02 julho, 2013

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MANUEL GUSMÃO:
A MÃO QUE ESCREVIA NA MENTE

É curioso constatar como o tempo ensina alguns a olhar melhor para fora, enquanto a outros é a viragem para dentro, a peripécia plena do pensamento ou da interioridade, que os chama.
Escrevi em tempos um texto posfacial para a edição francesa de um livro de poesia de Manuel Gusmão – Teatros do Tempo –, um grande livro da Ideia (i. é, da configuração de uma certa empiria ainda e sempre mais no conceito, aqui amenizado pelo andamento do verso), um livro maior do pensamento poiético, activo e imaginativo, de Manuel Gusmão.
Nesse posfácio escrevia eu em 2010:


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A mão que escreve na mente

            A poesia de Manuel Gusmão é um exemplo singular, quase paradoxal, de um discurso resistente à leitura, pura organização mental, e ao mesmo tempo atravessada permanentemente por núcleos da mais límpida e fulgurante intensidade lírica. Prova provada – por cinco livros, desde 1990 – de que a poesia não é, nem expressão de uma exterioridade (eu ou mundo) nem experimentação meramente lúdica, mas o resultado de uma «tarefa»: objectivar no espaço do poema a multiplicidade do mundo, sem representar nem o mundo nem o eu. Trata-se antes de dispersá-los a ambos, de fazer explodir a experiência e a emoção, para voltar a reconfigurá-las em planos imagéticos (cinematográficos) singulares que se articulam numa construção coesa – o poema, todo um livro, uma Obra de poesia.
            É neste sentido que a primeira coisa de que nos apercebemos na leitura de Teatros do Tempo  é o facto de estarmos perante um poema contínuo e construído, «montado» como um filme. A poesia traça mapas, territórios de vida e de sombra, com a matéria repetida dos dias e a recolhida da tradição. Poesia de uma exigência fora do comum, na tensão e na contenção das imagens, da palavra, de cada sinal, nela o leitor é solicitado, não tanto para interpretar, mas para construir ele próprio situações, estados de coisas, num plano que é o da própria imanência do andamento do poema, com as imagens que vão surgindo, díspares, contraditórias, surpreendentes, mas parte de um sistema poético aberto e firmemente coeso – um «mundo» próprio. Tudo faz sentido no poema e, com isso, faz o sentido do poema. Que se deve ler «como quem tacteia um mapa em relevo», buscando «entre a página ímpar e a página par / […] a promessa hesitante», com a consciência de que isto é literatura e o resto é apenas… vida (uma noção que aqui não tem lugar, e é radicalmente diversa de uma categoria central na poesia de Gusmão, a de «mundo»). A tensão no interior da linguagem, a rugosidade dos ritmos, a «tersa rima», desestabilizam a leitura, mas activam permanentemente «as posições do leitor» (título de um poema de 1971), propondo-lhe uma festa da linguagem, do próprio corpo da linguagem, à esquina de cada verso. E que esquinas estes versos dobram, na «pulsão cartográfica» que os move, a caminho da im-perfeição intencional das suas paisagens, escritas com a mão esquerda, a que «escreve na mente», no estaleiro do poema! E não há metáfora no uso de esquina, caminho, mão esquerda, estaleiro: uso os termos como marcos numa carta de rumos para a leitura desta poesia.


            Nem sempre esta vontade construtiva foi assim evidente no autor. Mas foi-se consolidando do primeiro para o segundo livro (de Dois Sóis, a Rosa / A arquitectura do mundo, de 1990, para Mapas / O Assombro a Sombra, de 1996), e alcançou um grau de evidência inquestionável com os que se seguiram, Teatros do Tempo (2001) e Migrações do Fogo (2004). O último livro de poesia publicado, A Terceira Mão (2008) introduz neste percurso coerente uma inflexão particular: o universo citável e transformável de que se faz muita da poesia de Manuel Gusmão – o literário e o político, o biográfico e o cultural – orientou-se deliberadamente para uma pequena constelação de poetas portugueses, com destaque para Carlos de Oliveira, reescrevendo-os com uma outra mão, não para deles fazer pastiches, mas, segundo o Autor, «para falhar: essa mão mostra-se no falhanço e na diferença», e o resultado é «uma espécie de recomeço impossível da minha poesia».

            A construção do poema contínuo e único faz-se, então, não apenas no mesmo livro, mas de livro para livro. De facto, os temas e os topoi que alimentaram os dois livros anteriores reaparecem neste, e nem sequer de forma escondida: é de tempos, de mapas, de arquitecturas poéticas, do mundo e dos seus teatros de acção e pensamento que se fala neste livro. Teatros do Tempo elabora uma cartografia de tempos sobrepostos que evoca os do livro anterior: a escrita regista, em palimpsesto, passados muito vivos que se reinscrevem sobre um presente apagado, e também tempos do Eu que acorrem ao apelo de tempos do Nós – «como se no tempo se pudesse outra vez fazer / o nascimento outro: os imemoriáveis da alegria».
            Nestes teatros do tempo em que se é actor de acasos num tempo vivido como descontínuo, há lugar, na poesia de M. Gusmão, para os tempo da terra e da casa, entre equinócios e solstícios, entre o amor, os livros, a doença; e também para os tempos da História e do grande mundo. E, contra todas as expectativas face ao estado desse mundo, quando o poema faz convergir esses «tempos constelados», como o poeta os refere, nasce nele a alegria da visão, aquela difícil construção da alegria que é sempre o reverso ou a dobra de uma dor. Na sua solidão radical, o poema não clama no deserto: o poema chama para que alguém acorra, e «o mundo não cessa de vir ao lugar do encontro». Podemos, assim, perceber melhor como a poesia de Manuel Gusmão, sem cedências na sua exigência de rigor construtivo, sem hesitações ao convocar toda uma vasta herança literária que dela faz uma poesia «erudita» muito particular (que não ostenta a intertextualidade, mas assimila e integra de forma criativa o texto do outro), faz nascer o júbilo do fundo de uma crença última, que pode vir de Hölderlin e passar por Wittgenstein, Benjamin ou Llansol: a crença de que a coisa estética é indissociável de uma ética e mesmo de uma forma de conhecimento própria do poema. Só assim o poema se pode transformar, como acontece aqui, no lugar da vita nuova que traz «a promessa  a esperança  a alegria justa // a perfeição das coisas  o mundo inacabado», como se lê no grande poema «Do corpo, as sílabas do fogo». Mas sem ilusões: as três Graças confundem-se, na larga sequência central do livro, com as três Parcas, e o poema, sendo a «promessa justa», nada pode garantir. A não ser – o que não é pouco, e constitui todo um programa – servir de abrigo àquela «insustentável perfeição das coisas», como uma «ruína inacabada» a dominar a «devastadora beleza do mundo».


 Comecei há algumas semanas a ler o seu último livro – Pequeno Tratado das Figuras –, e parei depois da primeira secção. Só agora o retomei e venci a estranheza que me assaltou à primeira leitura. Este livro parece anunciar logo no título uma inflexão, a chegada de Manuel Gusmão a uma escola miniatural do olhar que não esperava num poeta vindo de uma paisagem que era, em geral, mais amplamente mental, reflexiva (e também mais intertextual). Este não era o Manuel Gusmão que eu conhecia e esperava (somos, de facto, prisioneiros dos nossos pré-conceitos, e por vezes temos alguma dificuldade em nos livrarmos deles) – esperava variações, estava interiormente disposto a aceitá-las, mas talvez não um corte abrupto como este.
Resolvi esperar, e ao retomar o livro do início, fora do contexto das rotinas mais habituais, ia despido de ideias feitas. E a leitura começou realmente a acontecer, a entrar-me pelo corpo e pelos olhos, como tinha de ser. Porque é de olhos e do corpo que aqui se trata essencialmente: de luz, de imagens, de figurações, na natureza (matéria mais escondida na poesia de Gusmão até agora) e na arte. E das suas repercussões sobre quem vê. Espontaneamente, a leitura começou a ser acompanhada, no próprio espaço branco da página, com o que os poemas me sugeriam, em mim geravam, pediam... E assim nascia, na interacção com este novo livro de Manuel Gusmão, um modo de ler que, não sendo novo em mim (sempre li de lápis na mão), se foi transformando, de forma mais regular, no meu próprio «sistema constelar das / imagens, das frases e dos ecos» (p. 34).
Volto agora às páginas do livro, consteladas com as minhas anotações nascidas do imediato da leitura, e faço o que nunca fiz: dou a ler em estado embrionário o que poderia ser uma «crítica» ou uma «análise» deste livro, e limito-me a mostrar aqui o que cada poema ou conjunto de poemas me ditou e sobre mim deitou no acto de leitura. E espero com isto, de outro modo, em modoi menor, fazer ainda justiça a mais este livro de um grande poeta.










 Desenhos de Jorge Vieira







 

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