16 janeiro, 2007



POESIA PORTUGUESA: IDOS DE NOVENTA

Regresso aos meus cadernos, blocos de notas, quarto de arrumos de leituras, cemitério de ideias (exumáveis, como se vê).
O de hoje remonta ao ano 2000, e dele retiro a introdução à poesia do ano e da década anteriores, feita numa das sessões do extinto «Jornal Falado da Actualidade Literária», do PEN Clube. Ao abrir estes cadernos, pasmo com a quantidade de poesia que lia e de que falava. Só no que se refere ao ano de 1999, o último da década, o caderno regista notas de leitura, elaboradas e por vezes longas, para livros dos seguintes poetas saídos nesse ano: António Ramos Rosa, Nuno Júdice, José Tolentino Mendonça, Manuela Parreira da Silva, Luís Filipe Castro Mendes, Casimiro de Brito, Vasco Graça Moura, João Miguel Fernandes Jorge, Manuel António Pina, Fernando Guerreiro, Ana Hatherly, António Franco Alexandre, Paulo Teixeira, Luís Quintais, Jorge Gomes Miranda, Maria Amélia Neto...
E sobre a década diz o seguinte:
«Num daqueles balanços impossíveis da década de noventa na poesia portuguesa, um crítico, que aliás muito prezo [lembro-me de que se tratava de Osvaldo Silvestre, em balanço no Expresso], chegava à conclusão, para mim surpreendente, de que os últimos dez anos foram “anos magros” para a nossa poesia. Abria algumas excepções - e também aqui alguns dos destaques me surpreenderam -, e concluia: “O século acaba como começou: entregue a uma dicção esteticista e em tom menor”.
Eu diria antes que a década - e o seu último ano, que aqui nos interessa - espelham o movimento geral do mundo: vivemos um tempo de grande permissividade, grassa o eclectismo, o tom geral da poesia, como do pensamento, é mais “debole” que forte - mas a poesia não se quer “forte”, tivémos no século que findou arte musculada que bastasse. E o “tom menor” (entendo o termo agora em sentido musical) sempre foi, afinal, o que mais caracterizou a poesia portuguesa. Talvez precisemos, isso sim, de uma depuração da onda lírica que nos submerge nos últimos anos. São às centenas os livros de poesia que anualmente se publicam. Esse processo, o próprio tempo se encarregará de o fazer. Mas talvez esse trabalho de destilação pudesse ser feito, para os últimos anos, olhando para os livros presentes nos “Jornais Falados” que vimos fazendo sobre a poesia do ano anterior.

Contrariando ainda um pouco a tese do “tom menor” (naquilo que nela parece querer dizer: não temos, com poucas excepções, “grande poesia” (?) nos últimos dez anos), eu arriscaria afirmar que a poesia portuguesa, que passou nos anos 70 e 80 por uma certa necessidade de dessacralização, voltou a fazer-se com um mais acentuado sentido, se não do sagrado, certamente do sublime, do solene, da interioridade e da tradição. A poesia de 1999 confirma plenamente isto, e por isso pede, em sessões como esta, uma atenção particular, uma certa ritualização - até na sua leitura - que, não tendo nada a ver com qualquer espécie de veneração patética, contrarie a indigência de espírito e a boçalidade que diariamente nos entra pela casa adentro. E isso só pode ser feito por uma poesia que, como dizia José Tolentino Mendonça na Bienal do Rio de Janeiro, seja “o lugar de um tempo interior, ciciado e secreto”, e como tal “uma arte insubmissa e subversiva”.
A poesia parece ter uma certa necessidade de se demarcar dos tempos, e a do ano passado fá-lo por duas vias que me parecem ser os filões dominantes dos livros que seleccionei, para além dos dos autores aqui presentes: a reflexão (poética) sobre o próprio tempo, a transitoriedade e a morte (de que a escrita, naquilo que a distingue do "resto" que é a literatura, é espelho maior para alguns poetas); e, associada a esse tema - de facto, eles alimentam-se um ao outro, como na poesia do maneirismo, questão a que regressarei a propósito de mais do que um livro do ano -, a retirada para os domínios da temática amorosa - há muito tempo que não se escrevia tanta poesia de amor em Portugal.»

A última frase destas anotações, que continua a servir-me hoje, é composta por dois versos de Jorge Gomes Miranda, e apela para a necessidade da errância, para submeter a experiência a uma permanente e lúcida revisão:
Mudemos de casa; porque é preciso
arrumar as dores de outra maneira.


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