25 agosto, 2007


Eduardo, caro amigo,

estou longe e não posso acompanhar-te na viagem que a Grande Ceifeira te obrigou a fazer. Há mais de trinta anos, lembras-te, quando nos despertavas para os novos caminhos da teoria estruturalista, já com aquela escrita envolvente e rigorosa que sempre foi a tua, alguém escrevia, assinalando esse inevitável e frutuoso despertar: "Enfin, Édouard vint!" Hoje, perante esta incompreensível decisão da Segadora, cega e indiferente, absurda e arbitrária, pergunto-me: "Pourquoi Édouard s'en va?" E não encontro resposta. Não há resposta, apenas revolta, para os desígnios insondáveis e tantas vezes injustos da Grande Desconhecida. Não encontro respostas. Só perguntas: Por que razão são quase sempre os melhores que partem cedo de mais? (Duvido que seja porque os deuses os amam mais, como, ingenuamente, escreveu o poeta.) Por que é que a foice corta cerce a inteligência, a lucidez, a sensibilidade, e deixa tanta boçalidade à solta? Pourquoi, Édouard, tu t'en vas?


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21 agosto, 2007

Férias?

Não propriamente. Férias seria assim, segundo Musil, em 1913 como hoje:

(...) Voltemos ao nosso banco na montanha, com a manada de vacas à nossa frente. Imagina um alto funcionário da Chancelaria sentado aí, com calças de cabedal novinhas em folha, suspensórios verdes com as palavras Grüß Gott bordadas em cima. O homem representa o real conteúdo da vida em férias. Isso implica, naturalmente, naquele momento uma transformação da consciência que ele tem da sua existência. Ao contemplar a manada de vacas não conta, não faz cálculos, não avalia o peso dos animais vivos que pastam diante dele, perdoa aos seus inimigos e pensa com tolerância na família. De objecto prático que é, a manada tornou-se, para ele, um objecto moral. É claro que também é possível que ele se ponha a fazer alguns cálculos e contas e não perdoe completamente, mas então tudo isso será pelo menos envolvido pelo rumorejar da floresta, o murmúrio dos riachos e a luz do sol. Tudo isso se pode dizer numa frase: aquilo que normalmente constitui o conteúdo de uma vida surge-lhe agora como algo «longínquo» e «no fundo, sem importância».


– É o estado de espírito de quem está em férias – completou Agathe mecanicamente.
– Exactamente! E se a existência fora do tempo de férias lhe parece «no fundo, sem importância», isso quer apenas dizer: até as férias acabarem. É esta, então, a verdade de hoje: as pessoas têm dois estados de existência, de consciência e de pensamento, e defendem-se do susto fatal que isso lhes deveria causar considerando um deles como sendo as férias do outro, a sua interrupção, um descanso ou qualquer coisa que julgam conhecer. (...)

Eu simplesmente mudo de lugar por uns dias, vou para outros tons de azul – daqui a pouco estou de volta!

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DE MUSIL PARA... os basbaques dos «grandes espíritos»


«As cabeças masculinas particularmente belas em geral são estúpidas; os filósofos muito profundos são geralmente fracos pensadores; na literatura, as vocações um pouco acima da média são quase sempre vistas pelos contemporâneos como geniais.
É um estranho fenómeno, este da admiração...»
(O Homem sem Qualidades, Livro II, cap. 14)

19 agosto, 2007


3
O cemitério central



Passei uma tarde rodeado de kitsch, de muita pompa e de alguma circunspecção (exemplos: o mausoléu dos Wittgenstein ou o túmulo de Arnold Schönberg) nesta cidade dos mortos, gigantesca e tratada com uma limpeza e um saber urbanístico que suplanta em muito o do mundo dos vivos – com as suas alamedas bem tratadas, os vários sectores urbanos dispostos com critério, uma cuidada atenção à igualdade de tratamento (há um cemitério budista moderníssimo, e um cemitério judeu antigo, e mal tratado, hélas!), uma bela igreja anunciadora da Arte Nova de 1900, com uma cúpula impressionante pintada em azul de Giotto, e até um «Parque do sossego e da força» para carregar baterias depois de longas caminhadas...
Mas de tudo isso, e de muito mais, fala melhor a minha amiga «viscondessa Amélia de Sousa Carvalho» , aliás Ilse Pollack, em «carta a um seu amigo do Porto» (que sabemos ser o jornalista e poeta J. Viale Moutinho):


«Meu caro!
Aqui estou eu na tua cidade da morte, ou melhor, na cidade dos mortos. Tu, que só os conheces de postais ilustrados, achas que eles são divertidos. Já eu, podes crer, acho que os vivos, esses é que são "uns mortos", mas raramente tão interessantes como os Vienenses desejariam que eles fossem.
[...]
Bonjour, monsieur! Hoje começo a minha ronda dos mortos num táxi. O tempo está esplêndido, e por isso decido fazer uma saída para o verde, mas o taxista pergunta logo: Já esteve na Cripta dos Capuchinhos? É aí que estão os restos dos grandes da família imperial austríaca. Com o cérebro desfeito, mas isso já ninguém pode verificar, tanto tempo depois. Quer que espere?, pergunta ainda.
E eu: Não, obrigada, ia ficar à espera muito tempo.
E ele: Mas porquê? O que é que se pode fazer tanto tempo num cemitério?
Fotografias, respondo eu logo, embora não seja japonesa.
E ele, com um alívio estudado: Ah, bom, já começava a pensar que se queria juntar a eles.


O cemitério principal de Viena: ao que dizem, uma verdadeira cidade. Nas várias entradas pode comprar-se uma planta, a planta da cidade dos mortos, mas só os monumentos mais famosos estão assinalados, os mausoléus de actores e compositores, de mestres de capela e poetas, de políticos e inventores. Não necessariamente por esta ordem, mas sempre dispostos de tal modo que os mortos célebres, mesmo debaixo da terra, se mostrem a uma luz pública.
Os estrangeiros procuram todos em primeiro lugar o túmulo de Beethoven. O vienense conversa horas a fio com os seus sobre as celebridades aqui enterradas. Sobretudo aquelas que ele ainda conheceu, porque isso lhe dá um gozo muito especial, o de estar vivo e poder passear por cima delas.
Coisa estranha, como tudo gira à volta destes mausoléus comemorativos, enquanto outras partes da cidade estão completamente votadas ao abandono. Os columbários, por exemplo, ou as criptas das arcadas. [...]


Filhos agradecidos dedicam aos queridos pais um tríptico de cenas burguesas domésticas; ao lado, um busto masculino, de bigodes, paira sobre duas figuras de mulher, gaudendo et agitando. Um a delas decentemente vestida, a outra de peito cheio à mostra – e, apesar disso, ambas têm estampada no rosto a mesma expressão de sofrimento. De resto, parece que as preferências locais vão para as mulheres não aladas, mais do que para os austeros anjos negros da morte... [...]


Não sei como a cidade se comporta para com os vivos, mas com os mortos tem uma relação verdadeiramente cosmopolita: Sérvios caídos nas guerras com os Turcos descansam ao lado de Franceses da época napoleónica, antifascistas polacos ao lado de Austríacos vítimas do dever.
Quem se aventurar por estes caminhos a pé, é melhor levar farnel, porque ninguém se lembrou das necessidades vitais dos vivos. Os descendentes têm a vida facilitada se a campa que visitam fica encostada a uma rua transitável. Ali está um homem que remove as folhas acumuladas sobre a pedra, com pá e vassourinha, enquanto a mulher faz malha no carro. Deve ter a sogra ali enterrada. Duas campas mais abaixo, alguém tira um aspirador da mala do carro – perdoai-lhes, queridos mortos, que eles não sabem o que fazem!»

(De: Ilse Pollack, Mundos de Fronteira. Lugares e figuras da Europa Central. Lisboa, Livros Cotovia, 2000)


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16 agosto, 2007


2
A Cacânia e nós



Musil analisa num dos primeiros capítulos do seu opus magnum as idiossincrasias e os sintomas da decadência desse mundo antes da Guerra. A abertura leva-nos para um universo diametralmente oposto, para uma atmosfera de Metropolis, para depois entrar no pântano da Viena imperial e nos labirintos aristo-, buro-, auto-, teo- e gerontocráticos da sua máquina social, política e ideológica. Musil (ou o seu narrador, numa acção que se situa em 1913) antevê uma entrada no «comboio do tempo», que, em quase todos os aspectos dessa sua antevisão, o traz ao nosso próprio tempo. Traça-se uma vez mais o arco que liga a Viena de 1900 à que nos é dado conhecer em 2006-07 (e que pode ser visitada, com olhar retrospectivo e – por que não admiti-lo? – ainda nostálgico, aqui).
Retiro da tradução em curso esse capítulo, antecipando a saída do primeiro volume em 2008.


A CACÂNIA

Na idade em que alfaiate e barbeiro são ainda de grande importância e gostamos de olhar para o espelho, imaginamos também um lugar onde gostaríamos de passar a vida, ou pelo menos um lugar onde fosse de bom tom ficar, ainda que sentindo que esse não seria o lugar da nossa escolha pessoal. Uma dessas ideias fixas sociais é, desde há muito tempo, uma espécie de cidade super-americana onde toda a gente corre ou pára, de cronómetro na mão. O ar e a terra formam um formigueiro atravessado por vários níveis de vias de trânsito. Comboios cruzam o ar, o solo e o subsolo, pessoas são transportadas por tubo pneumático, filas de automóveis deslocam-se a alta velocidade na horizontal, elevadores rápidos bombeiam massas humanas na vertical, de um nível de trânsito para outro; nos pontos de ligação salta-se de uma máquina de transporte para a outra, e o seu ritmo, que, entre duas velocidades alucinantes faz uma síncope, uma pausa, um pequeno espaço de vinte segundos, aspira-nos sem nos dar tempo para reflectir, e nos intervalos desta dinâmica geral trocamos apressadamente algumas palavras. As perguntas e as respostas engatam umas nas outras como peças de máquinas, cada um limita-se a executar tarefas bem definidas, as profissões foram agrupadas em determinadas zonas, come-se em movimento, a zona de diversões fica noutra parte da cidade, e num outro sector ainda ficam as torres onde vamos encontrar mulher, família, gramofone e alma. A tensão e a descontracção, a actividade e o amor têm os seus tempos próprios rigorosamente atribuídos e calculados com base em minuciosas experiências laboratoriais. Se deparamos com dificuldades em alguma dessas actividades, largamo-la pura e simplesmente, porque encontraremos outra, ou até um caminho mais conveniente, ou então outra pessoa dá com um caminho em que não tínhamos reparado antes; em tudo isto não há desperdício, pois nada é mais propício a desgastar a energia comum do que a pretensão de que temos uma tarefa pessoal a cumprir e não vamos desistir desse objectivo. Num tecido social irrigado por energias, todos os caminhos levam a um fim bom em si, se não hesitarmos e reflectirmos por muito tempo. Os objectivos estão próximos; mas também a vida é curta, e assim se obtém o máximo proveito, e de mais não precisa uma pessoa para ser feliz: porque aquilo que se alcança é que dá forma à alma, ao passo que aquilo que se persegue sem o atingir a deforma. A felicidade depende muito pouco daquilo que se quer, realiza-se apenas com aquilo que se alcança. Para além disso, a zoologia ensina-nos que um número de indivíduos limitados pode constituir um todo genial.


Não é seguro que assim tenha de vir a ser, mas ideias como esta fazem parte dos sonhos de viagem que reflectem a sensação de incessante movimento que nos arrasta. São superficiais, breves e agitadas. Só Deus sabe o que o futuro nos trará. Somos levados a acreditar que a cada momento temos o princípio na mão e que deveríamos fazer um plano que nos abrangesse a todos. Se toda aquela história da velocidade não nos agrada, inventamos outra, por exemplo uma muito lenta, com uma felicidade de véus flutuantes, misteriosa como uma lesma-do-mar e aqueles olhos mansos de vaca de que já os Gregos antigos tanto gostavam. Mas as coisas não são nada assim. É a história que nos domina, e não nós a ela. Dia e noite viajamos dentro dela e fazemos tudo o que tem de ser feito; barbeamo-nos, comemos, amamos, lemos livros, exercemos uma profissão, como se as nossas quatro paredes estivessem imóveis, quando o inquietante de toda essa história é que as paredes viajam sem que nós demos por isso, e projectam os seus carris como longos fios, curvos e tacteantes, e nós não sabemos para onde. E ainda por cima, o que nós gostaríamos era de pertencer também às forças que determinam o andamento do comboio do tempo. É um papel muito pouco claro, e quando, após uma pausa mais longa, olhamos lá para fora, acontece que a paisagem se transformou: o que passa a correr, passa porque não pode deixar de o fazer. Mas, por mais dedicados que sejamos, não podemos evitar que uma sensação desagradável se apodere de nós, como se tivéssemos ultrapassado o objectivo ou metido pelo caminho errado. E um dia chega aquela necessidade irresistível e premente: descer! saltar do comboio! Uma nostalgia de sermos travados, de não progredir, de ficar parados, de regressar a um ponto antes do desvio errado! E nos bons velhos tempos em que ainda existia o império austríaco, era possível, numa situação dessas, abandonar o comboio do tempo, sentar-se num comboio normal de uma linha normal e voltar a casa.


Aí, na Cacânia, nesse Estado incompreendido e entretanto afundado, a tantos títulos exemplar, mas não reconhecido, havia também um ritmo próprio, mas não excessivo. De cada vez que, a partir de fora, se pensava nesse país, surgia-nos diante dos olhos a lembrança das estradas brancas, largas, de aspecto próspero, do tempo das marchas a pé e das diligências, que o atravessavam em todas as direcções como rios da ordem, como fitas de claro cotim militar, com o braço branco de papel da administração a abraçar todos os seus territórios. E que territórios! Havia neles glaciares e mares, a pedra calcária do Karst e as searas da Boémia, noites do Adriático com a zoada estridente dos grilos e aldeias eslovacas onde o fumo subia das chaminés como de narinas abertas e a aldeia se acocorava entre duas pequenas colinas, como se a terra tivesse entreaberto um pouco os lábios para aquecer entre eles um filho. Naturalmente que nessas estradas rolavam também automóveis, mas não muitos. Também aí se preparava a conquista dos ares, mas sem pressas. De vez em quando largava um navio para a América do Sul ou o Extremo-Oriente, mas não tantos assim. Não existiam aí ambições económicas nem de domínio do planeta; estava-se no centro da Europa, na encruzilhada dos antigos eixos do mundo; as palavras «colónia» e «ultramar» ouviam-se como qualquer coisa ainda não experimentada e remota. Havia sinais de luxo, mas de modo nenhum tão requintado como em França. Praticava-se desporto, mas não tão fanaticamente como os anglo-saxões. Gastavam-se somas astronómicas com o exército, mas só o suficiente para garantir a sua posição de penúltimo lugar entre as mais fracas das grandes potências.


Também a capital era bastante mais pequena do que todas as outras grandes metrópoles do mundo, mas ainda um nadinha maior do que uma simples cidade grande. E era um país administrado de um modo esclarecido, pouco visível, limando prudentemente todas as arestas, e pela melhor burocracia da Europa, à qual só se podia apontar uma falha: a de considerar insolentes e presunçosos o génio ou as iniciativas geniais de pessoas que não fossem de alta estirpe ou não tivessem alguma missão oficial que justificasse tal privilégio. Mas quem é que gosta de receber lições de gente incompetente? E mais: na Cacânia, um génio seria sempre considerado um pulha, mas nunca, como acontece noutros lugares, um pulha poderia ser visto como um génio.
Quantas coisas curiosas não se poderiam dizer sobre esta Cacânia hoje afundada! Era, por exemplo, kaiserlich-königlich (real-imperial) e kaiserlich und königlich (real e imperial); não havia nada nem ninguém que não usasse uma dessas etiquetas, ou k. k., ou k. u. k.. Apesar disso, só quem dominasse uma certa ciência secreta poderia com segurança distinguir as instituições e as pessoas a quem se dirigir com k. k. ou com k. u. k.. Chamava-se, no papel, Monarquia Austro-Húngara, mas de viva voz toda a gente lhe chamava Áustria, um nome a que este país tinha renunciado com um juramento oficial e solene, mas que manteve em tudo o que tinha a ver com questões emocionais, para mostrar que os sentimentos são tão importantes como o direito público e que os regulamentos não são a coisa mais importante desta vida. De acordo com a constituição, era um país liberal, mas era governada de forma clerical. O governo era clerical, mas a vida regia-se por princípios liberais. Todos os cidadãos eram iguais perante a lei, mas acontecia que nem todos eram cidadãos. Tínhamos um Parlamento que fazia um tal uso da sua liberdade que o mantinham quase sempre fechado; mas havia também uma lei de excepção que permitia passar sem o Parlamento, e quando toda a gente já estava novamente feliz sob o absolutismo, a Coroa decretava que era altura de regressar ao regime parlamentar.


Acontecimentos destes eram frequentes neste Estado, e entre eles contavam-se também aqueles conflitos nacionalistas que, com razão, despertavam a curiosidade de toda a Europa e hoje são apresentados de forma totalmente falsa. Eram tão violentos que por causa deles o aparelho do Estado ficava paralisado várias vezes ao ano, mas nos intervalos e nos períodos mortos, de mudança de governos, todos se davam muito bem e agiam como se nada fosse. E, de facto, não era nada. Acontecia apenas que a aversão natural de qualquer um em relação aos esforços dos outros para lhe passarem à frente, coisa que todos conhecemos hoje, surgira muito cedo neste Estado, onde se pode dizer que se tornou um cerimonial sublimado que poderia ter tido um grande futuro, se a sua evolução não tivesse sido prematuramente interrompida por uma catástrofe.
Não foi apenas a aversão pelo outro que ali se intensificou até se tornar um sentimento de comunidade, foi também a descrença na pessoa e no destino próprios que ganhou foros de profunda certeza. Neste país – e por vezes até ao mais alto grau das paixões e suas consequências – , toda a gente agia de modo diferente do que pensava, ou pensava de modo diferente de como agia. Alguns observadores menos informados tomavam isto por afabilidade, ou mesmo por uma fraqueza daquilo que consideram ser o carácter austríaco. Mas estavam enganados; aliás, é sempre um engano querer explicar os fenómenos de um país simplesmente à luz do carácter dos seus habitantes. De facto, o habitante de um país tem pelo menos nove caracteres: o profissional, o nacional, o político, o de classe, o geográfico, o sexual, o consciente, o inconsciente e talvez ainda um carácter privado. Encontram-se todos nele, mas dissolvem-no, e ele acaba por não ser mais do que uma pequena depressão do terreno banhada por estes muitos riachos que nela desaguam, para dela voltarem a sair e encherem, com outros riachos, um novo vale. É por isso que cada habitante da Terra tem ainda um décimo carácter, que é nem mais nem menos do que a imaginação passiva de espaços não preenchidos. Permite ao indivíduo tudo, menos uma coisa: levar a sério o que fazem os seus outros caracteres, pelo menos nove, e o que lhes acontece. Por outras palavras: tudo menos aquilo que poderia preenchê-lo e realizá-lo. Esse espaço, reconhecidamente difícil de descrever, tem uma cor e uma forma diferentes em Itália ou em Inglaterra, porque aquilo que dele se destaca tem cor e forma diferentes, e é nos dois lugares o mesmo espaço: um espaço vazio e invisível em que a realidade se configura como uma pequena cidade de brincar que a imaginação da criança tivesse abandonado.


Na medida em que isto se pode tornar visível a todos, foi o que se passou na Cacânia; por isso a Cacânia, sem que o mundo ainda o soubesse, era o mais avançado de todos os Estados, o Estado que, por assim dizer, já mal podia acompanhar o seu próprio passo; nele, era-se negativamente livre, sempre com a consciência das razões insuficientes da existência própria e tocado pela grande visão do que não acontecera, ou do que não acontecera irrevogavelmente, banhado pelo bafo dos oceanos de onde saiu a humanidade.
Aconteceu, es ist passiert, dizia-se, quando noutros lugares toda a gente sentia que acontecera algo de extraordinário. Era uma maneira de dizer muito peculiar, única em alemão e nas outras línguas, uma expressão em cujo sopro os factos e os golpes do destino se tornavam tão leves como a penugem e os pensamentos. Apesar de tudo o que se possa dizer em contrário, talvez a Cacânia fosse, afinal, um país para os génios. E provavelmente foi isso que ditou o seu fim.

(Robert Musil, O Homem sem Qualidades, Livro Primeiro, Primeira Parte, capítulo 8)

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Tenho estado variadíssimas vezes em Viena, mas da última, há cerca de um ano, resolvi perseguir mais de perto um dos grandes nomes da arquitectura vienense da viragem do século, Otto Wagner. Fiz um roteiro e, em vários dias, fui passando por villas e grandes edifícios residenciais, por complexos públicos como o edifício dos Correios, por igrejas como a de Steinhof. De permeio, atravessavam-se diante do olhar outros lugares e construções da época – ruas, pontes, edifícios, cafés, equipamentos – que permitem reconstituir todo o brilho e todo o vazio da Viena de 1900. Na Viena histórica, do Ring a estes percursos da Arte Nova e do nascimento do design com as Wiener Werkstätte, respira-se a grande vida da «Cacânia», o país imperial imaginário e bem real que Musil retrata com ironia em O Homem sem Qualidades.


E foi precisamente a tradução do primeiro grande volume deste torso gigantesco, que estou em vias de concluir, que me levou a revisitar algumas fotografias dessa última viagem. A relação com essa «grande época», como lhe chamou Karl Kraus em 1914, imediatamente anterior à Primeira Grande Guerra, é ambivalente e controversa, mais para os próprios austríacos do que para quem, de fora, visita estes lugares evocativos de um fausto imperial e de uma segurança burguesa como a que Stefan Zweig descreve na sua autobiografia (O Mundo de Ontem, saído em 2005 na Assírio & Alvim, numa excelente tradução de Gabriela Fragoso). Para lá de todas as controvérsias, e da consciência de que existem outras Vienas (e estou a lembrar-me da Viena dos bairros judeus, da «Viena Vermelha», operária, e dos seus edifícios de tijolo, da Viena absorvida hoje pela emigração, particularmente do Leste europeu que já foi Império Austro-Húngaro), não há dúvida de que nos lugares emblemáticos da Viena de há cem anos – cafés e museus, edifícios burgueses e monumentos, parques e lojas revivalistas em que a Arte Nova tem lugar de honra – se respira cultura, bom gosto e história como em poucas outras capitais europeias.


Em 1998, num programa Ritornello sobre a Viena de 1900 («Viena, século sem fim», no âmbito do 1º Festival Internacional de Músicas Contemporâneas de Lisboa), com Jorge Rodrigues e Paulo Ferreira de Castro, então director do São Carlos, achava eu que 1900 representa um corte mítico, mas arbitrário, já que o século XX, ou o que de melhor nele apareceu com os movimentos modernos, está todo já no século XIX (no relativismo filosófico e no cepticismo linguístico, no Sionismo e na psicanálise, em parte na pintura e na poesia). E perguntava-me de que modo a insustentável e proverbialmente leviana leveza da atmosfera vienense se pôde e pode conciliar com as revoluções estéticas decisivas que por ela passaram desde então. A jornalista e amiga de Kafka Milena Jesenská, que em 1919 caracterizava os vienenses como «materialistas bem dispostos e optimistas levianos», apercebe-se, com outros, desta ambiguidade de fundo, dizendo de Viena que é um lugar sempre em perigo, mas sem o mínimo sentido do trágico, uma cidade que não estimula o pensamento, lugar sem ideias, que aqui se dissipam como sombras…


E no entanto, Viena, particularmente em 1900, é um fervilhar de ideias, de formas novas de arte, um mundo de muitos mundos, em que nascem realizações, obras, descobertas, geniais e seminais. Talvez nunca tanto tenha nascido num só lugar para durar tanto tempo. Viena era já em 1900 um alfobre «pós-moderno» avant la lettre. Nunca foi «moderna» como outras capitais europeias dos Modernismos, foi até refractária ao seu espírito, mas com espíritos da grandeza de Hermann Broch ou de Karl Kraus, de Musil ou de Wittgenstein, de Freud ou de Mahler. A Viena da viragem do século, centro da macrocefalia de um império a abrir brechas é a mais grandiosa manifestação concentrada dos valores da era «pós-nietzschiana»: a fragmentação e o caos, o relativismo e o «decadentismo activo», num misto de provincianismo e cosmopolitismo em que coabitavam o homem racional e liberal com o novo homem psicológico, o sonho, a sensibilidade e o »nervosismo moderno» do Simbolismo com a revolução e o anti-semitismo. Viena era uma cidade amoral e aristocrática, interiorista e narcisista, mas também o lugar da crise do liberalismo e dos valores à deriva, e da consciência crítica implacável desse incomparável «apocalipse alegre», como lhe chamaria Hermann Broch. O maior painel de contrastes do seu tempo, em que se chocavam (e chocam) a valsa e o culto da morte, o clericalismo e as vanguardas, a arte e a anti-arte mais violenta, hoje associada a nomes como Thomas Bernhard e Elfriede Jelinek. Tudo isso se funde, na cultura austríaca e no seu emblema maior, Viena, numa palavra: o amoródio a esse lugar e ao país que representa.


De tudo isso eu tinha e tenho consciência de cada vez que deambulo pelo centro histórico e pelos lugares de 1900, em particular os cafés, microcosmos de todas estas contradições – o Central de Peter Altenberg e o Griensteidl da «Jovem Viena», o Museum de Musil e o Landtmann das leituras públicas de Kraus, o Sterz e o Havelka das gerações mais recentes, sem esquecer o Bräunerhof, onde um dia conversei com Bernhard à sua mesa habitual… E de cada vez que aí volto sinto, curiosamente, que estou mais em casa – numa casa chamada Europa, e no seu requintado salão maior, a que alguns chamaram vagamente Mitteleuropa, e onde vejo simplesmente o espelho da genialidade criativa da grande burguesia (judia) europeia de há um século. Um pequeno périplo por alguns desses lugares pode seguir-se aqui.
Quem quiser prolongar a viagem, pode fazê-lo, em português, por exemplo com os seguintes livros:
- Claudio Magris, Danúbio (Cap.4: Café Central). Dom Quixote, 1992
- L. Scheidl (organ.), Histórias com Tempo e Lugar. Prosa de autores austríacos 1900-1938. Publicações Europa-América, s.d.
- Karl Kraus, O Apocalipse Estável. Aforismos. Apáginastantas, 1987
- Ilse Pollack, Mundos de Fronteira. Lugares e figuras da Europa Central (Cap. IV: Teatro do olvido e da eternidade - Carta da viscondessa Amélia de Sousa Carvalho a um amigo do Porto). Livros Cotovia, 2000

(continua)

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13 agosto, 2007


DO NOSSO TEMPO

Há alguns anos tentei fazer, numa sessão pública da Culturgest, uma síntese dos temas dominantes de um dos meus livros de ensaios, A Espiral Vertiginosa - Ensaios sobre a cultura contemporânea. O título, pedi-o de empréstimo ao grande poema do desencanto de Vasco Graça Moura, intitulado uma carta no inverno. Os ensaios são reflexões sobre este tempo, o «nosso tempo», e isso significa para mim o tempo que me foi dado viver, acrescentado de alguma memória histórica do que veio depois da segunda grande guerra e operou a grande mudança, de uma modernidade cultural que durou um século para uma pós-modernidade em que ainda nos encontramos. No fundo, as reflexões desse livro elaboram matéria que tanto pode centrar-se sobre o momento presente (e o lugar, ou não-lugar, dos clássicos, da contracultura ou da dor nele), como alargar-se a problemáticas que ocuparam o período a que o historiador inglês Hobsbawm chamou «the short century», entre o fim dos impérios europeus que vinham do século XIX (com a Primeira Guerra) e o fim do império soviético, com a queda do Muro de Berlim.
Nem sempre, ao falarmos impensadamehnte do «nosso tempo», estamos a falar dda mesma coisa, nem necessariamente em termos de «época», nem isso me interessa agora. Sei, isso sim, que a «espiral» de que fala o título é a da cegueira feliz e da imparável ascensão do optimismo irresponsável deste apocalipse alegre em que vamos vivendo há décadas: tudo se dilui e é absorvido numa vertigem da velocidade e da superficialidade, em que as contradições são apagadas ou neutralizadas pelos media, em que o pensamento foi deixando de ter lugar público, porque foi substituído pelo espectáculo, em que a dor e a morte são anestesiadas, dessacralizadas ou ocultadas, no ponto extremo de um processo de secularização e «profanização» que tem as suas raízes mais distantes na primeira fase da Idade Moderna, entre os séculos XV e XVIII, mas que a dialéctica negativa das Luzes veio abastardar e perverter.


Eduardo Prado Coelho perguntava-me então por que razão há veemência e alguma cólera nestas análises. A resposta é simples: porque elas tomaram consciência de que vivo numa cultura (do quotidiano e intelectual e estética) que me choca e não me permite a «qualidade de vida» (não confundir com direito ao consumo) a que tenho direito e que tenho o dever de exigir; que caiu na mais rasa banalização de tudo e perdeu o sentido estético do mundo, porque é uma cultura em que vingam os feios, porcos e maus, vivendo na alegre inconsciência de si, porque se perdeu o sentido dos valores mais (humanamente) elementares e essenciais, porque é uma cultura do simulacro pobre, porque oferece uma estúpida resistência ao pensar, porque pratica uma clamorosa e crescente dessolidarização do Lebenswelt e das relações humanas. E tudo isto é bastante para criar (em mim e muitos outros) um enorme mal-estar nesta civilização americanizada (não esquecendo que a América é um genuíno produto da Europa!).
O que procuro é apenas ler indícios e fazer diagnósticos, olhando também para trás: o meu berço e o meu horizonte é o século XX, um século heróico e trágico, tragicamente heróico, século de extremos, de programas radicais e totalitarismos declarados, que começou por ser o tempo de uma cultura de rotura (em profundidade), para se tornar uma anticultura do inconsequentemente radical (em extensão).
O balanço final, que recupero de um caderno de 2002, não é desesperado nem desencantado: talvez, hoje mais do que então, indiferente e pragmático. Com um sentido clarividente da actualidade, e com um único fim em vista: procurar entender o que acontece, olhando para o que aconteceu, para, sem profetismos nem futurologia, perceber minimamente para onde vamos.

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12 agosto, 2007


O trabalho da tradução sempre foi visto, desde S. Jerónimo, à luz de imagens e metáforas com as quais se procura destacar algum aspecto, sempre parcial, deste fazer complexo. Duas delas, de que tratei em tempos, são as metáforas dupla da ponte/torre e das redes/rizomas. Extraio desse ensaio(de 2001) uma passagem sobre o arquétipo da torre:


[...]
Qualquer dos exemplos contém um sentido (metafórico) que, em última análise, remete para uma situação que traz marcas de uma duplicidade, de uma ambivalência, de uma relação tensa, e mesmo conflitual (de cisão-atracção), entre um
Idem e um alter, entre um Mesmo e um Outro, entre um original e a rede possível das suas traduções. Mas não é tanto dessa relação de homologia ou de heteronomia, resultante da diversidade das línguas, fruto da maldição de Babel, que importa falar aqui.

A construção da Torre de Babel em iluminuras medievais

A construção da mítica torre, aliás, não terá tido apenas efeitos nefastos. (Estas palavras têm hoje, depois dos acontecimentos do 11 de Setembro de 2001, um eco trágico e irónico que transforma as torres, torres-poço, quer em símbolo de uma globalização hegemónica e infeliz e de um universo monolítico e cego, quer também numa espectacular encenação pós-moderna do destino de Babel). Sendo um estigma, Babel foi uma bênção. Imagine-se o que seria o mundo se nos pudéssemos entender sempre em tudo, sem os pequenos e grandes desvios, as ambiguidades, a opacidade, os qui pro quo, os mal-entendidos produtivos que fazem da linguagem e da comunicação (e da tradução intra- e interlinguística) um processo vivo e nunca acabado! Estaria aberto o caminho a todos os megalómanos deste mundo (sim, porque alguém deve ter tido a ideia de construir aquela torre!), que não teriam sequer de se preocupar com o obstáculo da confusão de linguagens. Talvez até a diversidade das línguas não venha de Babel, já que o que se passou de facto (aquilo que a narrativa mítica parece querer transmitir) não parece ter sido a diferenciação das línguas, que terá vindo depois, na fase que poderíamos dizer já da história empírica do homem, que é também o fim do monoteísmo original (com a pluralidade das línguas veio a idolatria, como lembra Henri Meschonnic). O que aí aconteceu poderá ter sido antes a confusão do entendimento, o nascimento da polissemia (o «embabelar» das linguagens, como sugerem a tradução e o comentário, por Meschonnic, deste episódio do Antigo Testamento). O nosso João de Barros parece ter esta intuição em 1540, no Diálogo em Louvor da Nossa Linguagem, e também a de que o Pentecostes representa o reverso de Babel, a epifania em que, por obra e graça do Espírito Santo, os falantes das mais desvairadas línguas – que aí, sim, já existiam separadas – entendem naturalmente o que se diz na outra, única e originária (o hebraico, «a linguagem primeira de Adam», diz João de Barros): é o milagre da «tradução automática», a que o computador ainda não chegou. Mas ouçamos como o gramático português interpreta Babel: "Quero dizer que, quando Deos, naquela soberba obra, confundiu a linguagem, nam foi inventarem-se em um instante setenta e um vocábulos diferentes em voz, que todos sinificassem esta cousa, pedra: mas confundiu o intendimento a todos pera por este nome, homem, uns entenderem pedra, outros as diferentes cousas que se, naquela edificaçam, tratavam. E este termo, confusam, nenhuma outra cousa quer dizer senam tomar uma cousa por outra. E assi ficaram todos com toda a linguagem em vocábulos, e com parte dos sinificados próprios."
O mito de Babel é sobretudo interessante na sua ideia original – construir uma torre que ligasse a terra e o céu –, ideia que espelha também o desejo de ligação com o outro (neste caso, o absolutamente Outro). A Torre transforma-se, assim, em
Ponte, Caminho e Porta. [...]

Babel por: Pieter Bruegel, o Velho (1563) e Lucas van Valckenborch (1595)

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03 agosto, 2007


UMA INQUIETA CERTEZA...(12)

A NATUREZA E A PAISAGEM
A POESIA E A FOTOGRAFIA

(Um tema impossível, com fragmentos transfigurados em fundo)


Herberto Helder: uma natureza total


«Todo o texto conduz ao exemplo do mundo, narra a parábola do regresso e apresenta a cerimónia da paisagem» (Herberto Helder, Apresentação do Rosto): ou seja, o poema é uma cosmogonia, em busca da unidade esquecida, da solidariedade cósmica da Vida. Nele está toda a Natureza unida nos seus opostos (Céu-Terra, Homem-Mulher, Pequeno-Grande, Criança- Mãe...). É um trabalho alquímico com os elementos, para a realização da Grande Obra; nada se distingue de nada neste gesto mítico, ritual da hierogamia primordial, quando Céu e Terra se unem e nasce o Cosmos... (vd. M. Lúcia dal Farra). Por isso: a figura/ideia que na poesia de H.H. melhor dá a Natureza é a da metamorfose, do devir de tudo em tudo, num processo de fornicação desenfreada dos elementos à escala cósmica! Poesia elemental por excelência (como a de Ramos Rosa, mas aqui mais violenta, na metáfora da Poesia como fogo que tudo abrasa e transmuta). A metamorfose: fundo último desta poesia que quer ser, numa tradição ainda mais romântica do que surrealista, a última ciência (saber último) do mundo (da natureza na sua dimensão total). Como o próprio Herberto diz, em Apresentação do Rosto: a natureza é exemplo, o poema é parábola e celebração dela. Não o vazadouro (obsceno) das nossas emoções mesquinhas, nem o espelho (triste e mentiroso) das nossas misérias e paixões (isso passa também por romantismo, mas quase sempre do pior). A natureza pode, no entanto, na poesia e numa linguagem não corrompida («a pão e água»), ser um guia e um programa.


Como também escreveu Octavio Paz em livro não muito conhecido, com o sugestivo e ambivalente título castelhano de El mono gramatico: «Sim, sei bem que a natureza — ou o que nós assim designamos: este conjunto de objectos e de funções que nos envolve e que, alternadamente, nos engendra e nos devora — deixou de ser nossa cúmplice, e também nossa confidente. Não é lícito projectarmos os nossos sentimentos sobre as coisas, nem atribuir-lhes as nossas sensações e paixões. Não seria preferível ver nelas um guia, uma doutrina de vida? Aprender a arte da imobilidade no meio da agitação do turbilhão, aprender a ficar tranquilos, a tornarmo-nos transparentes como esta luz fixa por entre a folhagem frenética: isso poderia ser um programa de vida.»



Última Ciência

1.

(...)
Criança à beira do ar. Caminha pelas cores prodigiosas, iluminações
da água, esmeraldas

exasperadas, as púrpuras. E entra na clareira. Passa,

toda. Está coberta de pólen.
A convulsão de uma jóia quando roda

abruptamente acesa. A cicatriz no tórax é uma

arborescência

a sangue e ouro. Nela se embebedam os enxames das imagens

estelares, vermelhas,
extremas.
Os favos no escuro enlouquecem a infância.
Nas suas casas profundas Deus aguarda que se demosntre
o teorema perfeito

e terrível.

(...)


Cada sítio tem um mapa de luas. Há uma criança radial vista
pelas paisagens, crispada através
dos diamantes.
Em cada sítio há uma árvore de diamantes, uma constelação
na fornalha. Abaixa-te,

vara alta, que essa criança de cabeça habituada aos meteoros

delira, põe-te os dedos,

deita um braço de fora, serve

de estrela. Por acto

de sumptuosidade. Há uma palavra com uma rosa

reluzente. Poros frios, nós de bronze,

a madeira está cheia

de respiração. A pedra arrancada ao mundo está cheia

de respiracão. E as luas secam pedra

e madeira. É uma imagem da atenção de tudo.

Quando alguém escreve, arde o papel por onde

passa a imagem. E na criança assim escrita dentro

de um saco radioso, a noite contempla-se

a si própria. Trabalha-se nas partes

doces e ocultas

da morte, engrandecendo a mão voltaica

que a escreve em nome - essa última ciência:

unânime,
fundamental,

áurea.

(...)




4.

(...)
A arte íngreme que pratico escondido no sono pratica-se
em si mesma. A morte serve-a.

Serve-se dela. Arte da melancolia e do instinto.

Quando agarro a cara, a rotação do mundo faz rodar
a olaria astronómica: uma cara

chamejante, múltipla, luxuosa.

Deus olha-a.

E a arte alta do sono fica pesada:

— Mel, o mel em brasa, a substância

potente, elementar, ardente, obscura, doce de uma doçura

fortíssima,
o mel,

arrebatada. Uma arte inextricável que,
pela doçura, enche as bolsas cruas
da carne, embriaga, queima tudo, mata,

mata.
(...)


(Última Ciência, Assírio & Alvim 1988)


FINIS

02 agosto, 2007

UMA INQUIETA CERTEZA...(11)

A NATUREZA E A PAISAGEM
A POESIA E A FOTOGRAFIA

(Um tema impossível, com mar, Lua e azul em fundo)


Nuno Júdice: a segunda natureza da poesia

A obra de arte, como dizia Adorno, é hoje o lugar para onde emigrou a Natureza. O poema é, para Nuno Júdice, também esse lugar, «fragmento de um absoluto», «desperdício da antiga perfeição» (O Movimento do Mundo, 7): por isso ele o tenta definir tantas vezes, em tantos textos intitulados «Poética» ou «Arte poética». A sua poética, onde a natureza está muito presente, é uma poética do movimento do mundo, de uma visão animista, e quase promíscua, da contaminação de tudo por tudo (contra o «modelo grego»).
Por outro lado, Nuno Júdice inscreve-se numa genealogia romântica de teor órfico, que se manifesta num forte ímpeto de escrita e num exercício de frequentes insistências e reenvios — mecanismo romântico de uma poética que tende para a expressão da eterna transformação do real/da natureza em matéria mais ou menos volátil. É visível na sua poesia uma vontade transbordante de dizer o mundo, uma ânsia que contamina o verso.
Mas há um «cabo que separa do mundo o homem que só tem consigo a poesia»; e não há pontes fáceis entre o mundo/a natureza e a arte: «o mar não existe, aqui» (só no sonho abstracto dele). Arte e natureza não se encontram, mas a arte já não inveja a natureza: esta des-sacralizou-se, banalizou-se, é possível trazê-la à obra (vd. «Receita para fazer o azul»), a natureza está ao nosso alcance, o céu já não é o limite. Nisto reside a dimensão discretamente irónica de uma poesia em que a natureza tem o lugar — secundário — que pode ter, porque no mundo de hoje, e há muito tempo, o centro está ocupado pelo poema ou por outras formas de segunda natureza, porque «o ritmo natural não se confunde» com o nosso, a não ser no plano de uma «lei da morte» («Acerca da natureza»).


Poema


Quero de volta o mar, esse mar

escuro quando o sangue do poente

o mancha; e branco com as

indecisões de setembro.

Mas o mar não existe, aqui,

onde o papel pousado na mesa

repeliu a maré de uma
última inspiração;


nem o rumor da maresia

se confunde com a

hesitação obscura de uma
luz tardia.

O mar, porém, entrou por

aqui dentro; inundação

de que restam as algas

abstractas do sonho.


Poema


Ângulos, portas, incidências
que se tornam
obscuras quando o olhar

as deixa. Porém, não encontro

o ponto em que

a perspectiva se cruza com
o quadro da janela. Um
vidro que

reflecte o interior
corrompe a visão. Mas apago

a luz; e logo

o horizonte se revela

na linha exacta

dos seus limites.

© Vina Santos

Receita para fazer o azul


Se quiseres fazer azul,

pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,

que possas levar ao lume do horizonte;

depois mexe o azul com um resto de vermelho

da madrugada, até que ele se desfaça;

despeja tudo num bacio bem limpo,

para que nada reste das impurezas da tarde.

Por fim, peneira um resto de oiro da areia

do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.

Se quiseres, para que as cores se não desprendam

com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez

ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre

na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor

até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.

Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que

possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz — eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé — e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.


(Meditação Sobre Ruínas, Quetzal 1994)


Poética


Evitem o modelo grego: a perfeição das linhas,
a limpidez do mármore, o azul do mar. No fundo, é

onde o corpo se deixa contaminar pelas cores

baças do amor que a luz nasce, como um caule

de inverno; e é por dentro do fruto que a chuva
apodrece que a vida insiste.


(O Movimento do Mundo, Quetzal 1996)


Acerca da natureza

O mundo natural não traz surpresas para
quem vive no campo. As árvores dão flor

na primavera, dão frutos no verão, despem-

-se no inverno. De facto, as estações

regulam o ritmo das coisas; e os próprios

pássaros, ao verem o céu cobrir-se com
as primeiras nuvens do outono, partem

para o sul, mesmo que nenhum de nós

saiba ao certo para onde vão. De cima,
porém, eles vêem mais do que nós: têm

o horizonte para além daquilo que o olhar
humano avista, e podem escolher o destino
com mais tempo, até porque confiam nele,
ao contrário do homem. Este, de facto, não

inclui as certezas divinas no campo do
natural. Entrega-se ao que lhe é presente,

embora a passagem súbita de um gato preto,

o grito nocturno da coruja, ou o canto
da mulher que não se vê, o perturbem, por
instantes. Então, revê as suas convicções,
hesita, poderá até ficar em casa, nesse dia,
e aproveitar para reflectir, arrumar papéis,

ler talvez um poema. Nada, porém, que o

impeça de retomar o curso normal das coisas,

na manhã seguinte. O ritmo natural não
se confunde com o seu ritmo; até um dia,

em que ambos se cruzem, e a lei da morte

imponha o seu prazo, como sempre esteve previsto.


(A Fonte da Vida, Quetzal 1997)