17 janeiro, 2017

AS MULHERES DA CHAUSHEVA (E EU)
ou: 
O DESEJO – «IMÓVEL E EM PARTE ALGUMA, INSTÁVEL E EM TODA A PARTE»

Elas olham-me do écran do computador, mostram-se deitadas, dobradas sobre si mesmas, deixam ver mãos, pernas, o aflorar dos seios, rostos enigmáticos, belos, todos eles, a partir de fotografias que são quadros pintados e encenados, como um filme de Sokurov, recusas frontais, misteriosas e delicadas, do verismo fotográfico e dos risos alarves das selfies e da publicidade. Desfilando em sequência aleatória no meu screensaver, elas olham-me. Na verdade, quase nunca me olham. Voltam-me as costas, olham de lado, descortinam horizontes que eu não sonho, baixam os olhos. 
No território do livro que é o meu, invadido pelas suas sombras, eu sou sombra maior, quase invisível, e elas, todas, o lugar do assombro. Mas eu estou sempre lá, entre elas, em fundo, reflexo que lhes devolve o olhar, ou que olha quem as olha. Como o pintor e o anão nas «Meninas» de Velásquez. Duplo voyeurismo, vários olhares cruzados. Mise-en-abyme de mim mesmo, abismado diante do mistério da beleza, de uma fascinante e quase insuportável leitura da alma feminina na atracção acetinada ou angulosa dos corpos.
E dou por mim a ler:
… o vestido entreaberto… a blusa a descer do ombro… o grito dos vermelhos… os lírios brancos de uma ausência… os envois a Magritte… os olhos baixos da melancolia… os corpos fortes, angulosos ou frágeis como as flores ao vento… os ambientes entre o decadente e o natural, o démodé e o requintado… os milénios nos olhares das mulheres… as sombras e o corte da fotografia… o toque sensual dos frutos no corpo nu…
O resto está no video que se segue:

15 janeiro, 2017

A MAGNIFICAÇÃO DO FEMININO

O que de mais belo vi e ouvi no meio da desconversa sobre romance e não-romance, foi a música que emanava das costas nuas de uma mulher sentada à minha frente. A linha do ombro, o colo esguio, o tom da pele, a pose distante num sorriso entre o tímido e o irresistível_____ eis a imagem imperfeita desta iluminação.
(Numa livraria de Lisboa, pelos finais de 2013).

Fotos: Katia Chausheva

14 janeiro, 2017

KARL KRAUS E OS ÚLTIMOS DIAS DA HUMANIDADE


















06 janeiro, 2017

«QUARTA-FEIRA DE CINZAS»

Volto ainda a Eliot, e àquele seu poema «a meio da vida» (como outro célebre, de Hölderlin*), a que chamou «Quarta-feira de cinzas». Não estamos em quarta-feira de cinzas, mas o facto é que neste tempo borbulhante domina o cinza. Daí que me tenham vindo, novamente, ecos do poema de Eliot, que tem muito a ver, na sua serena nostalgia e no seu olhar desencantado sobre o mundo, «o conhecido reino», com o momento que atravessamos. Ou pelo menos com o modo como eu vejo hoje este nosso momento (nosso? meu não é certamente!), tomando-o pelo que ele é, mas procurando sempre os caminhos que levem à sua mudança, ao fim desta interminável quarta-feira de cinzas em que vivemos mergulhados há anos, para retomar o júbilo possível e a festa – sem o espectáculo ruidoso do mundo. Esse «usual reign», esse mundo dos outros, distante e aqui tão perto, era também o outro lado do muro do «jardim abismado» de uma poeta tão próxima de Eliot como Emily Dickinson, e matéria do seu desencanto, que compensava perdendo-se no êxtase da grande e da pequena Natureza. Ou de Pessoa, ouvindo os ecos da «vida» do outro lado do «muro branco do quintal». Do outro lado desse outro lado está o «jardim abismático» de Llansol, onde também habito mais hoje, aquele que permite o pensamento (ou vice-versa, para os que fazem do pensamento a sua festa) e se inunda de luz, apesar de tudo e contra tudo…

Eliot revela-se assim, mais de meio século depois, uma voz do nosso próprio tempo, mais do que muitos dos que nesse rio se banham e nele se sentem em casa

               * Com suas pêras douradas inclina-se
                        E cheia de rosas bravas
                        A terra sobre o lago,
                        Vós, graciosos cisnes,
                        Ébrios de beijos
                        Mergulhais a cabeça
                        Na água sagrada, sóbria,

                       Ai de mim, aonde irei buscar,
                       Quando for Inverno, as flores, e onde
                       A luz do Sol,
                       E sombras da terra?
                       Mudos e frios erguem-se
                       Os muroas; na aragem
                       Rangem os cataventos.

«Ash Wednesday» na minha tradução e leitura:



04 janeiro, 2017

PRUFROCK E OUTRAS COINCIDÊNCIAS

No dia em que circulam notícias sobre a leitura de poemas de Eliot, a começar com «A canção de amor de J. Alfred Prufrock», que Jeremy Irons fez na BBC-Radio, estou eu também, por uma dessas coincidências que só os céus poderão explicar – se tiverem engenho e arte para isso –, a retraduzir, sem finalidade nem objectivo à vista, alguns poemas de T. S. Eliot. E a rememorar os anos de juventude em que este poeta foi a pedra angular da minha descoberta da poesia moderna. Eu lia os poemas de Eliot no comboio, na praia, onde calhava, e pasmava com a linguagem liberta dos padrões de romantismos requentados que enchiam o meu redil da poesia portuguesa. Estes saltavam as cercas, lançavam-se a correr pelos campos do quotidiano, não receavam ser vistos como não-poesia, e ao mesmo tempo mergulhavam, e a nós com eles, nos grandes temas do humano e do mundo. E eu, nos meus vinte anos, escrevia pastiches sobre os «Homens de palha» do Chiado lisboeta e as minhas próprias «Canções de amor…».
Hoje resolvi ler em voz alta e gravar «A canção de amor de J. Alfred Prufrock», e eis que a leitura, a do grande actor britânico e a (humildemente) minha, se põe a ecoar nas duas línguas. Aqui fica, em versão verbi-voco-visual...
A de Jeremy Irons pode ouvir-se aqui: http://www.bbc.co.uk/programmes/b086l220?platform=hootsuite
e a minha própria no video que se segue: