eurocentrismo (sempre associado a uma qualquer noção de superioridade, nem que seja já só moral – hoje já nem isso). Provavelmente, o desafio irá ser, no futuro próximo, o de repensar e refazer o equilíbrio entre o local e o global, com o reforço do local apesar da força e da supremacia reinante do global.
Rui Tavares insistiu muito na necessidade de reforçar uma ideologia da fraternidade, como condição de progresso social e humano. Visão algo ingénua, quando se sabe que os afectos não são os interesses, e que não há comunidades fraternas de interesses! E que a noção de «progresso» é instável e dúbia (apesar de o seu contraponto actual, o famigerado «crescimento», ser ainda mais problemático!). A própria palavra está esgotada e prevertida. No dealbar da Segunda Grande Guerra, Walter Benjamin fez-lhe um diagnóstico radical e negativo através do olhar do seu terrível Anjo da História, ele próprio utopicamente inspirado por um materialismo histórico que viria a contradizer todas as suas expectativas. Mais «realista», na sua visão igualmente ideal, mas menos ambiciosa, foi por exemplo a citada Maria Gabriela Llansol, ao propor simplesmente: «concebe um mundo humano que aqui viva» – sabendo que o humano, para se realizar plenamente, tem de transcender o meramente humano para se... humanizar, e que o humano se vive, não é uma abstracção.


Eduardo Lourenço, por seu lado, mais próximo desta visão não ideológica, lembrou que o problema da Europa foi/é o de pensar que «as verdades são alcançáveis» (ao contrário, por exemplo, das formas de pensamento e de vida orientais, como o Budismo). Uma versão radicalizada desta crença fundamentalista continua a ser a América, variante europeia (que outra coisa poderia ser?) infantilizada e moralista que continua a determinar o destino da nossa «Europa desencantada». 

 Nunca esta Europa poderia ser, como parece sonhar Rui Tavares, o cadinho de onde saisse uma «democracia europeia» (não já nacional//nacionalista) para lá de todas as fronteiras. Porque a essência da Europa (que nunca foi uma «União», como formalmente se designa) é a própria fronteira, ainda que esta União pretendesse abri-las com Schengen (e agora fechá-las por causa de Lampedusa). A fronteira, não à maneira do sonho americano, do horizonte distante a superar, mas no sentido do velho limes romano, que é o seu limite e a sua limitação. E nenhum humanismo ingénuo, muito menos os políticos medíocres que hoje a regem, evitará que ela volte a ser o que sempre foi: um mosaico de culturas vivas, uma tessera cheia de fracturas.