DO PESO E DA LEVEZA DA POESIA
Acabo de receber o voluminho com um ensaio meu sobre o peso e a leveza da palavra da poesia, saído na Lumme Editor, do Rio de Janeiro, na colecção «Mobile», dirigida pelo professor e escritor Manoel Ricardo de Lima. Deixo aqui alguns excertos da parte introdutória, que circunscrevem o tema e os caminhos seguidos. Um conjunto de três ensaios sobre a poesia, em que se inclui este, deverá sair brevemente em edição portuguesa da Documenta. A fotografia da capa e as restantes são de Maria Etelvina Santos.
O poço e a
espiral da memória podem ser as metáforas que consubstanciam as vias de acesso
ao tema que aqui se tratará, para
tactear os meandros do peso e da leveza na linguagem da poesia. Ou então, para chegar aos fundos
do poço obscuro que conferem densidade à palavra da poesia, e da espiral por
onde ela, alada, alcança sentidos sensíveis acima das significações correntes,
o ponto de partida poderia ser este: tentar recordar-me de tudo aquilo que, no
meu convívio com os textos e com a voz que os faz viver, em particular os
de poesia, sugira variantes ou momentos diversos que, numa escala muito ampla,
possam relacionar-se com um ou outro destes dois pólos, ou com ambos. O que re-cor-do (o que me ficou no coração) de uma longa experiência de
contacto com a poesia é certamente mais da ordem da leveza do que do peso – apesar
de uma boa parte desse convívio ter acontecido com uma tradição da poesia
europeia, a alemã, geralmente vista como portadora de grande densidade. Para
além do corpo mesmo do poema, que pode ser denso e intenso, a própria imagem
que associo ao livro de poesia é a do portátil e leve, porque o corpo denso da
palavra do poema é ao mesmo tempo da ordem do imaterial (veremos até que ponto,
no que se segue, ficará claro este aparente paradoxo). Como já escrevi noutro
lugar, só vejo a poesia «em pequenos volumes, quase tabuinhas de leitura breve,
mas intensa. O leitor de poesia pede livros portáteis (mas não descartáveis)
que possa levar consigo. [...] Perante alguns pavés de muitas centenas ou mesmo milhares de páginas de poesia, às
vezes chego a temer que ela deixe de ter leitores, ou que certos poetas se
fiquem por aí, pelo monumento [...], grossos volumes, quase impossíveis de
manusear, mas investidos de alto valor monumental e comemorativo, como uma
espécie de mausoléus da poesia.» (vd. A Escala do Meu Mundo, 2006). Mas o caminho poderia
também ser o do esquecimento, no rasto de Derrida e da sua perseguição da
poesia e do poético, melhor, do poemático,
do poema antes do acto de o fazer, de o fixar para a memória pelo peso da
escrita («apenas uma contaminação, tal e tal cruzamento, este acidente», diz
Derrida). E então esse caminho seria o de um «desamparar a memória, desarmar a
cultura, saber esquecer o saber, incendiar a biblioteca das poéticas» (Derrida, Che cos' è la poesia?).
[...]
A minha
referência de partida, tal como o exemplo maior de que me servirei (um poema de
Hölderlin, numa versão que constitui um dos primeiros ensaios de uma
experiência em curso, de tradução de toda a sua poesia por uma via muito
literal, e que dá particular atenção à materialidade dos ritmos, das imagens,
da sintaxe, do corpo da palavra original), evidenciam uma abordagem
perfeitamente convencional que hoje poderia facilmente ser substituída por
outras portas de entrada, abrindo para toda a parafernália tecnológica à nossa
disposição. A minha nada tem de rebuscado, nos exemplos práticos (a poesia) e nas referências teóricas que uso (só filósofos, pensamento na medida do
possível não mediatizado), nem exigem meios
especiais; e o método que sigo é o do
velho comentário (de um único poema de Hölderlin, de onde, com o necessário
enquadramento filosófico, poderia extrair quase tudo o que tenho para dizer).
[...]
Perante
um tema como este — o peso e a leveza —, em que qualquer dos termos, como a
seguir veremos, é instável, junto-me à comunidade dos que não têm certezas,
onde encontro um compagnon de route
que muito prezo, Pascal Quignard, que me dá o mote: «Je ne cherche que des pensées qui tremblent» (Les ombres errantes, 2002).
Pensamentos oscilantes, instáveis, incertos, mesmo inseguros – como a matéria
que aqui nos ocupa.
[...]
Os
exemplos servem-me apenas para evidenciar uma tese, que agora poderemos fundar
melhor em pensamento: peso e leveza, vistos como pólos de uma oposição binária, são inadequados e
arbitrários para dar certas realidades, e revelam-se intercambiáveis. Quase
nunca se podem atribuir as qualidades do peso e da leveza a um objecto em
termos de exclusividade, muito menos a um objecto artístico, ou de linguagem.
Em certos domínios, como nas artes plásticas, também a experiência da
abstracção (a leveza do conceptual, não-figurativo) é simultaneamente a
experiência da mais intensa concretude (peso da matéria). Para além disso, no
seu uso comum, não científico e não filosófico, os dois termos contêm quase
sempre uma grande carga metafórica que leva a um uso «impróprio» e — face ao rigor da indecidibilidade que marca as
suas ligações — os torna inutilizáveis na esfera do pensamento ou da estética.
Jacques Derrida parece corroborar esta impossibilidade de segregação entre os
dois termos no célebre escrito de 1968 «A farmácia de Platão», desconstruindo o
conceito do pharmakon — que em grego
significa tanto «remédio» (o que alivia) como «veneno» (o que pesa no corpo e
mata) — e, com ele, todo o binarismo da metafísica ocidental. De facto, como se
situam esses dois termos em relação
a realidades como o pensamento, a palavra, a linguagem, a
arte, a criação? Mas também a pedra, a água, o planeta, a nebulosa;
ou ainda a
sensação, o sentimento, a
dor, a paixão...? Onde está o peso, onde a leveza, destas
«realidades»? O chamar-lhes
«realidades» – realia –,
uniformizando o que é plural, universalizando o singular, materializando o
imaterial, é já problemático.
[...]
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