19 janeiro, 2007



PASSAGENS

Entro na segunda parte do Diário para Walter Benjamin, centrada no segundo volume das Obras Escolhidas, que inclui três livros: Infância Berlinense: 1900, Rua de Sentido Único e Imagens de Pensamento. O salto em relação ao primeiro Diário é o que vai do Barroco à Arte Nova (1900) e à Art Déco e ao Surrealismo (anos vinte). A deslocação é visível, não apenas nos temas e motivos abordados, mas também na forma de apresentação das páginas manuscritas do Diário.



I -

Em Novembro de 2003 recebo de Pedro Eiras um mail, comentando o meu comentário à sua peça Passagem. É a história de uma personagem em trânsito por Lisboa, como houve tantas nos anos de chumbo do nazismo, gente anónima ou com nome feito, esperando em pensões baratas ou em Estoris ricos pelo paquete que os levasse às Américas. A personagem da peça tem nome de Franz, mas pareceu-me desde logo reconhecer nela Walter Benjamin. Teria sido mais uma passagem por Lisboa, esta d' O Passageiro Walter Benjamin (como dirá, em 2000, o título do romance do colombiano Ricardo Cano Gaviria, editado pela Antígona), a caminho de uma América que acolheu tant bien que mal outros judeus. O Pedro esclarece que «Benjamin foi, até à última reescrita da peça na oficina da escrita, a personagem principal, e não esse Franz criado do nada. A peça chamar-se-ia, de acordo com os projectos iniciais, Mais Dois Meses para Walter Benjamin, e terminaria com a morte do filósofo, levado pelo seu Anjo da História, esquecendo as palavras que aprendeu em vida. Na última sessão da discussão», continua o autor, «os meus colegas acharam o final hermético, e eu acabei por transformar, quer a personagem, quer o desfecho do texto. Mas para mim é Benjamin quem subjaz sempre a Franz…»

Foi melhor assim. Benjamin, que só suporta verdades através de véus, como os aprendizes do templo de Saïs, não gostaria de um final transparente. Sempre estas confusões, que o nosso tempo cultiva, entre a vontade de verdade e o labéu de opacidade e hermetismo para tudo o que exija um pouco mais de sensibilidade ou pensamento. Este mundo, sempre de pernas obscenamente abertas, não gosta de verdades veladas. Tem de ser tudo escancaradamente manifesto.



II -

Novembro é mês de passagens. Tristes. Desde sempre mês de passagens, de exílios. Ocorre-me o começo do Conto de Inverno (1844) de Heinrich Heine:

Estávamos em Novembro, triste mês –
O tempo pardo em que o nevoeiro cerra,
A folhagem caía já com o vento
E eu ia para a Alemanha, a minha terra...



O tema seria retomado séculos mais tarde por Wolf Biermann, baladeiro contestatário, num país triste, a antiga RDA, e também o seu Conto de Inverno (de 1972) é um canto de passagem, de exílio a exílio:

No Dezembro alemão corria o Spree
De um para o outro lado de Berlim
E eu no comboio, por cima do Muro,
Atravessando os ares então me vi.

Pairava, leve, sobre as cercas de arame,
Os cães-polícia à espera lá fora –
Que estranha sensação me ia na alma
E no sentido que grande amargura!
[...]
Pensei também há tempos no meu primo
Heinrich Heine, que cuspia veneno
E veio de França um dia, pela fronteira
Do pai de todos nós, o velho Reno.

E pus-me então também a meditar
No que em cem anos a nós nos sobreveio
E como a Alemanha, em glória unificada,
Hoje está outra vez partida ao meio.

E depois? Também o mundo inteiro
Se dividiu em Leste e Ocidente.
Mas a Alemanha, como tinha de ser,
Manteve a sua posição de sempre.

E essa é a posição de cu do mundo,
Gordo e anafado, como um cu se quer.
Os pêlos que no rego lhe cresceram
São de arame farpado, está-se a ver!

E mesmo o próprio olho, isto é, Berlim,
No nosso caso ao meio se parte.
Conseguimos até envergonhar
A biologia com engenho e arte.

E quando aos grandes senhores deste mundo
O estômago lhes dói e lhes remói,
Estraleja e cheira mal em toda a Alemanha.
Querem que explique? Então aí vai:

Cada parte do mundo traz em si
Um bocado do traseiro alemão.
A parte do leão é a da Alemanha
Ocidental, bem sei, e com razão.

No ocidente da Alemanha os excrementos
Alemães – não nos incomodemos! –
São polidos e perfumados
Com trabalho alemão, como sabemos.

O que a alquimia jamais alcançou
Já eles o conseguiram fazer:
Transformaram toda a merda alemã
Em ouro de lei, para valer!

A RDA, minha pátria querida,
Tem as mãos limpas, podem crer,
E o regresso da barbárie nazi
Nunca aí poderá acontecer.

Foi tal a ensaboadela,
A escova de Estaline era tão rija
Que o traseiro que antes era castanho
Ficou vermelho e a arder, p'ra que se veja!

[...]

E já mais perto de nós, Günter Grass, num ciclo
de sonetos escrito depois da unificação alemã,
daria também a esse livro o título «País de Novembro»
(1992), e aí deixaria também a sua elegia a uma outra
reunificação sonhada, que nunca teria lugar:



O que é nosso


Vasta, descansa a terra em cujo canto a beleza se vai
perdendo pelas colinas, como num prospecto,
o Norte raso, denso, cheio (neste tempo) até ao tecto.
Lá onde os filhos antes fugiam à ira do pai

não há abrigo; não, aqui já não temos segredos,
estamos abertos, reconhecíveis, a tudo expostos,
e os vizinhos, o mundo inteiro, têm os olhos postos
no que para nós é sorte, e a eles causa medos.

Cá onde estamos, engordou-nos errada conjuntura.
Fartos de sofrimentos, somos agora empanturrados
de miséria – é o livre mercado e a sua cura;

e até nos descontaram os nossos pecados!
Está em silêncio o país de Novembro, condenado ao trabalho edificante
e temendo pelo Juízo Final, o preço exorbitante.


Sem comentários: