06 janeiro, 2017

«QUARTA-FEIRA DE CINZAS»

Volto ainda a Eliot, e àquele seu poema «a meio da vida» (como outro célebre, de Hölderlin*), a que chamou «Quarta-feira de cinzas». Não estamos em quarta-feira de cinzas, mas o facto é que neste tempo borbulhante domina o cinza. Daí que me tenham vindo, novamente, ecos do poema de Eliot, que tem muito a ver, na sua serena nostalgia e no seu olhar desencantado sobre o mundo, «o conhecido reino», com o momento que atravessamos. Ou pelo menos com o modo como eu vejo hoje este nosso momento (nosso? meu não é certamente!), tomando-o pelo que ele é, mas procurando sempre os caminhos que levem à sua mudança, ao fim desta interminável quarta-feira de cinzas em que vivemos mergulhados há anos, para retomar o júbilo possível e a festa – sem o espectáculo ruidoso do mundo. Esse «usual reign», esse mundo dos outros, distante e aqui tão perto, era também o outro lado do muro do «jardim abismado» de uma poeta tão próxima de Eliot como Emily Dickinson, e matéria do seu desencanto, que compensava perdendo-se no êxtase da grande e da pequena Natureza. Ou de Pessoa, ouvindo os ecos da «vida» do outro lado do «muro branco do quintal». Do outro lado desse outro lado está o «jardim abismático» de Llansol, onde também habito mais hoje, aquele que permite o pensamento (ou vice-versa, para os que fazem do pensamento a sua festa) e se inunda de luz, apesar de tudo e contra tudo…

Eliot revela-se assim, mais de meio século depois, uma voz do nosso próprio tempo, mais do que muitos dos que nesse rio se banham e nele se sentem em casa

               * Com suas pêras douradas inclina-se
                        E cheia de rosas bravas
                        A terra sobre o lago,
                        Vós, graciosos cisnes,
                        Ébrios de beijos
                        Mergulhais a cabeça
                        Na água sagrada, sóbria,

                       Ai de mim, aonde irei buscar,
                       Quando for Inverno, as flores, e onde
                       A luz do Sol,
                       E sombras da terra?
                       Mudos e frios erguem-se
                       Os muroas; na aragem
                       Rangem os cataventos.

«Ash Wednesday» na minha tradução e leitura:



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