UMA INQUIETA CERTEZA...(12)
A NATUREZA E A PAISAGEM
A POESIA E A FOTOGRAFIA
(Um tema impossível, com fragmentos transfigurados em fundo)
A NATUREZA E A PAISAGEM
A POESIA E A FOTOGRAFIA
(Um tema impossível, com fragmentos transfigurados em fundo)
Herberto Helder: uma natureza total
«Todo o texto conduz ao exemplo do mundo, narra a parábola do regresso e apresenta a cerimónia da paisagem» (Herberto Helder, Apresentação do Rosto): ou seja, o poema é uma cosmogonia, em busca da unidade esquecida, da solidariedade cósmica da Vida. Nele está toda a Natureza unida nos seus opostos (Céu-Terra, Homem-Mulher, Pequeno-Grande, Criança- Mãe...). É um trabalho alquímico com os elementos, para a realização da Grande Obra; nada se distingue de nada neste gesto mítico, ritual da hierogamia primordial, quando Céu e Terra se unem e nasce o Cosmos... (vd. M. Lúcia dal Farra). Por isso: a figura/ideia que na poesia de H.H. melhor dá a Natureza é a da metamorfose, do devir de tudo em tudo, num processo de fornicação desenfreada dos elementos à escala cósmica! Poesia elemental por excelência (como a de Ramos Rosa, mas aqui mais violenta, na metáfora da Poesia como fogo que tudo abrasa e transmuta). A metamorfose: fundo último desta poesia que quer ser, numa tradição ainda mais romântica do que surrealista, a última ciência (saber último) do mundo (da natureza na sua dimensão total). Como o próprio Herberto diz, em Apresentação do Rosto: a natureza é exemplo, o poema é parábola e celebração dela. Não o vazadouro (obsceno) das nossas emoções mesquinhas, nem o espelho (triste e mentiroso) das nossas misérias e paixões (isso passa também por romantismo, mas quase sempre do pior). A natureza pode, no entanto, na poesia e numa linguagem não corrompida («a pão e água»), ser um guia e um programa.
Como também escreveu Octavio Paz em livro não muito conhecido, com o sugestivo e ambivalente título castelhano de El mono gramatico: «Sim, sei bem que a natureza — ou o que nós assim designamos: este conjunto de objectos e de funções que nos envolve e que, alternadamente, nos engendra e nos devora — deixou de ser nossa cúmplice, e também nossa confidente. Não é lícito projectarmos os nossos sentimentos sobre as coisas, nem atribuir-lhes as nossas sensações e paixões. Não seria preferível ver nelas um guia, uma doutrina de vida? Aprender a arte da imobilidade no meio da agitação do turbilhão, aprender a ficar tranquilos, a tornarmo-nos transparentes como esta luz fixa por entre a folhagem frenética: isso poderia ser um programa de vida.»
Última CiênciaComo também escreveu Octavio Paz em livro não muito conhecido, com o sugestivo e ambivalente título castelhano de El mono gramatico: «Sim, sei bem que a natureza — ou o que nós assim designamos: este conjunto de objectos e de funções que nos envolve e que, alternadamente, nos engendra e nos devora — deixou de ser nossa cúmplice, e também nossa confidente. Não é lícito projectarmos os nossos sentimentos sobre as coisas, nem atribuir-lhes as nossas sensações e paixões. Não seria preferível ver nelas um guia, uma doutrina de vida? Aprender a arte da imobilidade no meio da agitação do turbilhão, aprender a ficar tranquilos, a tornarmo-nos transparentes como esta luz fixa por entre a folhagem frenética: isso poderia ser um programa de vida.»
1.
(...) Criança à beira do ar. Caminha pelas cores prodigiosas, iluminações
da água, esmeraldas
exasperadas, as púrpuras. E entra na clareira. Passa,
toda. Está coberta de pólen.
A convulsão de uma jóia quando roda
abruptamente acesa. A cicatriz no tórax é uma
arborescência
a sangue e ouro. Nela se embebedam os enxames das imagens
estelares, vermelhas,
extremas. Os favos no escuro enlouquecem a infância.
Nas suas casas profundas Deus aguarda que se demosntre
o teorema perfeito
e terrível.
(...)
Cada sítio tem um mapa de luas. Há uma criança radial vista
pelas paisagens, crispada através
dos diamantes.
Em cada sítio há uma árvore de diamantes, uma constelação
na fornalha. Abaixa-te,
vara alta, que essa criança de cabeça habituada aos meteoros
delira, põe-te os dedos,
deita um braço de fora, serve
de estrela. Por acto
de sumptuosidade. Há uma palavra com uma rosa
reluzente. Poros frios, nós de bronze,
a madeira está cheia
de respiração. A pedra arrancada ao mundo está cheia
de respiracão. E as luas secam pedra
e madeira. É uma imagem da atenção de tudo.
Quando alguém escreve, arde o papel por onde
passa a imagem. E na criança assim escrita dentro
de um saco radioso, a noite contempla-se
a si própria. Trabalha-se nas partes
doces e ocultas
da morte, engrandecendo a mão voltaica
que a escreve em nome - essa última ciência:
unânime,
fundamental,
áurea.
(...)
4.
(...)
A arte íngreme que pratico escondido no sono pratica-se
em si mesma. A morte serve-a.
Serve-se dela. Arte da melancolia e do instinto.
Quando agarro a cara, a rotação do mundo faz rodar
a olaria astronómica: uma cara
chamejante, múltipla, luxuosa.
Deus olha-a.
E a arte alta do sono fica pesada:
— Mel, o mel em brasa, a substância
potente, elementar, ardente, obscura, doce de uma doçura
fortíssima,
o mel,
arrebatada. Uma arte inextricável que,
pela doçura, enche as bolsas cruas
da carne, embriaga, queima tudo, mata,
mata.
(...)
(Última Ciência, Assírio & Alvim 1988)
FINIS
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