31 julho, 2013

OS PIRILAMPOS DA EDIÇÃO

Elas sempre existiram, as pequenas editoras contra a corrente, a que em tempos se chamava «de vão de escada». Mas elas parecem ter regressado em força um pouco por todo o lado, para contornar crises, resistir aos grandes grupos e afirmar a mais valia de pensamento e poesia. No meu último livro – O Mundo Está Cheio de Deuses. Crise e cítica do contemporâneo (Assírio & Alvim, 2011) – defendo a tese de que há inúmeros sintomas de uma generalizada tentativa de «organizar o pessimismo» (a expressão é de Walter Benjamin), e de que uma das formas actualmente mais eficazes de resistência à formatação das consciências é a pluralização dos focos de inovação, com uma clara vontade de resistir à industrialização da cultura e à mercantilização da literatura, para trazer à luz o novo e o diferente – que pode também incluir o «clássico»!
Exemplo paradigmático, e ele próprio quase já clássico entre nós, é o da Averno de Manuel de Freitas e Inês Dias, com as suas muitas pequenas edições (de que sairam recentemente de uma assentada mais três: As Coisas Naturais, de Ernesto Sampaio, As Grandes Ondas, de António Barahona e Aventuras de um Crâneo e Outros Textos, de Mário Botas), e também com a revista Telhados de Vidro, que tem marcado toda uma época com um posicionamento radical, e de que saiu agora o nº 18, com uma surpreendente antologia de poesia em 2013, em que convivem, na diferença, nomes firmados (Hélia Correia, Fátima Maldonado, A. M. Pires Cabral ou Fernando Guerreiro) com outros ainda em busca de afirmação - ou não (Jorge Roque ou Marta Chaves). Simultaneamente chega-nos o terceiro número da nova revista da Averno, a Cão Celeste, outro projecto assinalável, não apenas pelos conteúdos, mas também, e particularmente, pelo grafismo inconfundível da responsabilidade de Luís Henriques, mas com colaboração visual muito diversificada.

Mas hoje gostaria de lembrar – ou dar a conhecer – uma dessas pequenas «editoras de vão de escada», feita à sombra das muralhas do Castelo de S. Jorge, na Rua do Chão da Feira, de onde lhe vem o nome (Edições Chão da Feira), mas em ponte aérea e afectiva com Belo Horizonte, no Brasil. A Chão da Feira vem dando uma séria atenção a nomes importantes, conhecidos e inesperados, do pensamento e da literatura, com edições de concepção gráfica arrojada e inventiva, que tanto pode passar por uma capa neutra, sem a informação habitual, e como tal desde logo objecto enigmático e apelativo (caso d' A Carta de Lord Chandos, de Hofmannsthal), como pode fazer nascer uma original capa, em colaboração com Luís Henriques, da Oficina do Cego (no livro de poemas de Júlia Hansen).
A grande dinamizadora do projecto, Maria Carolina Fenati, vinda de Belo Horizonte para adoptar o bairro do Castelo como sua casa, conseguiu em pouco tempo (acompanhada por outros e outras entusiastas que «seguram as pontas» do outro lado do mar) pôr de pé um interessantíssimo programa, começando com a série dos «Cadernos de Leitura», acessíveis online (em: www.chaodafeira.com), que já vai no número 18. A série abriu com «O Sr. Henri, outra vez», da própria Carolina Fenati, a partir de Gonçalo M. Tavares, e – até ontem – o último número era de Witold Gombrowicz («Contra os poetas»). De permeio, e documentando um caso único de parceria luso-brasileira-euro-mundial, textos de Silvina R. Lopes e Júlia Studart, de Agamben e Jean-Luc Nancy, de Henrique Estrada Rodrigues (sobre Oswald de Andrade) e Catarina Barros (ex-livreira da Trama), de Gustavo Rubim e W. G. Sebald (com texto meu), de Pasolini e Ricardo Piglia, de Michaux e Clayton Guimarães. E – nem de propósito, a propósito do tema deste post – acabo de receber, neste preciso momento em que escrevo, o número 18 dos «Cadernos», uma entrevista ao «editor independente» Anibal Cristobo, argentino que arriscou criar em Espanha mais uma editora de poesia, a Kriller 71 ediciones, e que afirma que «arriscado é acreditar que podemos viver sem poesia»!


A Chão da Feira editou ainda, em papel, a revista Gratuita (o título inspirou-se numa figura de Os Cantores de Leitura, de Maria Gabriela Llansol, que a certa altura diz: «'A leitura viva é o sinal dos tempos vivos'. Grátis. Sem remuneração. De graça.»), que inclui alguns dos «Cadernos de Leitura» e se apresenta, no seu primeiro, e até agora único, número (de 2012) como um projecto igualmente singular, como um meio de libertar a palavra da prestação de contas, concebendo «a literatura como dádiva improvável que se inscreve na incessante reinvenção do comum» – a prova disso são esta Gratuita e os «Cadernos de Leitura», a que se pode aceder livremente.

Finalmente, os livros. Até agora, a Chão da Feira fez três livros:

1. Alforria Blues ou Poemas do Destino do Mar, da brasileira (radicada também em Lisboa) Júlia de Carvalho Hansen.
Quando o livro saiu, escrevi num e-mail para a autora as minhas impressões, anotando, entre outras, que este livro vale pelo modo aparentemente simples como consegue «orquestrar fragmentos do quotidiano do corpo que se juntam no poema sem cuidar muito de prosódias. Mas há um fio da memória – que pode ser de hoje, de agora – que vai sustentando as imagens do vivido. E o narrar sem propriamente contar histórias, porque os fragmentos da narrativa mais ou menos contínua (à maneira de Ruy Belo) são imagens que se tocam, se distanciam, se interrogam umas às outras. E depois, quando o poema corre sem destino pelos territórios dos cinco sentidos (como no longo Poema IV), Ruy Belo parece andar de novo por perto. E no entanto há uma originalidade só tua no modo de dar palavras às imagens, ou ao pensamento, ou à experiência.»

2. Literatura, Defesa do Atrito, de Silvina Rodrigues Lopes (anteriormente publicado em Portugal pelas Edições Vendaval). Trata-se de um conjunto de ensaios sobre a teoria e o ensino da literatuira, que acaba de ser objecto de uma fundamentada recensão de Júlia Studart no jornal O Globo, do Rio de Janeiro.






3. Hugo von Hofmannsthal, A Carta de Lord Chandos (edição bilingue, tradução e posfácio meus), um clássico da «crítica da linguagem» nunca editado no Brasil (mas com duas traduções portuguesas). Também esta edição foi, a seu tempo, objecto de desenvolvida crítica n' O Globo, por Kelvin Falcão Klein.
Deixo aqui ainda o início do meu posfácio a esta edição de um célebre documento da crise e dos limites da linguagem antes de Wittgenstein (esse meu texto intitula-se precisamente «A aura do silêncio - De Chandos a Wittgenstein»):






O silêncio como aura...

Walter Benjamin, Zentralpark



O homem mais sábio da Terra ficou calado durante vinte e seis anos.

Passado esse tempo, a sua primeira palavra foi: silentium!

Mynona [i. e. Salomo Friedländer],

na revista Der Sturm, Berlim, nº 9/1910





                   O destinatário fictício desta carta fictícia é uma personagem histórica, Sir Francis Bacon [1561-1626], filósofo e homem de letras do Renascimento inglês que, no Novum Organum [1620], desenvolve uma teoria da linguagem de fundo cepticista. Para Bacon, a linguagem é um dos idola fori [ídolos do mercado, ilusões empíricas cujo valor epistemológico é pura convenção], e ele, tal como o Chandos de Hofmannsthal, duvida das suas potencialidades enquanto instrumento de comunicação e de expressão de uma “verdade” íntima das coisas: as palavras representam para Bacon, tal como a moeda corrente, o dinheiro na esfera do comércio, não o valor objectivo e de uso efectivo das coisas, mas o seu valor convencional, e por isso destituído de autenticidade. Cruzam-se aqui tradições e problemas da filosofia da linguagem que remetem, em última análise, quer para o Crátilo de Platão e para toda a discussão desde então desenvolvida em torno da relação de necessidade ou de convenção entre as palavras e as coisas; quer também para a grande questão que atravessa a história das ideias, da literatura e da arte entre Nietzsche e as primeiras décadas do século XX: a da necessidade de uma crítica da cultura perante a constatação de uma crise civilizacional, de valores e de linguagem que atravessa a fase tardia da cultura burguesa, do fim do século XIX à Primeira Guerra Mundial.



Silêncio e crise

                  Nesta tradição, que o Fim-de-século refina e extrema em termos de sensibilidade crítica, o silêncio é a “aura” da obra, aquilo que, paradoxalmente, lhe conferirá pleno estatuto de realidade estética. Tal tradição – que poeticamente remonta ao Romantismo e filosoficamente é de origem intuicionista platónica – toma nesta altura consciência de si como estado de crise aguda que, por ser um estado crítico, não pode ser outra coisa senão uma forma de consciência desperta, mas também transitória, que daria frutos visíveis durante décadas. Em pleno Romantismo alemão, Friedrich Schlegel definira já o cepticismo, a atitude em relação à linguagem que fundamenta o silêncio aurático dos modernos [ou já de Hölderlin], como um paradoxo aparentemente insolúvel, ou explosivo: “Enquanto estado transitório, o cepticismo é uma insurreição lógica; como sistema, é anarquia. O método céptico seria então qualquer coisa como... um governo insurrecional” [Fragmento 97 da revista Athenäum, 1798].

                  No Hofmannsthal da chamada “Carta de Lord Chandos” – publicada em duas partes no jornal de Berlim Der Tag, em 18 e 19 de Outubro de 1902, com o título “Uma carta” – essa crise manifesta-se, num primeiro nível, como crise existencial, de identidade: a linguagem é a grande barreira para a expressão subjectiva do real, e a saída encontrada é a de uma “mística das coisas” [sem misticismo, dirá Hofmannsthal], que encontramos também em Rilke ou Musil. Num outro contemporâneo, menos conhecido, mas um antecessor determinante da “Carta” de Hofmannsthal – o filósofo Fritz Mauthner e o seu livro Contributos para uma Crítica da Linguagem, publicado em três volumes entre 1901 e 1902 –, a crise é assumida como crise de cultura: a linguagem seria o espelho decadente de toda uma civilização doente, e a saída só pode ser, uma vez mais, a do silêncio, de uma [contraditória] renúncia à linguagem, fundamentada numa crítica radical desta como instrumento epistemológico. Na ponta desta linha, para o Wittgenstein do Tratado Lógico-Filosófico [de 1918], a crise da linguagem é a crise da própria filosofia: aqui, o que está do outro lado da linguagem, e virá a revelar-se, na literatura, como o seu excesso ou o seu défice, é o “mundo”; e da constatação dos limites da linguagem resulta a fuga para um misticismo da lógica ou da formalização do real na linguagem. A saída antimetafísica do primeiro Wittgenstein faz então corresponder a estrutura do mundo à estrutura lógica da proposição filosófica, aceitando, num primeiro momento, os limites da linguagem e o “indizível” [que é da ordem do místico]. Mas, dirá Wittgenstein, existe ainda “o lado literário do Tratado” – tudo o que não está lá, e que é o mais importante.

                  Se, em termos de uma teoria ou filosofia da linguagem, e das poéticas daí decorrentes, a constelação epocal da era finissecular e moderna se pode enquadrar nestas balizas, as coisas tornam-se substancialmente mais complexas se levarmos em conta – e temos de o fazer para compreender em todas as suas raízes e implicações um texto denso e paradigmático como a “Carta de Lord Chandos” – toda a panóplia de factores ideológicos, psicológicos e históricos que as condicionam. E a “Carta” de Hofmannsthal contém os dois vectores maiores do problema: é um documento poetológico representativo que se vê necessariamente envolvido numa trama ideológica cerrada de que é também paradigma maior.


02 julho, 2013

mg

MANUEL GUSMÃO:
A MÃO QUE ESCREVIA NA MENTE

É curioso constatar como o tempo ensina alguns a olhar melhor para fora, enquanto a outros é a viragem para dentro, a peripécia plena do pensamento ou da interioridade, que os chama.
Escrevi em tempos um texto posfacial para a edição francesa de um livro de poesia de Manuel Gusmão – Teatros do Tempo –, um grande livro da Ideia (i. é, da configuração de uma certa empiria ainda e sempre mais no conceito, aqui amenizado pelo andamento do verso), um livro maior do pensamento poiético, activo e imaginativo, de Manuel Gusmão.
Nesse posfácio escrevia eu em 2010:


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A mão que escreve na mente

            A poesia de Manuel Gusmão é um exemplo singular, quase paradoxal, de um discurso resistente à leitura, pura organização mental, e ao mesmo tempo atravessada permanentemente por núcleos da mais límpida e fulgurante intensidade lírica. Prova provada – por cinco livros, desde 1990 – de que a poesia não é, nem expressão de uma exterioridade (eu ou mundo) nem experimentação meramente lúdica, mas o resultado de uma «tarefa»: objectivar no espaço do poema a multiplicidade do mundo, sem representar nem o mundo nem o eu. Trata-se antes de dispersá-los a ambos, de fazer explodir a experiência e a emoção, para voltar a reconfigurá-las em planos imagéticos (cinematográficos) singulares que se articulam numa construção coesa – o poema, todo um livro, uma Obra de poesia.
            É neste sentido que a primeira coisa de que nos apercebemos na leitura de Teatros do Tempo  é o facto de estarmos perante um poema contínuo e construído, «montado» como um filme. A poesia traça mapas, territórios de vida e de sombra, com a matéria repetida dos dias e a recolhida da tradição. Poesia de uma exigência fora do comum, na tensão e na contenção das imagens, da palavra, de cada sinal, nela o leitor é solicitado, não tanto para interpretar, mas para construir ele próprio situações, estados de coisas, num plano que é o da própria imanência do andamento do poema, com as imagens que vão surgindo, díspares, contraditórias, surpreendentes, mas parte de um sistema poético aberto e firmemente coeso – um «mundo» próprio. Tudo faz sentido no poema e, com isso, faz o sentido do poema. Que se deve ler «como quem tacteia um mapa em relevo», buscando «entre a página ímpar e a página par / […] a promessa hesitante», com a consciência de que isto é literatura e o resto é apenas… vida (uma noção que aqui não tem lugar, e é radicalmente diversa de uma categoria central na poesia de Gusmão, a de «mundo»). A tensão no interior da linguagem, a rugosidade dos ritmos, a «tersa rima», desestabilizam a leitura, mas activam permanentemente «as posições do leitor» (título de um poema de 1971), propondo-lhe uma festa da linguagem, do próprio corpo da linguagem, à esquina de cada verso. E que esquinas estes versos dobram, na «pulsão cartográfica» que os move, a caminho da im-perfeição intencional das suas paisagens, escritas com a mão esquerda, a que «escreve na mente», no estaleiro do poema! E não há metáfora no uso de esquina, caminho, mão esquerda, estaleiro: uso os termos como marcos numa carta de rumos para a leitura desta poesia.


            Nem sempre esta vontade construtiva foi assim evidente no autor. Mas foi-se consolidando do primeiro para o segundo livro (de Dois Sóis, a Rosa / A arquitectura do mundo, de 1990, para Mapas / O Assombro a Sombra, de 1996), e alcançou um grau de evidência inquestionável com os que se seguiram, Teatros do Tempo (2001) e Migrações do Fogo (2004). O último livro de poesia publicado, A Terceira Mão (2008) introduz neste percurso coerente uma inflexão particular: o universo citável e transformável de que se faz muita da poesia de Manuel Gusmão – o literário e o político, o biográfico e o cultural – orientou-se deliberadamente para uma pequena constelação de poetas portugueses, com destaque para Carlos de Oliveira, reescrevendo-os com uma outra mão, não para deles fazer pastiches, mas, segundo o Autor, «para falhar: essa mão mostra-se no falhanço e na diferença», e o resultado é «uma espécie de recomeço impossível da minha poesia».

            A construção do poema contínuo e único faz-se, então, não apenas no mesmo livro, mas de livro para livro. De facto, os temas e os topoi que alimentaram os dois livros anteriores reaparecem neste, e nem sequer de forma escondida: é de tempos, de mapas, de arquitecturas poéticas, do mundo e dos seus teatros de acção e pensamento que se fala neste livro. Teatros do Tempo elabora uma cartografia de tempos sobrepostos que evoca os do livro anterior: a escrita regista, em palimpsesto, passados muito vivos que se reinscrevem sobre um presente apagado, e também tempos do Eu que acorrem ao apelo de tempos do Nós – «como se no tempo se pudesse outra vez fazer / o nascimento outro: os imemoriáveis da alegria».
            Nestes teatros do tempo em que se é actor de acasos num tempo vivido como descontínuo, há lugar, na poesia de M. Gusmão, para os tempo da terra e da casa, entre equinócios e solstícios, entre o amor, os livros, a doença; e também para os tempos da História e do grande mundo. E, contra todas as expectativas face ao estado desse mundo, quando o poema faz convergir esses «tempos constelados», como o poeta os refere, nasce nele a alegria da visão, aquela difícil construção da alegria que é sempre o reverso ou a dobra de uma dor. Na sua solidão radical, o poema não clama no deserto: o poema chama para que alguém acorra, e «o mundo não cessa de vir ao lugar do encontro». Podemos, assim, perceber melhor como a poesia de Manuel Gusmão, sem cedências na sua exigência de rigor construtivo, sem hesitações ao convocar toda uma vasta herança literária que dela faz uma poesia «erudita» muito particular (que não ostenta a intertextualidade, mas assimila e integra de forma criativa o texto do outro), faz nascer o júbilo do fundo de uma crença última, que pode vir de Hölderlin e passar por Wittgenstein, Benjamin ou Llansol: a crença de que a coisa estética é indissociável de uma ética e mesmo de uma forma de conhecimento própria do poema. Só assim o poema se pode transformar, como acontece aqui, no lugar da vita nuova que traz «a promessa  a esperança  a alegria justa // a perfeição das coisas  o mundo inacabado», como se lê no grande poema «Do corpo, as sílabas do fogo». Mas sem ilusões: as três Graças confundem-se, na larga sequência central do livro, com as três Parcas, e o poema, sendo a «promessa justa», nada pode garantir. A não ser – o que não é pouco, e constitui todo um programa – servir de abrigo àquela «insustentável perfeição das coisas», como uma «ruína inacabada» a dominar a «devastadora beleza do mundo».


 Comecei há algumas semanas a ler o seu último livro – Pequeno Tratado das Figuras –, e parei depois da primeira secção. Só agora o retomei e venci a estranheza que me assaltou à primeira leitura. Este livro parece anunciar logo no título uma inflexão, a chegada de Manuel Gusmão a uma escola miniatural do olhar que não esperava num poeta vindo de uma paisagem que era, em geral, mais amplamente mental, reflexiva (e também mais intertextual). Este não era o Manuel Gusmão que eu conhecia e esperava (somos, de facto, prisioneiros dos nossos pré-conceitos, e por vezes temos alguma dificuldade em nos livrarmos deles) – esperava variações, estava interiormente disposto a aceitá-las, mas talvez não um corte abrupto como este.
Resolvi esperar, e ao retomar o livro do início, fora do contexto das rotinas mais habituais, ia despido de ideias feitas. E a leitura começou realmente a acontecer, a entrar-me pelo corpo e pelos olhos, como tinha de ser. Porque é de olhos e do corpo que aqui se trata essencialmente: de luz, de imagens, de figurações, na natureza (matéria mais escondida na poesia de Gusmão até agora) e na arte. E das suas repercussões sobre quem vê. Espontaneamente, a leitura começou a ser acompanhada, no próprio espaço branco da página, com o que os poemas me sugeriam, em mim geravam, pediam... E assim nascia, na interacção com este novo livro de Manuel Gusmão, um modo de ler que, não sendo novo em mim (sempre li de lápis na mão), se foi transformando, de forma mais regular, no meu próprio «sistema constelar das / imagens, das frases e dos ecos» (p. 34).
Volto agora às páginas do livro, consteladas com as minhas anotações nascidas do imediato da leitura, e faço o que nunca fiz: dou a ler em estado embrionário o que poderia ser uma «crítica» ou uma «análise» deste livro, e limito-me a mostrar aqui o que cada poema ou conjunto de poemas me ditou e sobre mim deitou no acto de leitura. E espero com isto, de outro modo, em modoi menor, fazer ainda justiça a mais este livro de um grande poeta.










 Desenhos de Jorge Vieira