04 agosto, 2013

... É REDONDA A CRISE TERRESTRE...

... e ninguém lhe dá solução. Desisti de a pensar. Voltei-me de novo para a poesia. Sigo-lhe o rasto, pouco a penso, mastigo-a e saboreio-a, tento destrinçar os ingredientes, não a olho de cima. Arrisco o diletantismo.
Última investida: o livro – belo livro, como todos aqueles que há muitos anos nos chegam da oficina de Cruz Santos, no Porto – de Francisco Duarte Mangas A Fome Apátrida das Aves (agora com a chancel Modo de Ler), que reune vários outros livros ou ciclos que em parte conhecia e agora fui calcorreando como quem se deixa levar por campos e atalhos.
A conhecida vinheta da colecção «As Mãos e os Frutos»


Na contracapa encontro um breve texto meu, já não sei de quando nem de onde, que o autor quis trazer hoje de novo à luz. Aí se lê: 
«É talvez o único caso de uma poesia ecológica (ecopoesia) em Portugal, com paralelos talvez apenas na de Cinatti sobre Timor. (...) Em Francisco Duarte Mangas é também de uma nova forma de poesia de intervenção que se trata, algo nostálgica, por vezes, em relação ao processo de degeneração ou domesticação da natureza.»

Francisco Duarte Mangas é, de facto, um caso sem paralelo na poesia portuguesa. Não tanto por seguir por trilhos «bucólicos» (como escreve Manuel Gusmão no prefácio), antes por assumir e representar um paradigma da terra frontalmente oposto ao dominante, do «realismo urbano total», desencantado, umas vezes irado, outras blasé. Aqui, tudo é de uma simplicidade desarmante, mas nunca simplista: o rigor lapidado e despojado da linguagem não o consente. Na maior parte dos (pequenos) livros neste livro reunidos, as coisas («a memória artesanal das / coisas») passam-se simplesmente assim: o verso segue a memória original da versura (a designação latina para o sulco da charrua e suas voltas, de onde vem o nome do verso) – sulca a memória da terra com o arado de palavras, lavra, espalha a semente e colhe os frutos dessa terra, traça na brévia (palavra-chave aonde tudo vai dar neste universo) os sinais das rugas do tempo. E nasce um breviário dos ritos, das estações, de palavras que recobrem árvores, frutos (a obsessão da maçã bravo de esmolfe), paisagens, a «cantilena dos pássaros». As palavras são, diz o poeta, como «animais de sangue frio», mas doce, e neste livro dócil, elas vestem a pele do mundo com o que à mão vem, aos olhos se dá, à memória acorre. E tudo cabe nessa breve palavra: brévia. Brévia é a casa rara e comum onde habita o tempo da experiência viva do mundo vivo. E enquanto a palavra do poema vai habitando esse espaço-tempo, a escrita indaga e adia a morte.
A dada altura, a partir do segundo livro (Transumância), a brévia sobe à montanha e a sua linguagem acompanha, breve, rápida, lacónica, lúdica, os gestos do pastor, do cão, do rebanho. E é tudo, e é muito, que nisto não há metafísica nenhuma, nada de retórica nem de artifícios prosódicos. Tão só a melancolia, o frio das alturas a fazer retrair o verso, e o saber que aí a palavra se quer lavada e livre de escórias. A palavra quer-se protegida, como lobo (p. 99), e repetida, sem medo de redundâncias que não acontecem, e insistente. Palavra é aqui corpo, coisa sólida que repete gestos eternos.

Só relativamente tarde, nos últimos livros/ciclos, o verso se espraia, se estende, se desdobra. O rio engrossa, o discurso torna-se mais... discursivo. Mas o mundo, mesmo se visto de universos exteriores e imaginários (com Copérnico, Aristóteles, Ptolomeu, Zenão), é ainda e sempre o da brévia, e o corpo da palavra continua a ser perceptível na corrente: a palavra «pedra» é densa, a palavra «rio» é fria, a palavra «égua» relincha, a palavra «cavalo» empina-se, na palavra «ciclista» ouve-se o chiar das rodas, da palavra «dióspiro» sobe fogo divino. Disto vive a poesia de um «camponês com (pa)lavra» (p. 234), que nos seus versos traz as árvores a pastar na escrita, por não poder trepar aos seus ramos mais altos – o que de pouco lhe serviria, já que esse não é o território do reino da brévia, impensável sem o tempo que a palavra leva a percorrer, no vai-vem da versura, o campo arável do poema.

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