14 março, 2014

A «AUTOBIOGRAFIA» DE THOMAS BERNHARD



Acaba de sair, na editora Sistema Solar,  um volume que reune as cinco narrativas que, posteriormente à morte de Thomas Bernhard, foram agrupadas com o título – que o autor nunca lhes deu – de Autobiografia.
O Público de hoje traz um desenvolvido artigo de José Riço Direitinho sobre este novo livro de Bernhard traduzido por José Palma Caetano, onde são transcritas algumas declarações minhas. Elas resultaram de cinco perguntas que Riço Direitinho me colocou, e a que respondi procurando articular um discurso que fosse ao encontro das questões colocadas e ao mesmo tempo pensasse alguns tópicos essenciais desta «Autobiografia» e da Obra de Bernhard em geral. Como o texto aparece disperso e fragmentário no jornal de hoje, deixo aqui o que escrevi, pela ordem das questões que me foram colocadas. 

 
1.
Se colocar a mim próprio a questão do «grande escritor» no espaço de língua alemã, ocorre-me certamente um nome como Günter Grass, que, mais do que um grande escritor, é – como Thomas Mann antes dele, ou Goethe para este romancista – um dos grandes «representantes» da literatura de língua alemã do pós-guerra, com uma Obra que acompanha e reflecte como poucas a sua própria época. Um outro grande antecessor de Bernhard, simultaneamente espelho de uma época e «escritor da escrita» – falo de Robert Musil –, distinguia entre os «grandes escritores» (cujo paradigma seria Thomas Mann) e os «homens do circo» (ele próprio). Bernhard é um grande escritor – agora sem aspas! – precisamente porque é o grande «homem do circo» das letras austríacas na segunda metade do século XX. E a arena desse circo, não diria trágico, mas agónico, é a sua própria existência (a sua alma?) de palhaço pobre e hiperlúcido, muitas vezes cáustico, outras vezes snobe, sempre capaz de um humor soberano, no grande lunaparque da sociedade e da história austríaca e europeia. Ou do mundo em geral, que ele via – não sem razão, constatamo-lo hoje claramente – como «um lugar cheio de erros». Entre nós, alguns, que podemos ver como versão menos funambulesca, mas igualmente radical e íntegra, viram também desse modo aquilo a que se chama «mundo» – que «é um erro», disse um dia Rui Chafes, que não tem forma fixa nem é lugar idílico, mas um «jardim devastado», escreve Maria Gabriela Llansol).

2.
A questão da autobiografia é uma não-questão em Thomas Bernhard, de tal modo a sua obra é inequivocamente a sua vida genialmente transfigurada – ou nem tanto – como, uma vez mais, o é numa autora nossa como Llansol. O autobiográfico enquanto matéria ficcionada (e muito reinventada, em particular nos «factos» desta Autobiografia) é em Bernhard o equivalente do seu estilo enquanto linguagem redundante que, como Adorno dizia de Beckett, é espelho de uma «historicidade imanente». Toda a Obra de Bernhard – em especial a ficção, que é autobiográfica, e a autobiografia, que não pode deixar de ser lida como ficção, e como tal se apresenta – é uma construção comparável àquela que serve já a Goethe para definir a forma então nova da «novela»: a partir de um centro que é «um acontecimento insólito» e obsessivo (aqui: ele próprio, Thomas Bernhard), vão-se desenvolvendo ondas concêntricas, semelhantes, mas de amplitude e intensidade diversas, num eterno ciclo da diferença na repetição. Ler Bernhard é, assim descobrir esse núcleo central e seguir os círculos que dele nascem e constituem a matéria do romance – ou da autobiografia, que, deste ponto de vista, não é mais nem menos importante do que o romance propriamente dito. Aqui, a ficção é autobiografia deslocada e amplificada, e a autobiografia necessariamente ficcionada, isto é, transfigurada para servir, quer os mitos pessoais do autor, quer a sua vontade de dar a ler a História na experiência subjectiva. Esconde-se aqui um paradoxo central da escrita de Thomas Bernhard: o eu, empolado até ao limite do insuportavelmente reconhecível, é, afinal, o momento menos importante dessa escrita. É ela, a própria escrita, que verdadeiramente conta, na sua radicalidade e singularidade. O resto, que está fora dos círculos desse mar de linguagem, é... o chamado «mundo» – que não existe, e não interessa, a não ser para denunciar o seu absurdo pela escrita.

3.
Daqui, é fácil concluir por que razão a Obra de Bernhard continua a questionar-nos, mesmo fora do seu habitat mais evidente e natural, a Áustria do autor. Mas, por mais estranho que pareça, o mais importante nesta Obra não é, nem o autor, nem «a sua» Áustria (de que ele parece estar sempre hainamouré, diz um crítico francês). Isso torna-se evidente hoje, quando o podemos ler com maior distância e serenidade. O que conta e o que fica é essa sua capacidade de transpor para uma linguagem límpida e limpa (apesar de todo o esterco do mundo que lhe subjaz) um posicionamento heterofágico, que engole o outro, o social, a História, para o vomitar no papel, que destila veneno sobre o mundo, mas mais não pretende do que, à maneira do seu par Samuel Beckett e do seu «realismo» também agónico, ler o mundo a partir do seu centro – que só por grande hipocrisia ou ingenuidade se quererá ver fora do próprio sujeito, de um sujeito para quem a escrita é o seu modo de estar no mundo. Em Bernhard, como em Beckett ou ainda em Llansol, do tecido subjectivo, objectivado e obsessivo do texto evolam-se os vapores da grande História do século e do mundo.

4.
Como o próprio Bernhard escreve num dos seus romances traduzidos cá (Betão), andamos sempre «às voltas com os mortos». O que quer dizer que somos reféns de passados, o próprio e os alheios. O tema freudiano da «morte do pai» desloca-se, no caso de Bernhard, para um espaço mais amplo que parece ser o de todos os grandes pais (e mães) que nos moldam e condicionam, a começar pelos próprios (no caso de Bernhard a questão nem sequer se pode aplicar ao pai biológico, com quem não conviveu, sendo, como foi, substituído pelo avô que ele idolatrava) e acabando na famigerada «pátria/mátria», simbolizada em Bernhard na peça-testamento intitulada Praça dos Heróis, o locus horrendus vienense que consubstancia todo o seu amoródio pela Áustria.
Na Autobiografia, esse «pai» odiado é o próprio Estado (o nazi e o austríaco anexado e todos os outros), origem de todos os males, pessoais e históricos. É este composto explosivo de ressentimento e exclusão, de abandono e opressão, que alimenta toda essa narrativa das origens que é a Autobiografia (nisto idêntica a muitas outras obras do autor), estruturada em cinco partes que trazem nomes que são ao mesmo tempo «alusão» a uma «causa» («raiz»? «origem»?) de onde tudo nasce (a Guerra e o que se lhe segue, e esse lugar real-simbólico da morte, de seu nome Salzburg), um «isolamento» e uma «retirada», até à «decisão» de pôr meia vida em escrita.
As «origens» são importantes em toda a obra de Bernhard porque é o regresso a elas, sob a forma de ficção, que melhor lhe permite compreender o mundo, igual na sua essência ontem como hoje, já que, como lemos em A Cave, é pela encenação literária das origens próprias que melhor se pode realizar um dos pressupostos centrais desta Obra: a ideia de que «o importante, afinal, é o conteúdo de verdade da mentira».

5.
Penso que a «ferida» não sarável presente em tudo o que Bernhard escreveu divide os leitores porque, provavelmente, nem os adoradores nem os detractores o entendem – quero dizer, não é possível chegar perto desta escrita a partir de tais posições (pré-)determinadas. Isto, porque há na sua Obra um fundo de «a-moralidade»  e de indiferença que dificulta um acesso mais sereno a esta obra. A «genial imperfeição» de que Bernhard tem consciência em relação a si próprio (apercebi-me disso nas duas ou três ocasiões em que tive contacto pessoal com ele) vai de par com um sentido de superioridade que lhe permite ser o lugar irreferenciável da total in-diferença. Sendo o niilista perfeito que é, Bernhard é também o impossível moralista. O grande paradoxo desta escrita que parece estar sempre de dedo em riste é que ela não se faz a partir de um «lugar de sentido» claro e unívoco, muito menos com pretensões de validade universal. Bernhard é também o perfeito relativista de uma ironia dissolvente que não poupa nada nem ninguém. A começar por si próprio, ao ver-se como exímio autor de «fracassos de escrita».


07 março, 2014

UMA NOVA REVISTA
  Apresentei ontem, na Livraria da Assírio & Alvim do Chiado, uma nova revista que promete vir para ficar e intervir num espaço «cultural» e numa área específica que já teve melhores dias... Deixo aqui o que me ocorreu dizer nessa apresentação.



Estamos aqui para falar de mais uma revista literária, num momento em que elas não abundam fora do âmbito universitário e mais ou menos institucional, onde algumas sobrevivem e outras foram surgindo e desaparecendo, com modelos estritamente crítico-teóricos, ou mais híbridos (a Diacrítica, em Braga; a ex-Plural (INCM), a Colóquio-Letras, a LER, a Foro das Letras ou O Escritor; a Golpe d'Asa, de um dos Centros da Faculdade de Letras de Lisboa...).
O que falta são revistas de perfil mais livre, não propriamente geracional, e abertas à colaboração no âmbito de todos os géneros literários e das artes em geral. É este o caso da Delphica – uma iniciativa dos escritiores Jorge Fernandes, José Manuel de Vasconcelos, Vergílio Alberto Vieira e Rui Vieira –, que assim se insere, com perfil próprio, na longa tradição do século XX português desde Orpheu e a Presença ou a Távola Redonda, até experiências e aventuras mais recentes, com revistas mais ou menos duradouras, quase sempre feitas por poetas, escritores e artistas: lembro algumas que a memória me traz,  a Limiar de Egito Gonçalves, a Hífen de Inês Lourenço, as efémeras Correspondência Literária de António Franco Alexandre e Helder Moura Pereira, ou a Bumerangue de um grupo de poetas novos de Guimarães, a Sema, etc.; e também as ainda presentes Relâmpago e Telhados de Vidro, ou recentíssimas, como a Criatura e a original Cão Celeste.
Mas voltemos ao que nos traz aqui: o aparecimento de mais uma revista de «Letras e Artes», diz a capa – mas na contracapa lemos «Cadernos de Literatura e Arte», o que nos remete para uma outra interessante e importante tradição, a das revistas (sobretudo de poesia, mas não só) que assim se designavam: os Cadernos do Meio-Dia (com Ramos Rosa e Casimiro de Brito em Faro, nos anos 50) ou os Cadernos de Poesia de Cinatti, José Blanc de Portugal e Tomaz Kim, nos anos 40/50; ou os Cahiers du cinéma e as muitas revistas alemãs de todo o século XX assim chamadas (Hefte...).
Em todos estes casos, o que era/é uma «revista»? É interessante olhar para a palavra, e pensar nela nas várias línguas mais próximas de nós: revista, revue, rivista, review, um termo que, nas origens, indicava um órgão de re-visão ou revisitação (em síntese), de ideias, temas, objectos de estudo, textos de criação. A revista seria então qualquer coisa como um espaço de segunda mão (sentido que hoje, evidentemente, perdeu). Mas revista também se chama magazine, e então a coisa assim chamada torna-se – o que ainda é o caso – armazém, lugar de acolhimento ou espaço onde se acumulam ou são guardadas coisas diversas (e dispersas, ainda que muitas vezes à volta de um tema):  a revista faz então chegar aos seus leitores vozes singulares, mas muitas vezes comprometidas com um «programa», uma ideia condutora (que é o que me parece acontecer com a nossa Delphica). E há ainda o singular termo alemão para revista, Zeit-schrift (escrita do tempo/no tempo/para o(s) tempo(s)), que remete, quer para o carácter de actualidade do que aí se pode ler, quer também para uma vontade de intervir no seu tempo (desiderato que parece ser também o da Delphica). Implícita no termo está ainda a consciência da sua transitoriedade e precaridade (mais evidente ainda no jo(u)rnal, sobretudo por comparação com a aparente «solidez» e  perenidade do livro).
Falar de uma revista é, assim, sempre falar de um corpo estilhaçado, embora atravessado por um impulso ou uma vontade de unidade (talvez impossível, sempre desejada) – aqui, na re-vista, magazine e escrita-do-tempo, os rostos são sempre vários, mas o horizonte é muitas vezes um, frequentemente até programático. A Delphica não anda longe disso: é evidente a sua intenção de intervir, fugindo a uma cómoda neutralidade.
Duas perguntas se me impõem ao abrir este primeiro número da Delphica e ao ler o Editorial e o texto de abertura do Prof. Delfim Leão, helenista de Coimbra («Porquê a Grécia?»):
1. O que fez os responsáveis por mais uma revista literária e artística portuguesa regressarem hoje, tão ostensiva e deliberadamente, à Grécia antiga?
– A «actualidade» dessa civilização, que continua a ser o húmus fundamental (embora não exclusivo) da nossa própria consciência cultural, ou daquilo que nela resiste aos novos padrões civilizacionais?
– A actualidade do «problema Grécia» no nosso tempo, como paradigma do desastre de uma Europa e de um sistema a que esta docilmente se submete?
2. Porquê este título, em si nem enigmático nem livremente «poético», mas desde logo vinculado a uma ideia de recorte profético, que faz ouvir de novo, em tempos obscuros, a voz da Pitonisa que ressoa do «umbigo do mundo»? (aquele ómphalos tou kosmóu que ainda ouço na voz fina do Padre Manuel Antunes nas aulas de História da Cultura Clássica, eu completamente perdido na verdura dos meus dezoito anos claramente impreparados para aquela fascinante dialéctica).
Ora, ao lermos o Editorial, e depois a própria revista, esse grito arcaico da profetisa dá lugar à percepção de um desígnio claramente «clássico», de um propósito de regressar a modelos estáveis, de iluminar uma era de iliteracia, de materialismo e de ignorância.Entre aqueles dois pólos parece mover-se este primeiro número (e provavelmente os que virão): entre o alerta em relação ao estado do mundo e a vontade de «regresso a casa» – à casa europeia que foi grega durante muitos séculos, e no fundo continua a sê-lo (como bem mostra o artigo de Delfim Leão). Tratou-se claramente de uma escolha, bem expressa no Editorial, a partir de um excerto de Herberto Helder em que se fala da «paixão grega». Isto, apesar de todos sabermos que esta Europa que hoje ameaça afundar-se se alimentou também de outras raízes: judaicas e árabes, romanas e helenísticas, bizantinas e celtas, para não falar de uma herança cristã que a todas se sobrepôs, ou as assimilou indelevelmente a si.Mas foi essa a escolha dos responsáveis pela revista: a de não deixar esquecer o «génio grego» que o Padre Manuel Antunes, naqueles meus anos de aprendizagem, definia, na sua dialéctica entre hegeliana e jesuítica, como um «génio de contrastes» – que o mesmo é dizer, complexo e irredutível, movendo-se entre a hybris do real e o ideal da sophrosyne (a sabedoria e o comedimento); entre a existência comum apagada e a aretê (a exigência de ser o melhor); entre o mythos (a palavra da imaginação) e o lógos (a palavra da razão); entre o ctonismo dionisíaco e o olimpismo apolíneo; enfim, entre o destino (a moira) e a liberdade (a eleutheria)...
A Delphica espelha, à medida dos tempos de hoje, muito desta diversidade e complexidade – para não nos deixar adormecer ao som da ladainha diária e monocórdica das novas-velhas narrativas monetárias, globalizantes, consumistas e desenvolvimentistas, banalizadoras e cerceadoras do pensamento. Para podermos atravessar o pântano dos novos «tempos de indigência», os «da ruína da Grécia», como lemos nesse longo poema, entre manifesto e threnos (a lamentação homérica), que é A Terceira Miséria, de Hélia Correia. Escrito a olhar para a miséria da Atenas de hoje, e tendo como pano de fundo a loucura branda desse outro adorador da Grécia, o Hölderlin da Torre de Tübingen, deixando no ar a pergunta a que teremos de responder – a que esta nova revista responde: «Para quê poetas em tempo de indigência?» E teremos de lhe responder, insistentemente, para não nos transformarmos em meras sombras no Hades dessa terceira miséria, a de hoje. A Hélia di-lo melhor, assim:

A terceira miséria é esta, a de hoje.
A de quem já não ouve nem pergunta.
A de quem não recorda. E, ao contrário
Do orgulhoso Péricles, se torna
Num entre os mais, num entre os que [se entregam,
Nos que vão misturar-se como um líquido
Num líquido maior, perdida a forma,
Desfeita em pó a estátua.

Mas falemos da Delphica propriamente dita, e do que nos oferece este primeiro número. As colaborações confirmam em grande parte esse projecto da «paixão grega» e amplificam-no, trazendo até hoje matéria helénica, ou antiga: as versões de Gregos e de Catulo por Albano Martins (que não podia deixar de ser convocado neste contexto), os poemas da colombiana Lauren Mendinueta, uma espécie de encantamento nas ilhas do mar Egeu («en el Egeo el tiempo muere despacio»); o breve ensaio de Pires Laranjeira que recupera a «erótica solar» do materialismo hedonista antigo, para o contrapôr, num gesto crítico radical, a uma sociedade actual que vive de «fetiches e substitutos» e desconhece o verdadeiro «corpo amoroso»; e a revisitação de Tróia num fragmento do romance histórico do mexicano Antonio Sarabia. Pelos mesmos mares navega, na sua «Balsa» ficcional, a quase alegoria de Rui Vieira sobre uma Grécia e uma Europa hoje à deriva.
Fora da matéria específica desta pulsão e da paixão grega, mas ainda e sempre no seu espírito, a Delphica abre-se a formas de escrita em princípio sem limitações de género ou forma, de geração e de nacionalidade, ou mesmo de língua (há textos em castelhano e galego).
Neste primeiro número temos já:
-  textos de ficção (de Jesús del Campo, ou o já referido de Rui Vieira, ou ainda o mais híbrido de Santiago Landero);
- crónica (eu próprio, com uma série de rememorações de uma infância alentejana em tempos de cólera e resistência);
- glossas livres e textos para-ensaísticos, sobre livros e autores (Gil de Carvalho sobre um livro de um sinólogo em que o autor se desdobra em muitos outros: Les idées des autres, de Simon Leys, alias Pierre Ryckmans; e de Virgílio Alberto Vieira sobre Alexandre O'Neill a cair em cheio, com a sua verve, no meio desta nossa «crise»);
- entrevistas (a Sérgio Azevedo, músico, por Pedro Silva; a Luís Miguel Cintra, por Maria Leonor Nunes; e o, para mim, surpreendente depoimento de José Mouga, artista do ínfimo que capta a vida aparentemente parada de objectos e pequenos pormenores, numa prática de ostinato rigore com afinidades com a obra de Giorgio Morandi;
- Por fim, com ampla representação, a poesia: a original, de Ivan Junqueira e de José Manuel de Vasconcelos (esta com remissões para o Nobel Thomas Tranströmer em Lisboa, e para a nossa comum amiga austríaca Ilse Pollack); de Eduardo Guerra Carneiro, num autógrafo à contraluz de Herberto; de Jorge Fernandes, um dos coordenadores da revista, num jogo experimental hoje já pouco visto, mas refrescante e inventivo; e ainda, em originais castelhano e galego, poemas de Mario Campaña e Xosé Maria Cáccamo.
- Finalmente, a poesia em tradução traz-nos nomes pouco ou nada vistos por cá: o russo Turgueniev na tradução do brasileiro Rubens Figueiredo; o italiano Eugenio de Signoribus e o belga Yves Namur passados para o português por José Manuel de Vasconcelos.
Especialmente gratificante para mim – para além da companhia, nestas páginas, de nomes que muito prezo – foi também o do reencontro de alguns autores estrangeiros que tive o prazer de conhecer pessoalmente: os brasileiros Ivan Junqueira e Rubens Figueiredo (que conheci no Rio de Janeiro há mais de dez anos) e o poeta belga Yves Namur (que veio a Lisboa num dos Festivais de Poesia em Lisboa, que organizámos durante anos no PEN Clube).Mas mais ainda me congratulei com o facto de o dossier final deste número da Delphica ser dedicado a uma figura como Raul Brandão, que desde cedo me acostumei a ver como um dos «meus» autores «expressionistas»!
O «Caderno Raul Brandão» é, aliás, um ponto alto neste número, com cerca de 50 páginas dedicadas a um grande e diverso espectro de textos com novidades inéditas e autógrafos. Evocando livros, a biografia, lugares ou a prática jornalística de Raul Brandão, estas páginas constituem um dossier extremamente revelador, com os contributos de José António Gomes (Os Pescadores e o seu contexto), Sara Reis Silva (sobre Brandão autor de literatura infanto-juvenil), Ernesto Rodrigues a propósito da prolifica colaboração do autor em jornais e revistas, com um exaustivo levantamento; de Mário Cláudio sobre «O ofício da escrita em R. B.»; um comentário à versão cinematográfica de O Gebo e a Sombra, de Manuel de Oliveira; e last not least, a investida de fundo, neste caderno, sobre a metafísica niilista de Húmus, explorada em função da ideia de Deus no excelente ensaio de José Manuel de Vasconcelos.
                                                                   Delfos
Permitam-me ainda – como tributo ao título desta revista – um breve excurso até Delfos. Este lugar, como sabem, representava para os Gregos antigos o centro do mundo, o seio da Terra. Lugar de todas as promessas e de todas as esperanças, mas que também podia trazer as mais inesperadas revelações, capazes de fazer desabar o mundo. Estive uma única vez em Delfos, e senti aí o peso do sagrado e a leveza da insignificância humana, que levaram um poeta nosso, Pedro Tamen, que teve também essa experiência de um lugar para ele mágico, a escrever um belo livro de poesia a que chamou Delfos. Opus 12 (1987). 
A caminho do oráculo, passei por um outro lugar, um mosteiro ortodoxo de seu nome Ossias Loukas, onde vi, numa grande pintura mural, uma figura que até hoje me persegue: um anjo imponente, belíssimo, mas apenas com uma asa. Um anjo amputado, talvez impedido de voar, como tantos de nós hoje, Pássaros de asas cortadas, para lembrar o título alegórico de uma peça de Luiz Francisco Rebello em tempos salazarentos.  Recuperei a imagem daquele anjo numa crónica de que já me esqueci. Mas não esqueci o anjo do caminho de Delfos, que regressa hoje, trazido pela «paixão grega» da Delphica. Um artefacto, uma obra que será, como ele, humanamente incompleta, mas que, com este primeiro número, ensaia o seu voo monoalado – até que nasça a segunda asa, como mais uma arma, e depois outras, aquelas de que tão precisados estamos, e de que, por enquanto, ainda podemos dispor, como diz o último poema do livro da Hélia, com que vos deixo:


De que armas disporemos, senão destas
Que estão dentro do corpo: o pensamento,
A ideia de polis, resgatada
De um grande abuso, uma noção de casa
E de hospitalidade e de barulho
Atrás do qual vem o poema, atrás
Do qual virá a colecção dos feitos
E defeitos humanos, um início.