27 janeiro, 2015

DEPOIS DE AUSCHWITZ

No dia em que se evoca a grande libertação do pesadelo – mas seria mesmo uma libertação? –, um pesadelo que se fragmentou e desmultiplicou e continua por aí no mundo de hoje, deixo aqui simplesmente um poema do judeu austríaco, emigrado para Inglaterra, Erich Fried, escrito trinta anos depois de Aliados e Russos terem passado os portões do reino da morte, sem acreditarem no que seus olhos viam. O poema é uma resposta à célebre afirmação de Adorno de que não é possível poesia depois de Auschwitz. Ela, de facto, é possível, foi possível – mas durante muito tempo apenas como interrogação e estupefacção.

Erich Fried
Perguntas sobre a poesia depois de Auschwitz [1977]

Se ela subiu como pássaro castanho
do fumo dos fornos crematórios
para depois descansar numa das bétulas
de Birkenau

Se no seu voo se aproximou
atraída pelos gritos das raparigas
e assistiu à violação
para depois

cantar ao pó das cidades em ruínas
a sua canção do amor sereno
e aos esfomeados
a balada do trigo a sazonar

Se cresceu à sombra do dinheiro
e lhe emprestou a sua voz
porque ele já tinha crescido de mais
para ainda poder tilintar

Se no seu voo percorreu o mundo
e foi buscar o seu sentido do belo
à variedade de cores
dos corpos destroçados

ao fogo claro das cabanas de aldeia
ou aos reflexos
da alternância da luz do dia
em olhos vítreos

Se numa árvore quimicamente desfolhada
construiu finalmente o seu ninho com cabelos que se salvaram
fibras de papel restos de vestuário
e penas ensanguentadas

e agora espera pelo acasalamento
pelo chocar dos ovos
pela saída dos seus
filhos uma vez mais inocentes

isso só o sabem os poetas
os eternos
arautos da protecção às aves
no mundo que em breve voltará a ser perfeito

(Trad. de João Barrento, in: Cem Poemas sem Pátria. Lisboa. Publicações D. Quixote, 1979)