30 janeiro, 2007

INTERIORES

O interior burguês, atravancado de bric-à-brac e mole de veludos e pelúcias, é um dos objectos favoritos da especulação sociológica e da imaginação de Benjamin, em Rua de Sentido Único, em Infância Berlinense: 1900 e depois também nos ensaios sobre Baudelaire e a Paris do século XIX na época restauracionista do Segundo Império (que estão a sair na edição portuguesa em curso, na Assírio & Alvim).

Também aqui uma passagem, um impulso mimético presente no interior da habitação burguesa, em relação a uma aristocracia cujo universo fora dominado pelo espírito da representação. No interior burguês, ainda «castelo» e já espelho da alma da nova classe, revelam-se os arcanos mais exóticos e mais simplistas dessa alma e dessa classe que, de tão apegada aos bens materiais, deixou de saber o que era a alma. O seu exotismo é um exotismo de Ersatz, como os estilos da sua arquitectura e do seu mobiliário, os seus sonhos são os de um mundo de prazeres e lazeres que a expansão mercantil ajudara a entrar nas casas burguesas. Nada de comparável às profundezas daquelas outras almas que os poetas, filhos transviados dessa mesma burguesia, desdobrariam em espaços interiores do mundo exterior, que na poesia de um Rilke serão o verdadeiro equivalente da alma. Nada que se aproxime dos labirintos tortuosos do mundo interior de personagens austeramente burguesas, carregadas de tragicidade, que encontramos hoje nos filmes de um Ingmar Bergman, acima de todos no último, Saraband.

Benjamin dá ainda a ver, no fragmento «Casas de dez assoalhadas luxuosamente decoradas», uma burguesia sólida e feliz no seu casulo, com a moral sempre à espreita, mas sem sentimentos de culpa visíveis. Bergman é, como os seus grandes antecessores nórdicos Kierkegaard, Ibsen, Strindberg, um «mestre da culpa», um dos mais inquietantes e perturbantes cronistas dos fantasmas de um protestantismo em que uma vida é uma grande caverna, com um nicho para cada ano ou cada dia, onde se vai desenrolando o grande espectáculo das paixões amargas e dos dilaceramentos da alma. A burguesia de Benjamin é ainda a dos interiores à la Makart, o grande pintor da sociedade vienense de finais do século XIX: opulenta, festiva, inconsciente. Mas o olhar arguto do cronista Walter Benjamin vê já por toda a parte, nas paredes dos salões burgueses, as fendas que prenunciam o desmoronar da casa.

27 janeiro, 2007

A PROTO-ESCRITA DAS PASSAGENS


Num dos posfácios à edição brasileira das Passagens de Benjamin – um elefante branco editorial, livro-mamute num único volume, impossível de manusear! –, Willi Bolle, comentando a forma deste imenso aglomerado de fragmentos, e depois de o comparar, com pertinência, ao hipertexto actual, afirma «de maneira categórica»: «essa organização do saber histórico em forma de uma rede de categorias e fragmentos, elaborada por Benjamin, pode ser visualizada, mas não pode ser narrada. Estamos diante de uma escrita visual-espacial, baseada na tradição dos grafismos e diagramas, pictogramas e hieróglifos...»
Escrita visual-espacial? Não é bem disso que se trata. Em rigor, nem de «escrita» se trata: estamos perante um exemplo típico de proto-escrita, acumulação de materiais para posterior ordenação e redacção. Quando muito, anotções acumulativas, organizadas, no segundo momento em que Benjamin se ocupa das Passagens (1934-37, em Paris), segundo o modelo da enciclopédia barroca. É, de facto, de material não elaborado que se trata, como W. Bolle mais adiante reconhece. E o seu paralelo mais evidente não é o do espacialismo visual (barroco ou de Mallarmé) – as sinalefas e as cores usadas nos manuscritos para organizar o imenso material não bastam para o afirmar –, mas antes, de uma forma que me parece óbvia, a do grande projecto iconográfico do contemporâneo de Benjamin, Aby Warburg, o «Álbum Mnemosyne», nas suas várias ramificações.

Diagramatizada, a forma dos materiais que nos chegaram do «Trabalho das Passagens» poderia ser a do leque que se organiza em «florilégio», ou a do ficheiro enciclopédico disponível e combinável. Ou seja, não uma «escrita visual» (conceito fixado, mas que não se aplica a alguém que, como Benjamin, recusou todos os experimentalismos do seu tempo), mas massa e rede «hipertextual» de fragmentos com «ligações» múltiplas. Como o próprio Bolle acaba por reconhecer, não é de escrita que se trata, mas de arquivo, ou seja, proto-escrita: «deveríamos valorizar o projecto de Benjamin como arquivo, dispositivo aberto para novas pesquisas.»
Se as «Passagens» nunca chegaram a ser livro, como poderiam os seus materiais ser «escrita»?



De uma anotação lacónica que sugeria a relação entre Ideia e conceito, aura e vestígio em Benjamin, extraio as seguintes hipóteses:
A Ideia é a Aura (distante) do Fenómeno e o Vestígio (próximo) do Conceito? A Ideia pode ser também vista, com recurso ao paradoxo, como «origem póstuma» (ou futura) e essência referencial (mas não síntese ou média estatística) de todo o fenómeno. Benjamin diz que a Ideia se relaciona com os fenómenos como a constelação com as estrelas. Ou seja: a ideia seria o «esquema» (kantiano) que confere possibilidades de sentido ao fenómeno, para lá da empiria crua?

26 janeiro, 2007



Salta-me de um ensaio sobre as «Passagens» em Benjamin a frase: as formas de expressão do pensamento em Walter Benjamin. Aspecto fulcral neste pensador de tanta realidade hipercomum que, dada a focagem nítida e oblíqua a que é submetida, ganha perfis insólitos, contornos novos, recorte concreto, sensível – quer se trate de toda uma época (o Barroco ou a «Modernidade»), de um autor clássico ou moderno ou de um qualquer objecto dos interiores burgueses de há cem anos ou da rua das primeiras grandes metrópoles.

Desenho de W. B.

Em Benjamin o pensamento não é apenas um repositório conceptual, ou a massa de que se faz um sistema. Assume formas, diversas e adequadas a cada objecto, neste criador de «imagens de pensamento». Formas que lhe são essenciais e não exteriores ou meramente adjacentes. Há uma funcionalidade intrínseca da forma no pensamento de Benjamin, que o leva a escolher modos de expressão, géneros e subgéneros literários e filosóficos, por vezes também proto-formas que servem melhor o seu pensamento flutuante. O espectro é imenso: do «tratado» ao ensaio, da crítica filosófica ao fragmento, do conto radiofónico ao soneto, da recensão à polémica, do aforismo à citação.

A forma torna-se então a pele que se molda ao corpo do pensamento como um vestido molhado ao de uma mulher.
O invólucro faz ressaltar a forma – que neste caso é a própria substância, o pensamento.

O MÉTODO DO BLOGGER



Assumo como meu, para este blog, o método de trabalho proposto por Walter Benjamin num fragmento de O Livro das Passagens:
O método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada para dizer. Apenas para mostrar. Não escamotearei nada de valioso, nem me apropriarei de formulações espirituosas. Mas os farrapos, o que cai dos dias: esses não vou inventariá-los. Vou deixar que afirmem os seus direitos da única forma possível: dando-lhes uso.

(W. Benjamin, Das Passagenwerk, fragmento N1a,8)



Há autores que, escrevendo como todos ao ritmo dos dias e para um tempo determinado, de facto falam sempre mais das chamadas «últimas coisas». A expressão vem da teologia medieval e passou para a metafísica, mas não é dessas quatro imagens do Além (a Morte, o Juízo Final, o Céu e o Inferno) que se trata em livros como aqueles que hoje refiro, que não se ocupam do que está do outro lado do mundo e da experiência, e nos quais a expressão terá sobretudo a ver com a força da imanência e a presença de coisas elementares. No entanto, talvez por já quase não saber ler, o seu próprio tempo, que não sabe de outros tempos que não sejam o imediato, tende a ignorá-los. A discrição de quem assim escreve também não permite que se torne um best-seller – estes autores, que respiram ao ritmo do grande tempo, e não de dias e meses, não têm a mínima vocação para «bestas céleres», como lhes chamaria Alexandre O'Neill –, e as editoras e colecções onde aparecem, as mais das vezes meteoricamente, também não contribuem para lhes dar grande visibilidade. É da natureza da coisa.
Pense-se em autores que se voltaram para estas «últimas coisas» da existência e do homem, e vamos inevitavelmente dar a nomes radicais, inclassificáveis, de um passado mais ou menos próximo. Podíamos lembrar, entre muitos, os austro-húngaros Otto Weininger (autor de uma última obra filosófica, em parte aforística, com o título Das Últimas Coisas) e Carlo Michelstädter, Cioran ou Ernst Jünger, Maria Gabriela Llansol ou o próprio Spinoza, marginal da filosofia e autor de uma Ética que se rege pela imanência das últimas coisas, ou pelos sentidos últimos da imanência.
Ao deixar o pensamento deambular por estes atalhos, constato que há livros que tenho debaixo de olho, que ficam à vista e à mão por muito tempo, e dos quais acabo por não falar, apesar de escrever com alguma regularidade sobre livros e autores. Esses esperam sem ansiedade que lhes seja dada a devida atenção – o que acontece com frequência, mas sem que necessariamente isso se transforme em pensamento escrito em que eles sejam as estrelas do dia. Tenho alguns desses livros por companhia, livros que, sendo muito diferentes uns dos outros, me falam todos de últimas coisas. Entre os mais recentes há alguns, de três autores a quem já me tenho referido a propósito de outras obras, e que escrevem sobre o que há de mais definitivo e menos circunstancial. E por isso parecem silenciar o tempo em que vivemos, e o apelo à «actualidade» que sobretudo o jornal tantas vezes exige. Nesta página, porém, sempre considerei igualmente actual o que, sendo de ontem, actua sobre mim hoje e me transforma. E também no caso destes livros, que comigo convivem desde que os recebi, tudo lembra a este nosso tempo o que ele não é, tocando deste modo, ex negativo, o próprio cerne do tempo em que vivemos.
Falo de António Vieira (e das suas Improvisações sobre a Ideia de Deus, & etc., 2005, que se seguiu a essa brilhante analítica de um tempo amorfo que foi o Ensaio sobre o Termo da História), de Carlos Couto Sequeira Costa (do livro de poemas a deus, Fenda, 2004, e também de Vedutismo, Pé de Página, 2005) e de Jaime Rocha (e desse raro livro de poesia intitulado Lacrimatória, Relógio d'Água, 2005). Todos eles, de modos diversos e em dois campos que, na forma em que se apresentam nestes livros, se tocam e são complementares – a poesia e a filosofia, o poema e o fragmento –, indagam os fundos mais fundos do Ser e do ser humano, do seu existir e do seu fazer, com linguagens e discursos que fogem a qualquer taxonomia fácil. Porque são discursos do «entre»: entre o récit primordial e o poema (em Jaime Rocha), entre o tratado e o aforismo (em António Vieira), entre o sistema e a sua subversão pela reinvenção da linguagem da filosofia e da poesia, no caso de Carlos Couto S. C., autor de obras feitas de janelas, perspectivas, passagens, com-parações (paragens para deixar dialogar domínios que a doxa pensa que se excluem), corredores que abrem para múltiplas e imprevisíveis salas. Carlos Couto S. C. – mas também os outros dois autores que aqui o acompanham, que cruzam em formas heterodoxas de poesia e pensamento a imaginação, o rigor da dicção e da ideia, o substrato narrativo arcaico e a tensão dramática – é um corredor de fundo nestas linguagens híbridas e vivas, nunca acomodadas, que escreve, quer uma tese académica (Tópica Estética), quer um livro de poesia (a deus, livro último e único para o autor) ou de ensaios, a-típicos ensaios que, no entanto, são o mais (in)acabado exemplo desta forma de escrita vibrátil e aberta, como quem percorre um campo de experimentação numa vadiagem do pensamento que nunca se perde, porque está sempre de olho no que é «último» e essencial, sendo, como tudo, circunstancial e relativo – em especial a pulsação viva e a face estética do mundo.
«A arte é o prazer de pensar», escreve Carlos Couto S. C. em Vedutismo, querendo dizer com isso que filosofia e arte se situam no prolongamento uma da outra, que toda a filosofia é estética. A especulação rigorosa de António Vieira sobre a ideia de Deus sugere que a «coisa» não é vão cenário do mundo, dominado por uma «antropomania» e por um «bloco religioso» que já Spinoza denuncia como redutores. E Jaime Rocha propõe (nos três últimos livros de poesia, que constituem uma clara trilogia, com figuras e motivos a passarem de uns para outros: Do Extermínio, Zona de Caça e Lacrimatória) uma visão do corpo e da morte (e da vida/do sexo), do que há de elementar no humano, como se de um sonho da natureza última do homem se tratasse, aquela que se perdeu, mas está nele.
Sem o saberem, estes três encontram-se na minha mesa e falam comigo sobre últimas coisas. Descubro agora, ao escrever, que somos todos de algum modo «espinosistas», na busca de graus de conhecimento próximos de uma essência que é da ordem da mais pura imanência: «o mundo está cheio de / vírgulas e reticências, / membranas e linguagem / mas // não duvides da Vida nem / da Terra…». Porque «a Terra mora ao lado / e não treme.» (Carlos Couto S. C., a deus). E porque as últimas coisas, sabemo-lo, são sempre, primeiras. Confirmo-o no pequeno poema do alemão Hans Arnfried Astel, que descubro já depois de escrita esta crónica, e que se intitula precisamente «Últimas coisas»: «Uma última borboleta pousa nas sécias em botão / sob os últimos raios do sol da tarde. / No momento em que escrevo, voou para casa / antes de o Sol se pôr atrás do monte. /Agora, sou o último aqui, e tomo notas / no meu caderno sobre as últimas coisas.»
(Hoje no «Mil Folhas» do Público)


Anselm Kiefer, Escada para o céu (1991)

25 janeiro, 2007


SETAS NO CORAÇÃO DO DIA

Rua de Sentido Único abre com um texto tipicamente benjaminiano: como que movida por um voluntarismo provocatório, a mão que escreve lança à cara do leitor um paradoxo: nas circunstâncias e na atmosfera social dos anos vinte, «a autêntica actividade literária não pode ter a pretensão de se desenvolver num âmbito estritamente literário» – isso significaria a sua «esterilidade».


Benjamin acabara de encontrar o marxismo através de Asja Lacis, de Lukács, de Brecht. E vê-se obrigado, para garantir a subsistência (e um casamento em crise, com Dora Benjamin, de quem se separa no fim da década), a fazer uma viragem de 180 graus nas formas de escrita que praticara até aí: a tese académica e o ensaio de reflexão dão lugar à crónica jornalística, uma forma de escrita «com lampejos de uma luz demasiado crua», semeada aqui e ali de «ervas amargas, das que agora cultivo com paixão na minha horta», como se lê numa carta à amiga Jula Cohn. Mas, nas mãos de Benjamin, até este género, tão preso a uma «actualidade» circunstancial, se transforma: cada pequeno texto é ainda uma «seta no coração do dia», como se lê num deles, mas a escrita continua a fazer-se de forma extremamente subtil e sem abdicar daquele registo enigmático e velado que é sempre o seu, nem de formas de escrita «surrealista» em que o sonho, ou o que um título de 1927 designa de «kitsch onírico», têm lugar de honra –– apesar de os tempos não irem para «flores azuis», como aí se diz: «Hoje, os sonhos não são já os da Flor Azul. Quem hoje acordar julgando ser um Heinrich von Ofterdingen, é mais que certo que se deixou dormir.»



E depois há as peças aforísticas, algumas verdadeiros achados, pequenas obras-primas do género. A minha preferida surge logo no início de Rua de Sentido Único, e é o mais curto texto deste livro, certamente o mais breve texto de Benjamin. Diz apenas (mas a frase alemã não é de sentido único, abre-se antes a um curioso duplo sentido): «Für Männer: Überzeugen ist unfruchtbar.» Em português: «Para homens», e depois duas vias:
1) «Convencer é estéril.»
2) «Procriar em excesso é estéril.»
Nela se cruzam dois sentidos de Über-zeugen, em que práticas de linguagem (retóricas) e práticas sexuais são vistas em analogia. O paradoxo de uma procriação estéril esclarece-se se a colocarmos ao nível de uma retórica da mera persuasão, calculista, orientada e violenta. Dela está ausente, como da sexualidade procriativa, o momento erótico, a sedução da palavra livre e criativa.


24 janeiro, 2007


SABERES

Não sei já como, fui dar a um fragmento de Benjamin intitulado «Tipos de saber», no qual reaparece uma ideia muito benjaminiana, a da verdade como morte da intenção. Caminho, nunca chegada. Ruína e fragmento. Neste pequeno texto, Benjamin distingue cinco tipos de saber, numa reflexão concisa, mas útil a uma época que tantas vezes, ou julga ser detentora de verdades, ou cai na mais gritante ignorância. E conhece mal a humildade da dúvida.
Transcrevo o fragmento (que não vai figurar na edição portuguesa dasObras Escolhidas), e quem tiver olhos para ver descobrirá a sua relação com o que acontece à nossa volta nesta «Idade da prosa» que atravessamos e parece ter vindo para ficar:


I - O saber da verdade
Não existe, porque a verdade é a morte da intenção
II - O saber redentor
Existe como aquela forma de saber em que a redenção se torna consciente, e assim se consuma
Mas não existe como saber que origina a redenção
III – O saber ensinável
A sua manifestação mais significativa é a banalidade
IV – O saber determinante
Este saber, que determina a acção, não existe. No entanto, é determinante, não como «motivo», mas por força da sua estrutura de linguagem. O momento de linguagem na moralidade relaciona-se com o saber. Certo é que este saber que determina a acção leva ao silêncio. Por isso, não é ensinável enquanto tal. Este saber determinante parece ter afinidades com o Tao. Mas é exactamente o oposto do saber do ensinamento socrático da virtude, pois este é motivante da acção, mas não determinante para quem age.
V – O saber por intuição ou conhecimento
É uma forma altamente enigmática do saber. É qualquer coisa que, no domínio do saber, equivale ao presente no domínio do tempo. Só existe numa transição inapreensível. Entre quê? Entre a intuição e o saber da verdade


21 janeiro, 2007


FIAMA: EXISTIMOS SOBRE O ANTERIOR

Fiama partiu. Fiama está aí.
Faço meu, hoje, o último poema da sua primeira colectânea de poesia reunida (O Texto de João Zorro, 1961-1974), que me diz que continuaremos a existir sobre e com a sua poesia, e que essa é a homenagem mais autêntica que lhe podemos prestar:

Levando ao limite, homenagem, o gesto da escrita, posso atribuir os meus textos
a joão zorro. Existimos sobre o anterior. O movimento da escrita e da leitura
exerce-se a partir da menor mutabilidade aparente da pedra
e da maior mutabilidade da grafia. O progresso dos textos
é epigráfico. Lápide e versão, indistintamente.


O anterior é, em Fiama, tanto toda a escrita dos outros, que sempre fez sua, desde o Cântico Maior, como a anterioridade ontológica radical do Ser, que atravessa os seus últimos livros. Fiama fez a sua poesia sobre estes dois mundos anteriores, de que sobressaía sempre o perfil nítido do seu verso. Um pouco como em Baudelaire («La vie antérieure»), está sempre presente na sua poesia uma memória (involuntária) que nada exclui da escrita e do Ser anteriores. E que tem o seu suporte poético em «correspondências» que só compreenderemos se nos situarmos numa dimensão temporal da durée. Daí vem, sobretudo desde Cantos do Canto, a aura própria da poesia de Fiama, e o sopro órfico puro que marca a sua última fase. Aqui, surpreendemo-nos a cada poema, por aquilo que em cada um é a sua qualidade mais intrínseca: a intensidade (luminosa) com que os objectos são ditos e o mundo se enche de sinais para dizer sempre mais do que aquilo que nele podemos ver - porque o olhar tem de ser completado pelos sentidos mais profundos que a superfície do mundo esconde. A esses sentidos chega-se pela consciência do «Tempo [que] faz e desfaz a vida»: «Nada tão silencioso como o tempo / no interior do corpo». Esta consciência intuitiva do tempo é tão importante em Fiama como a sabedoria órfica que arranca sentidos ocultos a coisas e lugares. É assim que, nesta dupla perspectivação da imagem viva das coisas (dos textos) e dos tempos que as percorrem, cada poema é como os olhos que «marcam (...) o rebordo de cada objecto, dos seres, / o limite de uma crónica dos dias»: são registos do olhar dirigidos ao Ser e à memória das suas origens, quase sempre poemas do ocaso do dia, últimos cantos, cantos do fim - porque se trata da escrita de quem sabe ou busca as coisas últimas do mundo, cada coisa ou ser que nele está ou esteve inscrito e existe, à espera do oficiante que lhe confira existência real. A poesia de Fiama é um dos lugares em que esse ofício mais ofuscantemente nos maravilha. Como nesse extraordinário poema-testamento que é «Sumário lírico», que encerra Cenas Vivas, último livro em que a poesia de Fiama chega àquele ponto mais alto da perfeição do lírico em que sujeito, mundo e linguagem se encontram numa serenidade totalmente desconflitualizada:

Nesta janela de ver passar os barcos em vidraças,
começo devagar a reescrever o mundo quedo
que é o único que conheço e vivo, sei e de cor vejo.
Ninguém me deu outras formas que não minhas
mas deram-me todos juntos o cerne das palavras.

Reescrevo-me a mim própria sem outra alternativa.
[...]
E o tempo não existe quando tudo se reúne.
Mas as frases de todos estão no lugar, meus poetas,
sendo o olhar sempre o puro tacto, quando o som
sai desta boca, sopro, e toca em sons e seres.
A faixa solar vermelha é um profundo fundo, só sonoro
e tangível na boca. E morrerei sem lançar um som vivo
para África, neste sumário lírico, redito.
Satisfaz-me o meu sol vermelho em mês de pouco ver,
pois passavam golfinhos antes de ter havido sol assim,
e mudamente vistos: imagem tão íntegra lírica

que vai descer à boca em última palavra minha.

19 janeiro, 2007



PASSAGENS

Entro na segunda parte do Diário para Walter Benjamin, centrada no segundo volume das Obras Escolhidas, que inclui três livros: Infância Berlinense: 1900, Rua de Sentido Único e Imagens de Pensamento. O salto em relação ao primeiro Diário é o que vai do Barroco à Arte Nova (1900) e à Art Déco e ao Surrealismo (anos vinte). A deslocação é visível, não apenas nos temas e motivos abordados, mas também na forma de apresentação das páginas manuscritas do Diário.



I -

Em Novembro de 2003 recebo de Pedro Eiras um mail, comentando o meu comentário à sua peça Passagem. É a história de uma personagem em trânsito por Lisboa, como houve tantas nos anos de chumbo do nazismo, gente anónima ou com nome feito, esperando em pensões baratas ou em Estoris ricos pelo paquete que os levasse às Américas. A personagem da peça tem nome de Franz, mas pareceu-me desde logo reconhecer nela Walter Benjamin. Teria sido mais uma passagem por Lisboa, esta d' O Passageiro Walter Benjamin (como dirá, em 2000, o título do romance do colombiano Ricardo Cano Gaviria, editado pela Antígona), a caminho de uma América que acolheu tant bien que mal outros judeus. O Pedro esclarece que «Benjamin foi, até à última reescrita da peça na oficina da escrita, a personagem principal, e não esse Franz criado do nada. A peça chamar-se-ia, de acordo com os projectos iniciais, Mais Dois Meses para Walter Benjamin, e terminaria com a morte do filósofo, levado pelo seu Anjo da História, esquecendo as palavras que aprendeu em vida. Na última sessão da discussão», continua o autor, «os meus colegas acharam o final hermético, e eu acabei por transformar, quer a personagem, quer o desfecho do texto. Mas para mim é Benjamin quem subjaz sempre a Franz…»

Foi melhor assim. Benjamin, que só suporta verdades através de véus, como os aprendizes do templo de Saïs, não gostaria de um final transparente. Sempre estas confusões, que o nosso tempo cultiva, entre a vontade de verdade e o labéu de opacidade e hermetismo para tudo o que exija um pouco mais de sensibilidade ou pensamento. Este mundo, sempre de pernas obscenamente abertas, não gosta de verdades veladas. Tem de ser tudo escancaradamente manifesto.



II -

Novembro é mês de passagens. Tristes. Desde sempre mês de passagens, de exílios. Ocorre-me o começo do Conto de Inverno (1844) de Heinrich Heine:

Estávamos em Novembro, triste mês –
O tempo pardo em que o nevoeiro cerra,
A folhagem caía já com o vento
E eu ia para a Alemanha, a minha terra...



O tema seria retomado séculos mais tarde por Wolf Biermann, baladeiro contestatário, num país triste, a antiga RDA, e também o seu Conto de Inverno (de 1972) é um canto de passagem, de exílio a exílio:

No Dezembro alemão corria o Spree
De um para o outro lado de Berlim
E eu no comboio, por cima do Muro,
Atravessando os ares então me vi.

Pairava, leve, sobre as cercas de arame,
Os cães-polícia à espera lá fora –
Que estranha sensação me ia na alma
E no sentido que grande amargura!
[...]
Pensei também há tempos no meu primo
Heinrich Heine, que cuspia veneno
E veio de França um dia, pela fronteira
Do pai de todos nós, o velho Reno.

E pus-me então também a meditar
No que em cem anos a nós nos sobreveio
E como a Alemanha, em glória unificada,
Hoje está outra vez partida ao meio.

E depois? Também o mundo inteiro
Se dividiu em Leste e Ocidente.
Mas a Alemanha, como tinha de ser,
Manteve a sua posição de sempre.

E essa é a posição de cu do mundo,
Gordo e anafado, como um cu se quer.
Os pêlos que no rego lhe cresceram
São de arame farpado, está-se a ver!

E mesmo o próprio olho, isto é, Berlim,
No nosso caso ao meio se parte.
Conseguimos até envergonhar
A biologia com engenho e arte.

E quando aos grandes senhores deste mundo
O estômago lhes dói e lhes remói,
Estraleja e cheira mal em toda a Alemanha.
Querem que explique? Então aí vai:

Cada parte do mundo traz em si
Um bocado do traseiro alemão.
A parte do leão é a da Alemanha
Ocidental, bem sei, e com razão.

No ocidente da Alemanha os excrementos
Alemães – não nos incomodemos! –
São polidos e perfumados
Com trabalho alemão, como sabemos.

O que a alquimia jamais alcançou
Já eles o conseguiram fazer:
Transformaram toda a merda alemã
Em ouro de lei, para valer!

A RDA, minha pátria querida,
Tem as mãos limpas, podem crer,
E o regresso da barbárie nazi
Nunca aí poderá acontecer.

Foi tal a ensaboadela,
A escova de Estaline era tão rija
Que o traseiro que antes era castanho
Ficou vermelho e a arder, p'ra que se veja!

[...]

E já mais perto de nós, Günter Grass, num ciclo
de sonetos escrito depois da unificação alemã,
daria também a esse livro o título «País de Novembro»
(1992), e aí deixaria também a sua elegia a uma outra
reunificação sonhada, que nunca teria lugar:



O que é nosso


Vasta, descansa a terra em cujo canto a beleza se vai
perdendo pelas colinas, como num prospecto,
o Norte raso, denso, cheio (neste tempo) até ao tecto.
Lá onde os filhos antes fugiam à ira do pai

não há abrigo; não, aqui já não temos segredos,
estamos abertos, reconhecíveis, a tudo expostos,
e os vizinhos, o mundo inteiro, têm os olhos postos
no que para nós é sorte, e a eles causa medos.

Cá onde estamos, engordou-nos errada conjuntura.
Fartos de sofrimentos, somos agora empanturrados
de miséria – é o livre mercado e a sua cura;

e até nos descontaram os nossos pecados!
Está em silêncio o país de Novembro, condenado ao trabalho edificante
e temendo pelo Juízo Final, o preço exorbitante.


16 janeiro, 2007



POESIA PORTUGUESA: IDOS DE NOVENTA

Regresso aos meus cadernos, blocos de notas, quarto de arrumos de leituras, cemitério de ideias (exumáveis, como se vê).
O de hoje remonta ao ano 2000, e dele retiro a introdução à poesia do ano e da década anteriores, feita numa das sessões do extinto «Jornal Falado da Actualidade Literária», do PEN Clube. Ao abrir estes cadernos, pasmo com a quantidade de poesia que lia e de que falava. Só no que se refere ao ano de 1999, o último da década, o caderno regista notas de leitura, elaboradas e por vezes longas, para livros dos seguintes poetas saídos nesse ano: António Ramos Rosa, Nuno Júdice, José Tolentino Mendonça, Manuela Parreira da Silva, Luís Filipe Castro Mendes, Casimiro de Brito, Vasco Graça Moura, João Miguel Fernandes Jorge, Manuel António Pina, Fernando Guerreiro, Ana Hatherly, António Franco Alexandre, Paulo Teixeira, Luís Quintais, Jorge Gomes Miranda, Maria Amélia Neto...
E sobre a década diz o seguinte:
«Num daqueles balanços impossíveis da década de noventa na poesia portuguesa, um crítico, que aliás muito prezo [lembro-me de que se tratava de Osvaldo Silvestre, em balanço no Expresso], chegava à conclusão, para mim surpreendente, de que os últimos dez anos foram “anos magros” para a nossa poesia. Abria algumas excepções - e também aqui alguns dos destaques me surpreenderam -, e concluia: “O século acaba como começou: entregue a uma dicção esteticista e em tom menor”.
Eu diria antes que a década - e o seu último ano, que aqui nos interessa - espelham o movimento geral do mundo: vivemos um tempo de grande permissividade, grassa o eclectismo, o tom geral da poesia, como do pensamento, é mais “debole” que forte - mas a poesia não se quer “forte”, tivémos no século que findou arte musculada que bastasse. E o “tom menor” (entendo o termo agora em sentido musical) sempre foi, afinal, o que mais caracterizou a poesia portuguesa. Talvez precisemos, isso sim, de uma depuração da onda lírica que nos submerge nos últimos anos. São às centenas os livros de poesia que anualmente se publicam. Esse processo, o próprio tempo se encarregará de o fazer. Mas talvez esse trabalho de destilação pudesse ser feito, para os últimos anos, olhando para os livros presentes nos “Jornais Falados” que vimos fazendo sobre a poesia do ano anterior.

Contrariando ainda um pouco a tese do “tom menor” (naquilo que nela parece querer dizer: não temos, com poucas excepções, “grande poesia” (?) nos últimos dez anos), eu arriscaria afirmar que a poesia portuguesa, que passou nos anos 70 e 80 por uma certa necessidade de dessacralização, voltou a fazer-se com um mais acentuado sentido, se não do sagrado, certamente do sublime, do solene, da interioridade e da tradição. A poesia de 1999 confirma plenamente isto, e por isso pede, em sessões como esta, uma atenção particular, uma certa ritualização - até na sua leitura - que, não tendo nada a ver com qualquer espécie de veneração patética, contrarie a indigência de espírito e a boçalidade que diariamente nos entra pela casa adentro. E isso só pode ser feito por uma poesia que, como dizia José Tolentino Mendonça na Bienal do Rio de Janeiro, seja “o lugar de um tempo interior, ciciado e secreto”, e como tal “uma arte insubmissa e subversiva”.
A poesia parece ter uma certa necessidade de se demarcar dos tempos, e a do ano passado fá-lo por duas vias que me parecem ser os filões dominantes dos livros que seleccionei, para além dos dos autores aqui presentes: a reflexão (poética) sobre o próprio tempo, a transitoriedade e a morte (de que a escrita, naquilo que a distingue do "resto" que é a literatura, é espelho maior para alguns poetas); e, associada a esse tema - de facto, eles alimentam-se um ao outro, como na poesia do maneirismo, questão a que regressarei a propósito de mais do que um livro do ano -, a retirada para os domínios da temática amorosa - há muito tempo que não se escrevia tanta poesia de amor em Portugal.»

A última frase destas anotações, que continua a servir-me hoje, é composta por dois versos de Jorge Gomes Miranda, e apela para a necessidade da errância, para submeter a experiência a uma permanente e lúcida revisão:
Mudemos de casa; porque é preciso
arrumar as dores de outra maneira.


14 janeiro, 2007

A LUZ QUE VEM DA DIREITA...

No processo de leitura de alguma bibliografia sobre a história da edição e as peripécias do espólio de Walter Benjamin, fui inesperadamente dar à passagem do «Diário de Paris» (9 de Janeiro de 1930) em que, na conversa com Marcel Jouhandeau, se fala da «magia das condições de trabalho». A sala onde trabalha este autor francês surge a Benjamin como «a perfeita conjugação de atelier e cela monacal», num espaço onde a luz vem de cima e da direita. Jouhandeau, autor católico «que tem visões no ar sufocante de pequenas sacristias francesas» (Benjamin em carta a G. Scholem, de 14 de Fevereiro de 1929), fala da «força inspiradora da luz que vem da direita» (estamos no domínio da topologia, ou da ideologia?).
Walter Benjamin, esse escreveu grande parte dos seus textos em lugares e condições ascéticos e precários: a primeira dissertação, no isolamento de Muri, na Suíça, só com Scholem por interlocutor; o ensaio sobre As Afinidades Electivas na clausura de um quartinho cheio de livros, emprestado por Leo Löwenthal em Heidelberg; o livro sobre o drma do Barroco numa quase cela em Capri; os ensaios sobre Baudelaire numa mansarda austera em Svendborg, lugar de exílio de Brecht na Dinamarca; O Livro das Passagens num cantinho da Biblioteca Nacional de Paris.

A força interior que o sustenta, nos caminhos difíceis do exílio, entre 1933 e 1940, sendo a do intelectual militante – mais do espírito do que das massas –, tem qualquer coisa de ascético e religioso. Religião do pensar, «iluminação profana», cujo breviário eram os seus próprios manuscritos, textos sagrados, arquivados, legados e transmitidos, reproduzidos, com o zelo de quem era um coleccionador e um arquivista nato. É em grande parte devido a esta religião que podemos ler hoje muitos desses textos.

13 janeiro, 2007


SEMENTES

Benjamin é grande no pequeno. Um balanço do terceiro volume da edição alemã, reproduzido em Klaus Garber, Zum Bilde Walter Benjamins (1992), diz:
«O escritor independente, a quem faltou tempo para transformar em livros os seus grandiosos planos, era exímio em espalhar, como se de sementes do seu pensamento se tratasse, qualquer pequena nota crítica, e apostava no seu crescimento com o correr do tempo – que o confirmou plenamente. Encontrará o crítico Benjamin um dia um historiador e um intérprete à sua altura?».
«Do mais insignificante fragmento de prosa, da mais escondida nota crítica, saem atalhos ocultos que conduzem ao centro do pensamento de Benjamin...»

Hoje, perguntamo-nos: que disciplina das ciências humanas não vai beber a Walter Benjamin? O seu pensamento é, como poucos, múltiplo, insinuante e seminal.

10 janeiro, 2007


SALVADOS

Uns dias de gripe bem aproveitados suspendem o ritmo regular da oficina, mas abrem a cada momento pequenas brechas que dão para outros tempos. O próprio tempo se torna outro, abranda a pressão, esfuma-se. Instala-se uma espécie de indiferença criativa, que pode ser ilusória, mas é gratificante. Precisamos destas pausas em que qualquer pequena coisa, acasos insignificantes, são aproveitados, e um blog vive disso, e agradece estes «salvados do esquecimento».
Em dois dias fiz pequenas descobertas, topei com coisas esquecidas, dei importância a factos que na pressa dos dias talvez passassem despercebidas.

1 - De outras eras

Antes da era do computador, eu fazia colagens e escrevia nelas textos à mão (hoje – hélas! – quase tudo sai da máquina, digitalizado). Caligrafias de afectos, as mais das vezes, coisas pessoais, ad usum privatissimum. Não fiquei com nenhuma, foram todas parar a outras mãos.
Fui dar agora por acaso a uma pasta onde guardava imagens, fundos, bocados de revistas, catálogos, que depois utilizava nas colagens, parcelas de territórios onde o meu olho de caçador descobria e abatia a iconografia que, pensava, me podia servir – e servia. E lá estavam também, entre recortes e papéis de cor, umas fichas com frases soltas, deste e daquele, provavelmente à espera de serem embutidas em alguma dessas colagens, ampliadas, comentadas, transformadas em texto meu. Estas vêm todas, claramente, de uma certa fase, imagino que dos anos setenta, em que devo ter lido ou relido dois livros de onde extraí esses farrapos:
o fragmento Mon Faust, de Paul Valéry, uma versão moderna e subtilmente irónica do assunto de Fausto;

e O Sentimento Trágico da Vida, de Don Miguel de Unamuno.

E havia ainda uma frase de Goethe, certamente de data posterior. Começo por essa, e transcrevo de seguida as outras:

Felizes os que não escrevem:
«As pessoas que não escrevem têm uma vantagem: não se comprometem» (Goethe)

Homens de letras:
«O homem de letras que nos diz que despreza a glória mente como um velhaco.» (Unamuno)

Definições (1):
«Hegel, grande definidor, pretendeu reconstituir o universo com definições, como aquele sargento de artilharia que dizia: Constroem-se canhões tomando um furo e pondo-lhe ferro em volta.» (Unamuno)

Definições (2):
«C'est toujours tromper le monde que de se définir.» (Valéry)

Os políticos e a História:
«Tous les politiques ont lu l'histoire; mais on dirait qu'ils ne l'ont lue que pour y puiser l'art de reconstituer les catastrophes.» (Valéry)

Perfeição:
«La suppression de tout ce qui nous manque.» (Valéry).

2 - Ecografias literárias

Ao pesquisar nas edições originais a localização de alguns poemas de Heinrich Heine (pedem-me traduções para uma edição digital no Brasil) musicados por Schumann, descubro que um dos motivos marcantes da célebre «Fuga da Morte», de Paul Celan, vem de um poeminha de Heine incluído no ciclo «O regresso», no seu primeiro livro. Não tinha dado por isso antes. É um poema sobre uma tempestade no mar – um poema da natureza –, abre com o motivo do ataque musical da dança da tempestade: «Der Sturm spielt auf zum Tanz...», e continua com os micromotivos do «assobiar», do «uivar» e do «berrar», que também ecoam no poema de Celan.
O incipit do poema de Heine é assim:

E em Celan dá:

A tempestade no mar, motivo frequente na pintura e na poesia romântica, resulta no poeta moderno em inferno na terra – num dos grandes poemas históricos da literatura das vítimas do holocausto. Ao desequilíbrio da Natureza em fúria, controlável com alguma sorte e perícia, do século dos idílios, corresponde no século trágico o insuportável e terrível vendaval da História.

É claro que não há nesta utilização do motivo de Heine qualquer espécie de plágio. Apenas a constatação de que Celan, como muitos outros poetas do século XX (quase todos eles poetas «políticos»), leu o seu Heine. A estes cruzamentos chama a teoria literária «intertextualidade». Também lhe podemos chamar uma forma de «ecografia literária», escrita de ecos: a história da literatura é um vasto campo de ecos, ressonâncias, reflexos, reverberações. E nem sempre dos poetas «fortes» para os «fracos». E nem sempre há nisto a «angústia da influência». O metabolismo poético dos tempos, ao contrário do político, acontece num espaço mais livre, como uma respiração serena, sem convulsões violentas. A «Fuga da Morte» é uma grande caixa de ressonância onde uma ténue nota, ao se extinguir pouco a pouco, vai naturalmente dar ao poema de Heine. E outras notas, sabemo-lo, remetem aí para outros textos, também do próprio autor.

3 - Jaspers, ontem e hoje (com Hannah Arendt em fundo)

Recebi do Arquivo de Literatura Alemã, em Marbach, os habituais «presentes de Ano Novo», desta vez um livrinho com textos sobre as metrópoles de Paris e Londres publicados no jornal do grande editor alemão Cotta, Morgenblatt für gebildete Stände (Folha matinal para as classes cultas), e ainda o facsimile de um autógrafo do filósofo Karl Jaspers, preparatório do seu livro sobre Hannah Arendt (Do Pensamento Independente. H. Arendt e os seus críticos), de quem se comemorou em 2006 o centenário do nascimento (o Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa organiza ainda este mês um colóquio sobre esta importante figura do pensamento político livre no século XX).

O fragmento manuscrito ocupa-se do riso. Do riso de Hannah Arendt face à incarnação da «banalidade do mal», Adolf Eichmann, o carrasco, Eichmann, o palhaço, Eichmann, o manga-de-alpaca da História, como Arendt o vê no livro Eichmann em Jerusalém.
Ao arrumar o folheto junto de outros livros de Jaspers, dou de caras com o meu primeiro contacto com este filósofo do «existencialismo cristão» (que me foi dado a conhecer, disso tenho a certeza, pelo Padre Manuel Antunes na Faculdade de Letras dos idos de sessenta): a edição portuguesa de Razão e Contra-razão do Nosso Tempo, prefaciado por Delfim Santos e traduzido (nunca imaginaria, hoje!) por Fernando Gil.

O livro tem na página de ante-rosto o meu nome e a data da compra (Dezembro de 1962), como costumava fazer na altura o estudante que começava timida e humildemente a formar uma biblioteca própria. E uma outra anotação, mais tardia e a lápis, que lembra o fim da editora Minotauro, de que tenho ainda quase todos os livros, às mãos da PIDE, que lhe inundou a cave e destruiu toda a existência – no duplo sentido do termo.

Não devo ter entendido bem, nessa altura, as ideias do livro, nem as ambiguidades de fundo de um existencialismo cristão e racionalista. Hoje sei que não lhe sigo sem reservas as teses maiores, que não acredito nessa racionalidade englobante, até dos seus contrários, que Jaspers propõe. O absurdo da História revelado naqueles sintomas que uma obra maior deste filósofo designa de «Situação 'espiritual' do nosso tempo» está fora de toda a razão, há meio século como hoje, em Hitler como em Bush.
E o corpo continua a ter razões que a razão desconhece.