A «AUTOBIOGRAFIA» DE THOMAS BERNHARD
Acaba de sair, na editora Sistema Solar, um volume que reune as cinco narrativas que, posteriormente à morte de Thomas Bernhard, foram agrupadas com o título – que o autor nunca lhes deu – de Autobiografia.
O Público de hoje traz um desenvolvido artigo de José Riço Direitinho sobre este novo livro de Bernhard traduzido por José Palma Caetano, onde são transcritas algumas declarações minhas. Elas resultaram de cinco perguntas que Riço Direitinho me colocou, e a que respondi procurando articular um discurso que fosse ao encontro das questões colocadas e ao mesmo tempo pensasse alguns tópicos essenciais desta «Autobiografia» e da Obra de Bernhard em geral. Como o texto aparece disperso e fragmentário no jornal de hoje, deixo aqui o que escrevi, pela ordem das questões que me foram colocadas.
1.
Se colocar a mim próprio a
questão do «grande escritor» no espaço de língua alemã, ocorre-me certamente um nome como
Günter Grass, que, mais do que um grande escritor,
é – como Thomas Mann antes dele, ou Goethe para este romancista – um dos grandes «representantes» da
literatura de língua alemã do pós-guerra, com uma Obra que acompanha e reflecte
como poucas a sua própria época. Um outro grande antecessor de Bernhard,
simultaneamente espelho de uma época e «escritor da escrita» – falo
de Robert Musil –, distinguia entre os «grandes escritores» (cujo
paradigma seria Thomas Mann) e os «homens do circo» (ele próprio).
Bernhard é um grande escritor – agora sem aspas! – precisamente porque é o
grande «homem do circo» das letras austríacas na segunda metade do
século XX. E a arena desse circo, não diria trágico, mas agónico, é a sua
própria existência (a sua alma?) de palhaço pobre e hiperlúcido, muitas vezes
cáustico, outras vezes snobe, sempre capaz de um humor soberano, no grande
lunaparque da sociedade e da história austríaca e europeia. Ou do mundo em
geral, que ele via – não sem razão, constatamo-lo hoje claramente – como «um lugar cheio de erros». Entre nós, alguns, que podemos ver como
versão menos funambulesca, mas igualmente radical e íntegra, viram também desse
modo aquilo a que se chama «mundo» – que «é um erro», disse
um dia Rui Chafes, que não tem forma fixa nem é lugar idílico, mas um «jardim
devastado», escreve Maria Gabriela Llansol).
2.
A questão da autobiografia
é uma não-questão em Thomas Bernhard, de tal modo a sua obra é inequivocamente
a sua vida genialmente transfigurada – ou nem tanto – como, uma vez mais, o é
numa autora nossa como Llansol. O
autobiográfico enquanto matéria ficcionada (e muito reinventada, em particular
nos «factos» desta Autobiografia)
é em Bernhard o equivalente do seu estilo enquanto linguagem redundante que,
como Adorno dizia de Beckett, é espelho de uma «historicidade
imanente». Toda a Obra de Bernhard – em especial a ficção, que é
autobiográfica, e a autobiografia, que não pode deixar de ser lida como ficção,
e como tal se apresenta – é uma construção comparável àquela que serve já a
Goethe para definir a forma então nova da «novela»: a partir de um
centro que é «um acontecimento insólito» e obsessivo (aqui: ele
próprio, Thomas Bernhard), vão-se desenvolvendo ondas concêntricas,
semelhantes, mas de amplitude e intensidade diversas, num eterno ciclo da diferença
na repetição. Ler Bernhard é, assim descobrir esse núcleo central e seguir os
círculos que dele nascem e constituem a matéria do romance – ou da
autobiografia, que, deste ponto de vista, não é mais nem menos importante do
que o romance propriamente dito. Aqui, a ficção é autobiografia deslocada e
amplificada, e a autobiografia necessariamente ficcionada, isto é,
transfigurada para servir, quer os mitos pessoais do autor, quer a sua vontade
de dar a ler a História na experiência subjectiva. Esconde-se aqui um paradoxo
central da escrita de Thomas Bernhard: o eu, empolado até ao limite do
insuportavelmente reconhecível, é, afinal, o momento menos importante dessa
escrita. É ela, a própria escrita, que verdadeiramente conta, na sua
radicalidade e singularidade. O resto, que está fora dos círculos desse mar de
linguagem, é... o chamado «mundo» – que não existe, e não interessa,
a não ser para denunciar o seu absurdo pela escrita.
3.
Daqui, é fácil concluir
por que razão a Obra de Bernhard continua a questionar-nos, mesmo fora do seu habitat mais evidente e natural, a
Áustria do autor. Mas, por mais estranho que pareça, o mais importante nesta
Obra não é, nem o autor, nem «a sua» Áustria (de que ele parece estar
sempre hainamouré, diz um crítico
francês). Isso torna-se evidente hoje, quando o podemos ler com maior distância
e serenidade. O que conta e o que fica é essa sua capacidade de transpor para
uma linguagem límpida e limpa (apesar de todo o esterco do mundo que lhe
subjaz) um posicionamento heterofágico,
que engole o outro, o social, a História, para o vomitar no papel, que destila
veneno sobre o mundo, mas mais não pretende do que, à maneira do seu par Samuel
Beckett e do seu «realismo» também agónico, ler o mundo a partir do
seu centro – que só por grande hipocrisia ou ingenuidade se quererá ver fora do
próprio sujeito, de um sujeito para quem a escrita
é o seu modo de estar no mundo. Em Bernhard, como em Beckett ou ainda em
Llansol, do tecido subjectivo, objectivado e obsessivo do texto evolam-se os
vapores da grande História do século e do mundo.
4.
Como o próprio Bernhard
escreve num dos seus romances traduzidos cá (Betão), andamos sempre «às voltas com os mortos». O que
quer dizer que somos reféns de passados, o próprio e os alheios. O tema freudiano
da «morte do pai» desloca-se, no caso de Bernhard, para um espaço
mais amplo que parece ser o de todos os grandes pais (e mães) que nos moldam e
condicionam, a começar pelos próprios (no caso de Bernhard a questão nem sequer
se pode aplicar ao pai biológico, com quem não conviveu, sendo, como foi,
substituído pelo avô que ele idolatrava) e acabando na famigerada «pátria/mátria», simbolizada em Bernhard na peça-testamento
intitulada Praça dos Heróis, o locus
horrendus vienense que consubstancia todo o seu amoródio pela Áustria.
Na Autobiografia, esse «pai» odiado é o próprio Estado (o
nazi e o austríaco anexado e todos os outros), origem de todos os males,
pessoais e históricos. É este composto explosivo de ressentimento e exclusão,
de abandono e opressão, que alimenta toda essa narrativa das origens que é a Autobiografia (nisto idêntica a muitas
outras obras do autor), estruturada em cinco partes que trazem nomes que são ao
mesmo tempo «alusão» a uma «causa» («raiz»? «origem»?) de onde tudo nasce (a Guerra e o que se lhe segue, e esse
lugar real-simbólico da morte, de seu nome Salzburg), um «isolamento»
e uma «retirada», até à «decisão» de pôr meia vida em
escrita.
As «origens» são
importantes em toda a obra de Bernhard porque é o regresso a elas, sob a forma
de ficção, que melhor lhe permite compreender o mundo, igual na sua essência
ontem como hoje, já que, como lemos em A
Cave, é pela encenação literária das origens próprias que melhor se pode
realizar um dos pressupostos centrais desta Obra: a ideia de que «o
importante, afinal, é o conteúdo de verdade da mentira».
5.
Penso que a «ferida» não sarável presente em tudo o que Bernhard escreveu divide
os leitores porque, provavelmente, nem os adoradores nem os detractores o
entendem – quero dizer, não é possível chegar perto desta escrita a partir de
tais posições (pré-)determinadas. Isto, porque há na sua Obra um fundo de «a-moralidade» e de
indiferença que dificulta um acesso mais sereno a esta obra. A «genial
imperfeição» de que Bernhard tem consciência em relação a si próprio
(apercebi-me disso nas duas ou três ocasiões em que tive contacto pessoal com
ele) vai de par com um sentido de superioridade que lhe permite ser o lugar
irreferenciável da total in-diferença. Sendo o niilista perfeito que é, Bernhard
é também o impossível moralista. O
grande paradoxo desta escrita que parece estar sempre de dedo em riste é que
ela não se faz a partir de um «lugar de sentido» claro e unívoco,
muito menos com pretensões de validade universal. Bernhard é também o perfeito
relativista de uma ironia dissolvente que não poupa nada nem ninguém. A começar
por si próprio, ao ver-se como exímio autor de «fracassos de
escrita».
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