30 junho, 2013

O ESTADO DA ARTE CONTEMPORÂNEA

Acabo de regressar do Funchal, onde participei, na galeria Porta 33, numa série de reflexões sobre arte e estética contemporâneas, com artistas plásticos, críticos e professores de arte, filósofos, directores de museu, escritores... A Porta 33 é um foco extremamente vivo (o único verdadeiramente relevante na Madeira) de actividades, exposições, encontros em torno das artes visuais, e no âmbito destas conversas irá também editar um livro com mais de vinte ensaios sobre o tema.


O meu contributo para estes encontros, que reproduzo a seguir, centrou-se num conjunto de teses sobre a situação da arte, das artes, no actual contexto civilizacional, e intitulou-se

SEIS PROPOSTAS PARA O PRÓXIMO... QUARTO DE HORA 

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1. ... para o próximo quarto de hora: porque quando sairmos daqui a condição e os pressupostos da arte e da cultura contemporâneas já terão, aparentemente, mudado. À superfície, o que diariamente vem ter connosco é um torvelinho mutante, uma constante novidade, os produtos de uma imaginação delirante e sem limites – ou seja, estratégias (comerciais, de captação de público, autopromocionais, «espectaculares»), mas não necessariamente obras.

Mas a verdade é que nem existe uma condição da arte contemporânea, nem os seus pressupostos mudarão tão depressa – chegaram há décadas e, apesar da turbulência contemporânea, estão aí para ficar. Os envolvimentos (mediáticos, comerciais, políticos) tenderão a apagar cada vez mais as obras e a sua densidade multiestratificada. Exemplo: Rui Chafes é objecto de interesse jornalístico quando decide incluir as suas obras na delegação cubana da Bienal de Veneza, para se demarcar de Joana Vasconcelos (mas isto em nada contribui para iluminar a Obra de Rui Chafes, nem para o fazer chegar a um «público» menos alienado e verdadeiramente mais interessado). Talvez se trate apenas de um fait divers, mas o gesto de Rui Chafes, bem vistas as coisas, é um gesto político, e uma obra sua pode hoje ser, ela mesma, um facto político, um «manifesto mudo», como diria Rancière.

2. É preciso, neste contexto, distinguir entre o con-temporâneo e a actualidade. O contemporâneo rejeita a simples e simplista equiparação ao «actual», que é o real-sempre-em-acto, aquela versão da realidade que vive de, e exige para si própria, um aggiornamento permanente. Pelo contrário, a produção artística verdadeiramente contemporânea (i. e. nossa enquanto seres de memória, uma dimensão imprescindível na criação artística) é aquela que é capaz de subsumir em si estratos mais fundos, vários tempos num tempo (ou no espaço da obra), superando assim o mero circo do visível e do consumível, sempre em busca de visibilidade, mas pouco actuante a nível profundo, porque sempre em trânsito de superfície. Neste sentido, o con-temporâneo corresponderá a uma espécie de sincronia diacronizada, ou seja, sincronizada com tempos-outros. A actualidade que se busca a todo o preço, e que tende a amputar essa necessária capacidade de memória, não conhece «a parte da sombra» (Agamben), o «olhar de saber do ininteligível de um texto» (Llansol), que estão presentes no que é nosso con-temporâneo. Por isso, ser contemporâneo é raro e difícil, contrariamente à facilidade com que se pode ser actual. O livro Persistência da Obra, organizado há tempos por Tomás Maia (na Assírio & Alvim), tematiza a fundo esta questão. E Herberto Helder faz a sua síntese poética em alguns versos do último livro, Servidões:
olhos ávidos,
olhos ávidos quando tudo tem de ser novo para de novo ser soberbo,
e é esse o êrro de que ressuscito
e depois morro.

3. O ponto anterior abre para duas grandes contradições deste tempo, de que também a arte é vítima: a incapacidade da experiência do tempo, de tempos diversos num tempo aparentemente homogéneo – a Ungleichzeitigkeit des Gleichzeitigen (a diferença de tempos num mesmo tempo) de que falava o esquecido filósofo Ernst Bloch: o presente visto como uma reactualização de passados vários em novos contextos, e como «grávido de futuro», movendo-se e configurando-se assim entre os dois pólos da ideia blochiana de uma «utopia concreta», um em-devir ancorado no presente. Por outro lado, parece haver também uma certa incapacidade de suspensão da temporalidade, que a obra exige, num contexto civilizacional em que o tempo (material, cronológico, ele mesmo um «valor») é tudo e tudo depende do tempo. Na civilização do trabalho – com a sua angústia do desemprego – quase ninguém consegue «cair em si», concentrar-se, isolar-se, imaginar a espacialização do tempo (e a obra pede tudo isso); por outro lado, assistimos, na era da imagem e do ruído, ao desaparecimento da capacidade de ver e ouvir.

4. Este último aspecto parece-me central, e por isso me detenho nele. Há trinta anos, quando já eram visíveis todos os sinais do processo político e cultural que explica o ponto a que as coisas chegaram hoje (na crise que assola a Europa e na situação da arte), uma revista alemã então muito importante – a Literaturmagazin – publicava um número dedicado a este tema: Das Vergehen von Hören und Sehen, que se poderia traduzir, tanto por: o desaparecimento da capacidade de ver e ouvir, como por: o crime, a transgressão de ver e ouvir! Ou seja: querer ver e ouvir para além, ou aquém, do ruído e da poluição visual dominantes, no limite do invisível e do silêncio, tornaram-se impossíveis, ou são vistos como algo de inaudito, quase um crime (como no célebre poema de Brecht no exílio: «Que tempos são estes / Em que um poema sobre árvores / É quase um crime...»). Estigmatiza-se a capacidade de ver e ouvir porque se impôs o paradigma do paroxismo das imagens e do ruído, uma forma de poluição que elimina progressivamente uma faculdade e uma forma de saber que é a de reagir, com tempo, a estímulos da percepção (Georg Simmel já se apercebeu disso há cem anos, no ensaio «As grandes cidades e a vida do espírito»). Agora, num momento em que o acesso à produção artística e cultural poderia ser quase ilimitado e livre (mas não é, porque é objecto de manipulação determinada), o caminho da retirada e do silêncio (de que fala Pascal Quignard em La barque silencieuse, 2009) não está à vista da maioria das pessoas, que não conseguem ver «esse mais que se dá a ver» nas obras, mas que «não tem imagem», é «o rosto por detrás da face». Este, o grande paradoxo: estamos, na civilização das imagens que nasceu há um século e se foi amplamente oferecendo a massas que não sabem ver, nos antípodas de uma cultura da imagem: na indústria da cultura dessa civilização que, paradoxalmente, trouxe consigo o progressivo desaparecimento da capacidade de ver e ouvir, a imagem é pura superfície, o ver não gera a reflexão.

5. O ver que gera a reflexão proporciona a verdadeira experiência, produtiva e formativa, da obra (que é muito diferente da sua vivência superficial, festiva e mais ou menos exuberante). Dou, a título paradigmático, três exemplos de experiências seminais, transformadoras (mas o que está a acontecer no campo da produção artística oferecerá muitas mais):
a) Uma experiência puramente estética, um «manifesto mudo» (Rancière) da força libertadora, emancipatória no sentido mais profundo do termo, da criação artística: o ciclo de cinco curtas de Abbas Kiarostami, Five, uma homenagem ao despojamento, à fruição do tempo e à beleza dos planos no cinema de Yazujirô Ozu. Ou: Uma experiência alternativa, e ainda mais funda, inquietante e transformadora é a de quem sai da última exposição de Rui Chafes, Tranquila ferida do sim, faca do não. Nesta exposição de cinco peças que, pela luz (ou pela sua ausência) transformam um espaço comum no mais enigmático e inominável lugar dos corpos confrontados com a sua origem, o escultor acentua algo que age ostensivamente a contrapêlo do espírito do grande circo da arte que nos submerge dia a dia: a total «ausência de encenação» das cinco peças expostas em quase absoluta obscuridade, todas iguais e todas autónomas. De facto, essas cinco peças esguias e as suas frestas de luz nada encenam, são pura presença, a princípio indiscernível, de onde, se o espectador tiver o saber do tempo necessário para assistir a um nascimento, emerge progressivamente a luz.
b) um momento, não puramente estético, mas artístico-performativo, e mais local (mas o local e o global confundem-se hoje, com a diferença de que na economia o local é anulado, enquanto na arte ele continua a afirmar-se na diferença): a exposição colectiva de uma galeria (ainda) alternativa, uma das muitas pequenas luzes da resistência aos holofotes da indústria da cultura, a Galeria Zé dos Bois, em Lisboa. A exposição intitulava-se «Tem calma, o teu país está a desaparecer», e era a manifestação, agora algo estridente e irónica, do político através da produção da diferença pela arte, num contexto sistémico que impõe o sempre-igual e uma inequívoca vontade de formatar a invenção.
c) O terceiro exemplo é o do fenómeno disperso, rizomático, mas insistente da cultura a mostrar-se e a afirmar-se pela presença dos corpos de quem a faz, numa manifestação pública (como a que, em Setembro de 2012, levou muitos agentes culturais à Praça de Espanha, em Lisboa). É o sinal, ainda mais abertamente político, de uma «multidão» no seio do «Império», como diria Toni Negri, uma vaga sem centro que, não correspondendo à clássica noção das «massas», é o seu equivalente «acéfalo», mas extremamente móvel, que resolve «encenar e ensaiar a revolta». E, ao fazê-lo, dá a ver uma forma de activismo político contemporâneo como «arte em tempo real», uma espécie de oficina artística de uma nova narrativa política que está a gerar novos modos de intervenção colectiva. A manifestação tem hoje, até pela apropriação imediata e generalizada, pelas televisões, de todo o processo que a envolve, enormes potencialidades de se ver transformada em «obra de arte total» performativa e militante. A arte está na rua, manifesto silencioso ou ruidoso, arte performativa feita de corpos e vontades – e, neste caso, muita encenação!

6. Nesta diversidade, a arte não tem de estar hoje necessariamente submetida à política, à cultura e ao negócio. No próprio reino das indústrias da cultura e dos poderes, financeiros ou outros, existindo (mas não convivendo) com ele, instalou-se uma fértil e muito viva an-arquia criativa que veio substituir, em vários campos de intervenção, o antigo poder da palavra, discursivo-argumentativo (que se revelou ser bastante ilusório, em grande parte porque jogava no terreno do poder e com as mesmas armas). Não estamos, como pergunta uma série de conferências de Bernard Stiegler disponíveis na Internet, numa «sociedade sem arte e sem cultura». Estamos longe de mais uma proclamação da «morte da arte». Nem é isso o que os políticos-políticos propõem (e não digo os políticos da cultura, porque já os não há): eles toleram a arte na sociedade e para a sociedade (o sistema há muito que tem um grande estômago, como sabemos); o que eles toleram menos, e não entendem, são aquelas formas de arte que voltam costas à sociedade dos meros consumidores, ou a afrontam pelo simples facto de estarem aí. Os mais eficazes (e hoje já nada subtis) modos de contrariar estas formas de arte «desinibidas da doxa» (Quignard) são os do seu silenciamento nos media (para além dos cortes de financiamento): nos media só passa a) o que não dá que pensar; b) o que confirma o que todos já conhecem (e conhecem pela repetição, à exaustão, nesses mesmos meios de comunicação). É a «arte para todos», numa situação de pretensa «democratização da arte», o slogan mais cínico e enganador dos nossos tempos, filho do puro populismo demagógico, hoje presente numa política da cultura inexistente e numa indústria cultural que é só indústria sem cultura. São as novas formas de totalitarismo pós-moderno e «pós-burguês», que, como já escreveu Hannah Arendt (em As Origens do Totalitarismo), são filhas das «convicções políticas [e mais ainda estéticas] da burguesia, que sempre foram totalitárias».

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