... É REDONDA A CRISE TERRESTRE...
... e ninguém lhe dá solução. Desisti de a pensar. Voltei-me de novo para a poesia. Sigo-lhe o rasto, pouco a penso, mastigo-a e saboreio-a, tento destrinçar os ingredientes, não a olho de cima. Arrisco o diletantismo.
Última investida: o livro – belo livro, como todos aqueles que há muitos anos nos chegam da oficina de Cruz Santos, no Porto – de Francisco Duarte Mangas A Fome Apátrida das Aves (agora com a chancel Modo de Ler), que reune vários outros livros ou ciclos que em parte conhecia e agora fui calcorreando como quem se deixa levar por campos e atalhos.
A conhecida vinheta da colecção «As Mãos e os Frutos»
Na contracapa encontro um breve texto meu, já não sei de quando nem de onde, que o autor quis trazer hoje de novo à luz. Aí se lê:
«É talvez o único caso de uma poesia ecológica (ecopoesia) em Portugal, com paralelos talvez apenas na de Cinatti sobre Timor. (...) Em Francisco Duarte Mangas é também de uma nova forma de poesia de intervenção que se trata, algo nostálgica, por vezes, em relação ao processo de degeneração ou domesticação da natureza.»

A dada altura, a partir do segundo livro (Transumância), a brévia sobe à montanha e a sua linguagem acompanha, breve, rápida, lacónica, lúdica, os gestos do pastor, do cão, do rebanho. E é tudo, e é muito, que nisto não há metafísica nenhuma, nada de retórica nem de artifícios prosódicos. Tão só a melancolia, o frio das alturas a fazer retrair o verso, e o saber que aí a palavra se quer lavada e livre de escórias. A palavra quer-se protegida, como lobo (p. 99), e repetida, sem medo de redundâncias que não acontecem, e insistente. Palavra é aqui corpo, coisa sólida que repete gestos eternos.
Só relativamente tarde, nos últimos livros/ciclos, o verso se espraia, se estende, se desdobra. O rio engrossa, o discurso torna-se mais... discursivo. Mas o mundo, mesmo se visto de universos exteriores e imaginários (com Copérnico, Aristóteles, Ptolomeu, Zenão), é ainda e sempre o da brévia, e o corpo da palavra continua a ser perceptível na corrente: a palavra «pedra» é densa, a palavra «rio» é fria, a palavra «égua» relincha, a palavra «cavalo» empina-se, na palavra «ciclista» ouve-se o chiar das rodas, da palavra «dióspiro» sobe fogo divino. Disto vive a poesia de um «camponês com (pa)lavra» (p. 234), que nos seus versos traz as árvores a pastar na escrita, por não poder trepar aos seus ramos mais altos – o que de pouco lhe serviria, já que esse não é o território do reino da brévia, impensável sem o tempo que a palavra leva a percorrer, no vai-vem da versura, o campo arável do poema.
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