25 agosto, 2013

«UM URSO TÍMIDO E DESAJEITADO...»
Walter Benjamin em Ibiza

 Jean Selz, a sua mulher e Benjamin em Ibiza (1932)

Neste momento em que retomei o trabalho em mais um volume (Da Linguagem e da Literatura) das Obras de Walter Benjamin, fui dar por acaso, numa busca recente do rasto mais concreto das duas passagens do filósofo por Ibiza, em 1932 e 1933, ao blog do poeta e crítico americano Tom Clark, onde este transcreve, em inglês, um dos testemunhos mais humanos e iluminantes sobre esta fase da vida de Benjamin. Trata-se do texto do escritor e crítico de arte francês Jean Selz, publicado pela primeira vez em 1954 na revista Les lettres nouvelles com o título «Walter Benjamin à Ibiza», e que eu conheço já desde os anos setenta em tradução alemã.
Voltei a ele agora porque um dos comentários a esse post dá, em duas frases (provavelmente sem consciência de tudo o que nelas está implícito), a situação paradoxal da presença – ou ausência – de Benjamin, da sua escrita e da sua vida no mundo de hoje. Transcrevo o original:
I've noticed, among the academics, that Benjamin's name serves almost as some sort of code – that he stands for something or other, but that nobody really appreciates his writings anymore, or deals with it in any substantial way. Which is a real shame, because I constantly go back to him and find astonishing insights and refreshment.
(http://tomclarkblog.blogspot.pt/2011/07/jean-selz-benjamin-in-ibiza.html)
O comentário toca em dois aspectos essenciais: o do secretismo, da valência metafórica do nome, de uma qualquer forma de mistério que ainda envolve a figura, apesar do muito que sobre ela se vem escrevendo há meio século; e o da eventual resistência, nos tempos que correm, a um tipo de escrita filosófica ou narrativa (frequentemente as duas coisas juntas) que criou os seus próprios parâmetros, que é surpreendentemente inesperada e refrescante, e indissociável de uma forma de pensamento vivo e intrinsecamente dialéctico (e – mistério dos mistérios – sem ser estritamente hegeliano nem materialista!) que não se concebe sem essa forma de escrita singular.
O próprio Jean Selz, no perfil que traça do homem e do intelectual que conheceu em Ibiza – e que refere  como «um urso tímido e desajeitado» –, destaca claramente estes dois aspectos. Sobre o primeiro escreve, a propósito da última e enigmática carta que recebe de Benjamin, já em Paris, em 1934 (onde este lhe fala, em jeito de despedida, da «funesta constelação que parece pairar sobre nós»): «E assim a nossa amizade se dissipou, encoberta por aquele véu de mistério em que Benjamin tanto gostava de envolver certos fenómenos do mundo intelectual e quotidiano.» E o segundo traço apontado por aquele leitor do blog do Americano, o de uma inextricável, e única, união entre uma forma de pensamento e um modo de escrita infixo, cujo resultado é a mais rigorosa flânerie do pensar, esse segundo traço fica bem patente no parágrafo final do testemunho de Jean Selz: «Walter Benjamin foi um dos homens mais inteligentes que encontrei na minha vida. Ninguém me deu a sentir de forma tão pregnante como pode existir uma profundidade de pensamento na qual, levados por uma rigorosa lógica da faculdade de julgar, os factos da história ou da ciência se situam num plano em que coabitam com o seu duplo poético, um plano em que o poético deixa de ser visto como uma forma de pensamento literário, para se revelar como uma expressão da realidade que ilumina as mais secretas conexões entre o homem e o mundo.»

Jean Selz, o barqueiro, Benjamin e Paul René Gaugin (neto do pintor)  em Ibiza

As duas fugas de Benjamin para Ibiza, primeiro num momento em que era já evidente o que viria no início de 1933 (estamos nos meses de Abril a Julho de 1932), depois já em plena vigência da ditadura hitleriana (um ano mais tarde, entre 9 de Abril e 25 de Setembro de 1933), correspondem a uma dessas fases da sua vida em que mais se evidenciam e se acumulam experiências extrafilosóficas singulares, e também os lados mais humanos da figura, que Jean Selz, melhor do que ninguém, capta no seu relato: dos casos amorosos (sem sucesso, com propostas de casamento a duas mulheres já casadas, uma já sua conhecida desde 1928, Olga Parem, a outra uma jovem pintora holandesa que aparece em Ibiza, de seu nome Annemarie Blaupot ten Cate) às experiências com haxixe, ópio e «crock» (cf. Sobre o Haxixe e Outras Drogas, Assírio & Alvim, 2010, na colecção «Alfinete»), da vivência, absolutamente nova, de um universo popular e ainda arcaico ao convívio e às amizades intelectuais mais ou menos duradouras (com Selz, Felix Noeggerath, antigo camarada de Liceu, ou o filósofo Ernst Bloch), da intenção do suicídio (e do estranho e até há pouco desconhecido testamento redigido em 27 de Julho de 1932) à salvação pela escrita do livro de recordações da infância em Berlim (Infância Berlinense: 1900, no segundo volume das «Obras» de Benjamin: Imagens de Pensamento, Assírio & Alvim, 2004)...
Tenciono seguir em breve, em Ibiza, o rasto desses tempos, que precedem os do exílio definitivo de Benjamin em Paris, e a sua morte, também ela envolvida em névoa, em Port-Bou, nos Pirenéus, na noite de 26 de Setembro de 1940. Nessa altura (se não antes) voltarei provavelmente a esta matéria.

12 agosto, 2013

JAIME ROCHA: MICRO-LIVROS 
NO GRANDE PALCO DO MUNDO

Sairam recentemente mais dois poemas – não dois livros de poesia! – de Jaime Rocha: um na Averno, nascido de uma visita ao Vulcão dos Capelinhos, no Faial (O Vulcão, o Dorso Branco, Maio de 2013); o outro numa pequena editora da Nazaré, a Volta d' Mar (Mulher Inclinada com Cântaro, de finais de 2012). E, ainda a cheirar a tinta dos prelos, a tradução francesa de um dos livros da sua «Tetralogia da Assombração», como lhe chamou o autor, editada cá  pela Relógio d'Água (Zone de chasse, na colecção Méditerranées, da editora Al Manar, Julho de 2013).

Dizer que se trata de poemas (longos) e não de livros de poesia não é novidade quando se pensa nos quatro livros da referida Tetralogia – Os Que Vão Morrer, Zona de Caça, Lacrimatória e Necrophilia, sobre os quais tive oportunidade de escrever mais longamente ao prefaciar o último –, uma vez que também eles, tendo outro fôlego e outra estrutura, são poemas únicos, um poema contínuo.

No caso de O Vulcão..., estamos uma vez mais perante um «poema dramático» de um autor que, mesmo quando escreve poesia, nunca se perde na contemplação de si, distanciando antes o enunciado por meio do fluxo narrativo e das «encenação» de situações elementares no teatro do mundo, dos sexos, das origens perdidas e sempre recuperadas. Aqui, o vulcão suscita, qual voz portentosa vinda da caixa do ponto das suas entranhas invisíveis, as falas de homem e mulher. Tal como acontece na grande Tetralogia, onde esta tensão dramática também está presente: neste último poema, no diálogo entre o corpo da Mulher e o olhar do Homem, da Mulher que dá e do Homem que busca, ainda e sempre no grande cenário antropológico, filogenético, nem subjectivo nem social, da poesia de Jaime Rocha. E tudo, servido nas falas dos actantes («diz ela», «diz ele») por uma imagética lírica, vai dar ao lugar mítico de uma dor antiga – «até que o fogo nascesse de novo no fundo do oceano». Como sempre nesta poesia, o pretexto (pré-texto) é identificaável e até banal, mas o poema fala sempre e só das «últimas coisas» – afinal, sempre as primeiras, originárias e originantes: a dor e a morte, o sexo e o combate, a perda e a redenção.

Em Mulher Inclinada..., o poema, mesmo libertando-se do enquadramento mitopoético da Tertralogia, não se fica também pela superfície dos factos da experiência, pelo lado mais fácil do social – vai à raiz. E as figuras, mais próximas de nós, voltam no entanto a ser Mulher e Homem, a Mulher e o Homem, e falam como quem começou agora a balbuciar, de coisas de quem vem de uma origem e a partir dela fala. E os seus gestos são os dessas origens, gestos do corpo e gestos da alma, o choro e a postura de uma memória da perda perante a indiferença do mar, e o cão a querer morder as ondas... Os poemas, o poema, não falam de experiências – a não ser no sentido originãrio da palavra, o da travessia de risco de quem olha e escreve –, descrevem e assimilam um destino. E movimentos e figuras que se repetem ad aeternum: Homem e Mulher, e o mar e o Sol e o cão e a morte. E há aí prodígios como já os não há, coisas portentosas que vêm com a morte e prenunciam o fim do mundo. E afinal é apenas a «dor antiga» que chega de novo, a morte que faz valer os seus direitos e pede rituais (também já não há rituais, só festas, «animação»). Mas o ritual apazigua, e o poema pode fechar-se. O poema que, em Jaime Rocha, já o disse, é só um, cíclico, narrativo e dramático, recorrendo «a uma temporalidade sem tempo, mítica, arcaica ou arquetípica», numa encenação do «eterno retorno do mesmo no fluxo do tempo, a partir do ângulo antropológico do agir de figuras arquetípicas» (para citar do meu anterior prefácio), literalmente lançadas para o grande palco do mundo sob o olhar e a memória imemorial de um poeta que não diz «eu». E hoje há poucos capazes de silenciar o «eu».



08 agosto, 2013

OS GESTOS DA MÃO INTELIGENTE
DE ANA HATHERLY

Em 2011 vi, no Museo Villa dei Cedri, em Bellinzona, perto de Lugano, uma exposição intitulada Parole e figure – Con un omaggio a Michel Butor. Nessa exposição, organizada por Matteo Bianchi, ex-curador desse museu e hoje editor da Pagine d'arte, na Suíça, havia uma sala com obras de Ana Hatherly. Dois anos mais tarde, o encontro Butor-Hatherly repete-se, agora sob a forma de mais um livro da colecção «Ciel vague», daquela editora, que também já conta no seu precioso catálogo com outra autora portuguesa, Maria Gabriela Llansol, que inaugurou a colecção.


L'invention de l'écriture – assim se intitula, fazendo jus ao espírito de toda a obra da autora, o volume de desenhos e poemas, de desenhos-poema e poemas-desenho de Ana Hatherly – abre agora precisamente com uma homenagem de Michel Butor às «linhas de escrita» da poeta e artista portuguesa. O livro foi apresentado em Junho na Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, no âmbito de uma grande exposição de desenhos da colecção da Fundação Luso-Americana, e passou despercebido, como tanta coisa especial e digna de atenção que acontece, mas não tem visibilidade nem repercussão, na triste e problemática «vida cultural» portuguesa de hoje (L'invention de l'écriture pode ser encontrado em Lisboa na Livraria Férin).



Esta «Invenção da escrita» reproduz os «textos visuais» que acompanhavam o ensaio «A reinvenção da leitura», publicado em 1975 pela Editorial Futura. A crítica portuguesa dos anos setenta parecia não estar ainda preparada para compreender caminhos como os que seguia Ana Hatherly. Encontro dentro do meu exemplar desse livro a crítica de Nelson de Matos a Anagramático, um outro livro de Ana Hatherly, de 1970, publicada no Diário de Lisboa de 11 de Novembro desse ano. Um desvario de incompreensões, um despautério de opiniões, um desaforo de acusações. Não admira que a referida crítica viesse a dar, como deu, numa acesa polémica com a autora. Cito o crítico: «Trata-se na verdade de um (...) exibicionismo, de um atirar poeira aos olhos dos desprevenidos, factores que são, aliás, bem legíveis no processo de elaboração dos seus livros e em toda a actividade teórica desenvolvida.» Ou: «Um conjunto de exercícios formais próximos do que se designa de letrismo ou grafismo, antecedidos de três textos teóricos visivelmente petulantes. (...) O letrismo pretendeu-se poema. Por aqui ele se condenou a si próprio. Um poema que não significa nada não é um poema, porque não é linguagem.» E assim por diante.


E no entanto as experiências de Ana Hatherly, e outros, de modo nenhum são novas em 1970. Desde 1958 que a autora vinha, com alguns outros poetas experimentais portugueses, e não só – Salette Tavares, E. M. de Melo e Castro, Alberto Pimenta, António Aragão, etc. –, subvertendo os cânones mais conservadores das poéticas e minando inteligentemente os alicerces esburacados de muita poesia neo-realista e neo-romântica. Uma dessas minas, das mais importantes em toda a poesia experimental e concreta nacional e internacional, é precisamente a que tem a ver com os novos modos de significar, com aquilo a que a própria Ana Hatherly, já em 1966, chamava «a maldade semântica», comentando: «As palavras não servem para descobrirmos o que não sabemos, visto que as palavras só dizem respeito a si próprias. A contemplação tem sido sempre uma espécie de gelatina. A não-efusão podia muito bem agora tornar-se uma espécie de geleia do real. (...) A poesia tem sido uma arte verdadeiramente animal, porque tem sido uma fiel expressão do sentimento...»
Por esses anos, entre finais de 50 e 70, a poesia de Ana Hatherly torna-se verdadeiramente inteligente. Inteligente é talvez o adjectivo que melhor espelha e mais justamente se aplica à sua poesia – e até à sua pessoa, alguém com quem privei de perto durante anos, e que punha grande rigor e simplicidade em tudo o que fazia. Ora, a crítica mais convencional e convencionada nunca entendeu o sentido e o alcance desta retirada inteligente da prisão semântica, para que a palavra respirasse livremente nos seus espaços próprios, os da significância, mas não necessariamente do significado. Foi uma escolha, aliás não limitada à poesia dita experimental e concreta desses anos (à sua maneira, também a chamada «Poesia 61» deixou para trás o peso de uma semântica das evidências ou das convenções para se aventurar pelos territórios mais inóspitos, mas mais inovadores, de novas formas de sintaxe e de visualização do verso). Mas, que significa, afinal, essa inteligência particular da poesia de Ana Hatherly? O Torrinha dá as raízes latinas e atribui à palavra, entre outras acepções: «capacidade de discernir», de «escolher (mentalmente) entre», e ainda «percepção (pelos sentidos)». E por que é a mão de Ana Hatherly inteligente? Que tipo de inteligência é o seu? Não é certamente apenas o de uma lógica mental fria e abstracta, é antes o de uma metalógica que trabalha nos espaços entre os sentidos e as formas sensíveis (visuais) das palavras. E também, a acompanhar uma grande capacidade artesanal e de invenção, o de um olhar subtil sobre a «geleia do real» e, do outro lado, o universo das palavras feito de tramas e traços, de humor e finesse entre o perspicaz e o quase absurdo (por exemplo nas Tisanas, mas também em alguns poemas-ensaio). Ou então é a pura imagem-em-situação na teia aparentemente discursiva, mas toda ela visual, do poema – no poema visual, uma situação simultânea no espaço e no tempo. O realizador do filme Ana Hatherly. A Mão Inteligente (2002), Luís Alves de Matos, di-lo numa frase com que apresentou o filme no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian: «O fazedor de imagens reinventa uma forma de liberdade elevando ao grau de memória os objectos que cria».

 
(Pode ver-se o trailer deste filme aqui: http://vimeo.com/21200605)
Essa memória é, em Ana Hatherly, a de um regresso a formas originárias, arcaicas, de relação entre a escrita e a imagem, bem patentes neste livro da editora Pagine d'arte, onde lemos, num dos poemas traduzidos por Catherine Dumas (que já havia traduzido antes uma selecção de textos de Ana Hatherly com o título Théâtres de la parole, Ed. Vallongues, 2002): «a palavra-escrita é um labor arcaico...» Ana Hatherly deixou clara, numa linguagem sem ambiguidades nem retóricas ocas, mas subtil e inteligente, como é sempre a sua, essa relação e a deriva própria de toda a sua Obra, no catálogo da grande exposição Obra Visual 1960-1990 (no C.A.M. da Fundação Gulbenkian, em 1992), quando escreve aí: «O meu trabalho começa com a escrita – sou um escritor que deriva para as artes visuais através da experimentação com a palavra». E logo a seguir: «O meu trabalho também começa com a pintura – sou um pintor que deriva para a literatura através de um processo de consciencialização dos laços que unem todas as artes.»

Da exposição Hand Made, 2000

E assim se explica toda uma Obra e a sua retirada para fora do campo armadilhado da «maldade semântica», que a crítica não entendeu. É que, diz Ana Hatherly num fragmento também incluído em L'invention de l'écriture, «eu escrevo para dizer o que não pode ser dito.» Ou, por outras palavras, num poema bem mais tardio, mas que reitera coerentemente os seus princípios orientadores de sempre (o poema «A mão que escreve», do livro A Idade da Escrita, 1998):
Por entre incríveis e encantados freios
a mão que escreve
ilumina
da simples palavra
o trabalho obscuro em seu dentro.



04 agosto, 2013

... É REDONDA A CRISE TERRESTRE...

... e ninguém lhe dá solução. Desisti de a pensar. Voltei-me de novo para a poesia. Sigo-lhe o rasto, pouco a penso, mastigo-a e saboreio-a, tento destrinçar os ingredientes, não a olho de cima. Arrisco o diletantismo.
Última investida: o livro – belo livro, como todos aqueles que há muitos anos nos chegam da oficina de Cruz Santos, no Porto – de Francisco Duarte Mangas A Fome Apátrida das Aves (agora com a chancel Modo de Ler), que reune vários outros livros ou ciclos que em parte conhecia e agora fui calcorreando como quem se deixa levar por campos e atalhos.
A conhecida vinheta da colecção «As Mãos e os Frutos»


Na contracapa encontro um breve texto meu, já não sei de quando nem de onde, que o autor quis trazer hoje de novo à luz. Aí se lê: 
«É talvez o único caso de uma poesia ecológica (ecopoesia) em Portugal, com paralelos talvez apenas na de Cinatti sobre Timor. (...) Em Francisco Duarte Mangas é também de uma nova forma de poesia de intervenção que se trata, algo nostálgica, por vezes, em relação ao processo de degeneração ou domesticação da natureza.»

Francisco Duarte Mangas é, de facto, um caso sem paralelo na poesia portuguesa. Não tanto por seguir por trilhos «bucólicos» (como escreve Manuel Gusmão no prefácio), antes por assumir e representar um paradigma da terra frontalmente oposto ao dominante, do «realismo urbano total», desencantado, umas vezes irado, outras blasé. Aqui, tudo é de uma simplicidade desarmante, mas nunca simplista: o rigor lapidado e despojado da linguagem não o consente. Na maior parte dos (pequenos) livros neste livro reunidos, as coisas («a memória artesanal das / coisas») passam-se simplesmente assim: o verso segue a memória original da versura (a designação latina para o sulco da charrua e suas voltas, de onde vem o nome do verso) – sulca a memória da terra com o arado de palavras, lavra, espalha a semente e colhe os frutos dessa terra, traça na brévia (palavra-chave aonde tudo vai dar neste universo) os sinais das rugas do tempo. E nasce um breviário dos ritos, das estações, de palavras que recobrem árvores, frutos (a obsessão da maçã bravo de esmolfe), paisagens, a «cantilena dos pássaros». As palavras são, diz o poeta, como «animais de sangue frio», mas doce, e neste livro dócil, elas vestem a pele do mundo com o que à mão vem, aos olhos se dá, à memória acorre. E tudo cabe nessa breve palavra: brévia. Brévia é a casa rara e comum onde habita o tempo da experiência viva do mundo vivo. E enquanto a palavra do poema vai habitando esse espaço-tempo, a escrita indaga e adia a morte.
A dada altura, a partir do segundo livro (Transumância), a brévia sobe à montanha e a sua linguagem acompanha, breve, rápida, lacónica, lúdica, os gestos do pastor, do cão, do rebanho. E é tudo, e é muito, que nisto não há metafísica nenhuma, nada de retórica nem de artifícios prosódicos. Tão só a melancolia, o frio das alturas a fazer retrair o verso, e o saber que aí a palavra se quer lavada e livre de escórias. A palavra quer-se protegida, como lobo (p. 99), e repetida, sem medo de redundâncias que não acontecem, e insistente. Palavra é aqui corpo, coisa sólida que repete gestos eternos.

Só relativamente tarde, nos últimos livros/ciclos, o verso se espraia, se estende, se desdobra. O rio engrossa, o discurso torna-se mais... discursivo. Mas o mundo, mesmo se visto de universos exteriores e imaginários (com Copérnico, Aristóteles, Ptolomeu, Zenão), é ainda e sempre o da brévia, e o corpo da palavra continua a ser perceptível na corrente: a palavra «pedra» é densa, a palavra «rio» é fria, a palavra «égua» relincha, a palavra «cavalo» empina-se, na palavra «ciclista» ouve-se o chiar das rodas, da palavra «dióspiro» sobe fogo divino. Disto vive a poesia de um «camponês com (pa)lavra» (p. 234), que nos seus versos traz as árvores a pastar na escrita, por não poder trepar aos seus ramos mais altos – o que de pouco lhe serviria, já que esse não é o território do reino da brévia, impensável sem o tempo que a palavra leva a percorrer, no vai-vem da versura, o campo arável do poema.