01 dezembro, 2020

 MON MAÎTRE À PENSER

A notícia, esperada mas não desejada, chegou. A Parca cortou o fio ao pensamento de Eduardo Lourenço.

Regresso ao meu ensaio «As pedras brancas de Eduardo Lourenço», e encontro dentro do livro (O Género Intranquilo. Anatomia do ensaio e do fragmento, Assírio & Alvim, 2010), a abrir a secção «Afinidades Electivas», uma série de folhas manuscritas com o título «Mon Maître à penser», que a princípio me surpreendem, porque não me lembrava delas nesta forma, nem já sabia que as tinha deixado junto do ensaio anterior.

Reproduzo-as aqui, em memória do Mestre, com a transcrição do texto, um depoimento sobre esta figura do pensar, decisiva na minha vida de escrita, para a revista Textos & Pretextos, o número 22/2019, dedicado a Eduardo Lourenço.

 

«Mon Maître à penser»

 

Tenho consciência de que tudo me é pretexto para não falar de mim.

Ou seja: para falar incessantemente de mim.

É por isso que a minha escrita é lírica e passional.

(Entrevista, JL, 6 de Dezembro 1986)

 

            A certa altura do meu percurso mais livre pelos caminhos desse género intranquilo a que chamamos «ensaio», dei-me conta de que essa libertação se devia em grande parte à convivência e assimilação de modos de escrita e de pensar de alguns outros – entre eles, e em lugar de destaque, Eduardo Lourenço, a quem passei a chamar o meu «Maître à penser». Um mestre da «vida interior pairante», como sugere Musil a propósito do ensaísta. Um mestre que não poderia impor um modelo, antes um modo, já que ele mesmo se perde no labirinto interior dessa aventura, um caminho onde não há certezas – a não ser a da morte («Na minha espécie de prosa, um pouco pretenciosa e poética, o único tema verdadeiramente sério é a morte», diz Eduardo numa entrevista recente a propósito desse inenarrável filme que se chamou O Labirinto da Saudade).

 

            O ensaísmo múltiplo e uno de Eduardo Lourenço revelou-se-me assim, um dia, como instável e agónico (mas não «trágico», nem feliz), feito, como do poema dizia Hölderlin, de cálculo (que estrutura o pensamento sem o manietar) e asas (que o aproximam, em sobrevoo, dos objectos da sua nostalgia). A sua via é exploratória, e a não-verdade, a «instabilidade ontológica» da pulsão ensaística, é o seu telos. O de um único ensaio contínuo, uma grande sinfonia que permite, desde Heterodoxia, ouvir os ecos de uma música total. O que lhe confere a unidade quebrada, em andamentos, que o caracteriza, é da ordem de um methodos, de um caminho próprio que dá a ver em cada texto, no filtro depurado da linguagem, um pensamento clarividente e uma postura de fundo na relação com o mundo – o das artes e da literatura ou o da História, o de uma mitologia portuguesa ou o das razões de uma Europa entre eufórica e desencantada. Tudo como quem se vê ao espelho: o ensaísta arma o cerco ao seu objecto, e ele revela-se no seu âmago, por uma espécie de epifania profana. «O ensaísta», diz o Maître, «fala de si mesmo como espelho do mundo» – o mundo que sempre nos excede. Daí o desafio de o dar a ler, que em Eduardo Lourenço vem cedo, provavelmente no momento em que toma consciência de que a sua via, e a sua veia, não seria tanto a filosófica como a de uma poética pensante. Por isso, como o herói do conto maravilhoso, sai um dia para o mundo «para aprender o medo» – melhor, para sentir nascer em si essa consciência crítica e ousada da natureza insondável das coisas e dos homens. 

 

    Valeu a pena a viagem. Imagino por vezes Eduardo Lourenço à imagem do Saul do Antigo Testamento: saiu de casa – de um S. Pedro de Rio Seco onde, confessa em conversa recente com Edgar Morin e Ana Marques Gastão, era «a criança que nunca fui» –, foi em busca das jumentas do pai, e encontrou um reino: o reino de tudo o que é humano, o reino sem limite das ideias. Nesse reino, um sujeito cedo ganha uma voz própria, e essa voz pensante torna-se autónoma, assume-se sem sujeito. Ao olhar para o espelho do mundo não se vê já a si, mas a esse mundo e aos seus labirintos da existência, numa espécie de «peripécia da inteligência» que é o próprio do ensaio como o vê Claudio Magris. É o ensaísta que soberanamente (mas sempre com a dúvida latente, se bem que não metódica, que o guia) domina o mundo, e no caleidoscópio da escrita faz fulgurar sempre novas conexões – enriquece e amplia o mundo ao pensá-lo. Este será um dos lados mais surpreendentes do pensamento ensaístico, e ensaiante, de Eduardo Lourenço: o deste seu lado de hipertexto, movendo-se numa rede de ideias, mais estética do que filosófica, a que um dia, referindo-se precisamente à arte, chamou «a Internet de Deus».

 

            Poderíamos também dizer (com o Herberto de Cobra) que estamos perante «o nó absorvendo a madeira toda». É assim que, olhando para trás, vejo hoje a Obra de Eduardo Lourenço: como uma Obra de pensamento total e totalizante, e que no entanto sempre soube que não se pode apreender e interpretar o mundo, mas tão somente as aparas que dele nos chegam e vamos apanhando e tentando compreender. Não existe uma obra «sistemática» de Eduardo Lourenço, porque ele sabe, como Wittgenstein (ou Llansol), que o mundo não tem sistema nem «forma», é apenas «o que é o caso», o que nele acontece e tem consequências. Uma delas, nada despicienda num caso como o de Eduardo Lourenço, é a de «o que acontece» vir ter com o sujeito pensante, que, sem sistema conceptual nem Weltanschauung na manga, interpõe entre si e o mundo um recuo, deixando que o tempo faça o seu papel – ou também a distância no espaço, própria de alguém que se vê como um «exilado cá dentro», da estirpe daqueles que sempre melhor nos pensaram, de forma inquieta, dividida, e mais serena. Recusando o epíteto de «estrangeirado», Eduardo Lourenço escreve: «Exílio verdadeiro, o autor destas reflexões só o conheceu no interior do seu país» (O Labirinto da Saudade). De qualquer modo, o importante é perceber como Eduardo Lourenço, quando pensa e escreve, não se orienta por nenhum «sistema», antes se deixando guiar por algo assim como o «esquema» kantiano, que, enquanto forma de intuição apurada, rege de longe, ou de dentro, a observação dos factos e um registo muito próprio, e essencial, daquilo que, no mundo, se oferece à nossa possibilidade de conhecer. É isso talvez que nos faz sentir, lendo ou ouvindo Eduardo Lourenço, aquele «entusiasmo do pensar em que as palavras se abrem até ao fundo», tão diferente do discurso conceptualmente organizado e frio, e que uma vez mais Musil vê como próprio do ensaísmo.

            Parece-me existir aqui uma dimensão universal do pensamento de Eduardo Lourenço que não se compadece com leituras que o remetem para a condição de exegeta privilegiado de um destino nacional. Privilegiado, é-o certamente. Ele próprio, na sua proverbial modéstia, parece sugeri-lo quando confessa, a propósito do significado desse livro-chave para a compreensão do nosso processo de individuação colectiva, ou «psicanálise mítica», que foi O Labirinto da Saudade: «O essencial do que eu sou, ou posso ser aos olhos dos outros, é o que está nesse livro...» (JL de 9 de Maio 2018, entrevista a José Carlos de Vasconcelos). Mas, de facto, é muito mais. O seu pensamento, o seu estado permanente de ensaio do pensamento, transcende em muito essa dimensão doméstica. A seguirmos por aí, a pedra de toque mais reveladora deveria ser então a do seu Pessoa, por ele mais do que uma vez revisitado para no-lo dar como todo um mundo, ou vários mundos num só e com um centro lúcido, sempre muito além do «caso mental» de um «Portugal dos pequeninos». Mesmo como «rei da nossa Baviera», o Pessoa de Eduardo Lourenço é o grande paradigma de uma universalidade, rara nestas paragens, e de que o próprio Eduardo Lourenço é mais um grande representante, ele também uma «vida sem país», que exemplarmente pensou e representou este país, e essa vida, como «um sonho dominado» (diz na referida entrevista). Como Pessoa, Eduardo Lourenço é o ensaísta-poeta para quem Portugal funcionou como uma espécie de metonímia, um mundo que reflecte o estado do mundo, lido quase sempre ex negativo, ou pelo menos com aquele substrato de ironia kierkegaardiana presente em ambos. Ao ler-nos, e aos nossos desastres, Pessoa e Lourenço fazem-no com recurso às figuras dominantes da antítese e do paradoxo, do oxímoro e da ironia construtiva que os lançam para os terrenos de uma escrita e de constelações de pensamento típicas daquela écriture du dés-astre (Blanchot) que os coloca fora das órbitas habituais, sem referências nem «pares», em pleno espaço da heterodoxia. E isso só é possível em escritores pensantes do próprio pensamento, e abertos ao real como um campo de possibilidades, e não de meros «factos diversos», faits divers tomados como tal. Foi assim que Eduardo Lourenço se definiu um dia a si próprio, enquanto ensaísta: «Alguém disponível para pensar o que merece ser pensado, e mesmo o que não merece ser pensado»!

            A fórmula podia ser pessoana, e serve para definir exemplarmente o modo de pensar e escrever de Eduardo Lourenço: da impenetrabilidade do mundo nasce a luz que abre o objecto, o ilumina de todos os lados e dá a ver a essência poliédrica das coisas do mundo que nos envolve e para nós apela.

 

            Era isto, entre tantas outras coisas possíveis, o que eu queria dizer, e mal disse, sobre o meu «Maître à penser» Eduardo Lourenço.

 

João Barrento