UMA INQUIETA CERTEZA...(11)
A NATUREZA E A PAISAGEM
A POESIA E A FOTOGRAFIA
(Um tema impossível, com mar, Lua e azul em fundo)
Nuno Júdice: a segunda natureza da poesia
A obra de arte, como dizia Adorno, é hoje o lugar para onde emigrou a Natureza. O poema é, para Nuno Júdice, também esse lugar, «fragmento de um absoluto», «desperdício da antiga perfeição» (O Movimento do Mundo, 7): por isso ele o tenta definir tantas vezes, em tantos textos intitulados «Poética» ou «Arte poética». A sua poética, onde a natureza está muito presente, é uma poética do movimento do mundo, de uma visão animista, e quase promíscua, da contaminação de tudo por tudo (contra o «modelo grego»).
Por outro lado, Nuno Júdice inscreve-se numa genealogia romântica de teor órfico, que se manifesta num forte ímpeto de escrita e num exercício de frequentes insistências e reenvios — mecanismo romântico de uma poética que tende para a expressão da eterna transformação do real/da natureza em matéria mais ou menos volátil. É visível na sua poesia uma vontade transbordante de dizer o mundo, uma ânsia que contamina o verso.
Mas há um «cabo que separa do mundo o homem que só tem consigo a poesia»; e não há pontes fáceis entre o mundo/a natureza e a arte: «o mar não existe, aqui» (só no sonho abstracto dele). Arte e natureza não se encontram, mas a arte já não inveja a natureza: esta des-sacralizou-se, banalizou-se, é possível trazê-la à obra (vd. «Receita para fazer o azul»), a natureza está ao nosso alcance, o céu já não é o limite. Nisto reside a dimensão discretamente irónica de uma poesia em que a natureza tem o lugar — secundário — que pode ter, porque no mundo de hoje, e há muito tempo, o centro está ocupado pelo poema ou por outras formas de segunda natureza, porque «o ritmo natural não se confunde» com o nosso, a não ser no plano de uma «lei da morte» («Acerca da natureza»).
Por outro lado, Nuno Júdice inscreve-se numa genealogia romântica de teor órfico, que se manifesta num forte ímpeto de escrita e num exercício de frequentes insistências e reenvios — mecanismo romântico de uma poética que tende para a expressão da eterna transformação do real/da natureza em matéria mais ou menos volátil. É visível na sua poesia uma vontade transbordante de dizer o mundo, uma ânsia que contamina o verso.
Mas há um «cabo que separa do mundo o homem que só tem consigo a poesia»; e não há pontes fáceis entre o mundo/a natureza e a arte: «o mar não existe, aqui» (só no sonho abstracto dele). Arte e natureza não se encontram, mas a arte já não inveja a natureza: esta des-sacralizou-se, banalizou-se, é possível trazê-la à obra (vd. «Receita para fazer o azul»), a natureza está ao nosso alcance, o céu já não é o limite. Nisto reside a dimensão discretamente irónica de uma poesia em que a natureza tem o lugar — secundário — que pode ter, porque no mundo de hoje, e há muito tempo, o centro está ocupado pelo poema ou por outras formas de segunda natureza, porque «o ritmo natural não se confunde» com o nosso, a não ser no plano de uma «lei da morte» («Acerca da natureza»).
Poema
Quero de volta o mar, esse mar
escuro quando o sangue do poente
o mancha; e branco com as
indecisões de setembro.
Mas o mar não existe, aqui,
onde o papel pousado na mesa
repeliu a maré de uma
última inspiração;
nem o rumor da maresia
se confunde com a
hesitação obscura de uma
luz tardia.
O mar, porém, entrou por
aqui dentro; inundação
de que restam as algas
abstractas do sonho.
Poema
Ângulos, portas, incidências
que se tornam
obscuras quando o olhar
as deixa. Porém, não encontro
o ponto em que
a perspectiva se cruza com
o quadro da janela. Um
vidro que
reflecte o interior
corrompe a visão. Mas apago
a luz; e logo
o horizonte se revela
na linha exacta
dos seus limites.
Receita para fazer o azul
Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de oiro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz — eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé — e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.
(Meditação Sobre Ruínas, Quetzal 1994)
Poética
Evitem o modelo grego: a perfeição das linhas,
a limpidez do mármore, o azul do mar. No fundo, é
onde o corpo se deixa contaminar pelas cores
baças do amor que a luz nasce, como um caule
de inverno; e é por dentro do fruto que a chuva
apodrece que a vida insiste.
(O Movimento do Mundo, Quetzal 1996)
Acerca da natureza
O mundo natural não traz surpresas para
quem vive no campo. As árvores dão flor
na primavera, dão frutos no verão, despem-
-se no inverno. De facto, as estações
regulam o ritmo das coisas; e os próprios
pássaros, ao verem o céu cobrir-se com
as primeiras nuvens do outono, partem
para o sul, mesmo que nenhum de nós
saiba ao certo para onde vão. De cima,
porém, eles vêem mais do que nós: têm
o horizonte para além daquilo que o olhar
humano avista, e podem escolher o destino
com mais tempo, até porque confiam nele,
ao contrário do homem. Este, de facto, não
inclui as certezas divinas no campo do
natural. Entrega-se ao que lhe é presente,
embora a passagem súbita de um gato preto,
o grito nocturno da coruja, ou o canto
da mulher que não se vê, o perturbem, por
instantes. Então, revê as suas convicções,
hesita, poderá até ficar em casa, nesse dia,
e aproveitar para reflectir, arrumar papéis,
ler talvez um poema. Nada, porém, que o
impeça de retomar o curso normal das coisas,
na manhã seguinte. O ritmo natural não
se confunde com o seu ritmo; até um dia,
em que ambos se cruzem, e a lei da morte
imponha o seu prazo, como sempre esteve previsto.
(A Fonte da Vida, Quetzal 1997)
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