28 fevereiro, 2014

DO PESO E DA LEVEZA DA POESIA

Acabo de receber o voluminho com um ensaio meu sobre o peso e a leveza da palavra da poesia, saído na Lumme Editor, do Rio de Janeiro, na colecção «Mobile», dirigida pelo professor e escritor Manoel Ricardo de Lima. Deixo aqui alguns excertos da parte introdutória, que circunscrevem o tema e os caminhos seguidos. Um conjunto de três ensaios sobre a poesia, em que se inclui este, deverá sair brevemente em edição portuguesa da Documenta. A fotografia da capa e as restantes são de Maria Etelvina Santos.


O poço e a espiral da memória podem ser as metáforas que consubstanciam as vias de acesso ao tema que aqui se tratará, para tactear os meandros do peso e da leveza na linguagem da poesia. Ou então, para chegar aos fundos do poço obscuro que conferem densidade à palavra da poesia, e da espiral por onde ela, alada, alcança sentidos sensíveis acima das significações correntes, o ponto de partida poderia ser este: tentar recordar-me de tudo aquilo que, no meu convívio com os textos e com a voz que os faz viver, em particular os de poesia, sugira variantes ou momentos diversos que, numa escala muito ampla, possam relacionar-se com um ou outro destes dois pólos, ou com ambos. O que re-cor-do (o que me ficou no coração) de uma longa experiência de contacto com a poesia é certamente mais da ordem da leveza do que do peso – apesar de uma boa parte desse convívio ter acontecido com uma tradição da poesia europeia, a alemã, geralmente vista como portadora de grande densidade. Para além do corpo mesmo do poema, que pode ser denso e intenso, a própria imagem que associo ao livro de poesia é a do portátil e leve, porque o corpo denso da palavra do poema é ao mesmo tempo da ordem do imaterial (veremos até que ponto, no que se segue, ficará claro este aparente paradoxo). Como já escrevi noutro lugar, só vejo a poesia «em pequenos volumes, quase tabuinhas de leitura breve, mas intensa. O leitor de poesia pede livros portáteis (mas não descartáveis) que possa levar consigo. [...] Perante alguns pavés de muitas centenas ou mesmo milhares de páginas de poesia, às vezes chego a temer que ela deixe de ter leitores, ou que certos poetas se fiquem por aí, pelo monumento [...], grossos volumes, quase impossíveis de manusear, mas investidos de alto valor monumental e comemorativo, como uma espécie de mausoléus da poesia.» (vd. A Escala do Meu Mundo, 2006). Mas o caminho poderia também ser o do esquecimento, no rasto de Derrida e da sua perseguição da poesia e do poético, melhor, do poemático, do poema antes do acto de o fazer, de o fixar para a memória pelo peso da escrita («apenas uma contaminação, tal e tal cruzamento, este acidente», diz Derrida). E então esse caminho seria o de um «desamparar a memória, desarmar a cultura, saber esquecer o saber, incendiar a biblioteca das poéticas» (Derrida, Che cos' è la poesia?).
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A minha referência de partida, tal como o exemplo maior de que me servirei (um poema de Hölderlin, numa versão que constitui um dos primeiros ensaios de uma experiência em curso, de tradução de toda a sua poesia por uma via muito literal, e que dá particular atenção à materialidade dos ritmos, das imagens, da sintaxe, do corpo da palavra original), evidenciam uma abordagem perfeitamente convencional que hoje poderia facilmente ser substituída por outras portas de entrada, abrindo para toda a parafernália tecnológica à nossa disposição. A minha nada tem de rebuscado, nos exemplos práticos (a poesia) e nas referências teóricas que uso (só filósofos, pensamento na medida do possível não mediatizado), nem exigem meios especiais; e o método que sigo é o do velho comentário (de um único poema de Hölderlin, de onde, com o necessário enquadramento filosófico, poderia extrair quase tudo o que tenho para dizer). 
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Perante um tema como este — o peso e a leveza —, em que qualquer dos termos, como a seguir veremos, é instável, junto-me à comunidade dos que não têm certezas, onde encontro um compagnon de route que muito prezo, Pascal Quignard, que me dá o mote: «Je ne cherche que des pensées qui tremblent» (Les ombres errantes, 2002). Pensamentos oscilantes, instáveis, incertos, mesmo inseguros – como a matéria que aqui nos ocupa. 
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Os exemplos servem-me apenas para evidenciar uma tese, que agora poderemos fundar melhor em pensamento: peso e leveza, vistos como pólos de uma oposição binária, são inadequados e arbitrários para dar certas realidades, e revelam-se intercambiáveis. Quase nunca se podem atribuir as qualidades do peso e da leveza a um objecto em termos de exclusividade, muito menos a um objecto artístico, ou de linguagem. Em certos domínios, como nas artes plásticas, também a experiência da abstracção (a leveza do conceptual, não-figurativo) é simultaneamente a experiência da mais intensa concretude (peso da matéria). Para além disso, no seu uso comum, não científico e não filosófico, os dois termos contêm quase sempre uma grande carga metafórica que leva a um uso «impróprio» e — face ao rigor da indecidibilidade que marca as suas ligações — os torna inutilizáveis na esfera do pensamento ou da estética. Jacques Derrida parece corroborar esta impossibilidade de segregação entre os dois termos no célebre escrito de 1968 «A farmácia de Platão», desconstruindo o conceito do pharmakon — que em grego significa tanto «remédio» (o que alivia) como «veneno» (o que pesa no corpo e mata) — e, com ele, todo o binarismo da metafísica ocidental. De facto, como se situam esses dois termos  em  relação  a  realidades  como o pensamento, a palavra, a linguagem, a arte, a criação? Mas também a pedra, a água, o planeta,  a nebulosa;  ou  ainda  a  sensação,  o sentimento, a dor,  a paixão...?  Onde está o peso,  onde a leveza,  destas  «realidades»?  O chamar-lhes «realidades» – realia –, uniformizando o que é plural, universalizando o singular, materializando o imaterial, é já problemático. 
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