26 fevereiro, 2007



HÁ UMA CONTRACULTURA?

De um dos cadernos de 2001: uma conferência-debate, no âmbito da «Porto 2001», sobre «Cultura, contracultura, anticultura». Uma das teses de que parti foi a de que, no momento actual (e diferentemente da época áurea dos Modernismos e do seu ímpeto contracultural e mesmo anticultural, informado pelo niilismo), a disseminação dos núcleos de contracultura leva a que tudo seja, ou possa ser, cultura, e tudo queira ser contracultura:


... A nossa cultura dita pós-moderna – que se apresenta apenas como 'situação' cultural, já que não é possível falar de uma 'condição' cultural do nosso tempo –, pode, apesar de tudo, ser referida a um paradoxo e a uma ambição que lhe dão rosto. O paradoxo: tudo quer ser centro, sendo, ao mesmo tempo, margem, radicalismo, protesto, 'diferença', extra-vagância. Isto deve-se provavelmente ao facto de o centro, hoje, ser o de um universo imaterial como o dos 'media', em especial a televisão, cuja lógica é a de ir sempre mais longe e de não cair numa normalidade mais ou menos morna. Com isto estamos já na ambição maior da nossa cultura, que é precisamente a de uma radicalização a qualquer preço. O Modernismo foi, neste aspecto, uma cultura da rotura em profundidade, que virou do avesso os paradigmas realista e positivista; o pós-moderno é uma cultura do radical em extensão, e também de uma convivência de padrões culturais (pré-modernos, modernos e pós-modernos), numa promiscuidade sem complexos. [...] O que hoje se radicaliza é qualquer coisa que o Modernismo tinha rasurado – o Eu, o sujeito · e que agora regressa para se expor sem limites. O resultado é um enorme tédio, porque não se pode ir mais longe do que o corpo, e porque a banalização do gesto pretensamentge extremo nos deixa cada vez mais indiferentes. Perante uma situação em que tudo quer ser cada vez mais ex-cêntrico e ao mesmo tempo ocupar o centro, perguntamo-nos: que lugar resta para a cultura (da substância, da ideia)? Um lugar precário, já que a nossa cultura do espectáculo, da moda à política e ao mundo literário, não é crítica, mas performativa. A nossa contemporaneidade não tem um projecto, tem apenas 'estaleiros', é uma 'cultura de cidadelas', que vive com a crise e a cultiva. Uma cultura 'débil', sem frentes, apenas com ofertas concorrentes.



O ensaio completo pode ler-se no meu livro A Espiral Vertiginosa. Ensaios sobre a cultura contempoânea (Livros Cotovia, 2001)

22 fevereiro, 2007


ANJOS NOVOS: DO ACTUAL E DO EFÉMERO

Paul Klee, Angelus Novus (1920)

No texto programático que anuncia a revista Angelus Novus (que nunca chegou a sair), Walter Benjamin reflecte, como fará por mais de uma vez em escritos posteriores, até ao derradeiro, as Teses sobre o conceito da História,sobre a noção de «actualidade».
Nesse texto, escrito na Suíça em 1921, a primeira definição do «actual» liga-se já ao que se reafirmará em todo o projecto do livro sobre Baudelaire e as Passagens, e a Tese II deixa claro, aqui em termos indisfarçadamente messiânicos. Dessa definição podemos extrair a ideia (sobre a qual o momento actual faria bem em reflectir) de que é absurda qualquer noção de actualidade que não integre uma profunda consciência da historicidade inerente a todo o presente – cuja marca mais inequívoca é, paradoxalmente, a sua efemeridade. O que é actual não é, então, o novo em si (muito menos a novidade), mas a «origem» de onde saltou o que nos toca no presente, e aquilo que, nesse presente, suscitou o seu aparecimento (na lenda a que me referirei adiante, isso é «Deus», o que há de menos actual e efémero, o substrato imóvel e imutável do tempo).
O texto programático da revista – cujo título remete para o pequeno quadro de Klee adquirido por Benjamin nesse ano de 1921, o Anjo Novo que servirá de ominosa alegoria do «vendaval do progresso» na Tese IX, a do Anjo da História), termina também com o motivo da «verdadeira actualidade», e com uma elucidativa lenda da tradição talmúdica, que exprime exemplarmente a relação entre o actual e o efémero. E mostra como o presente é um ínfimo ponto na linha do tempo, um não-tempo onde se chocam, iluminam e dissolvem passado e futuro. O actual, para Benjamin, é aquilo que vem de trás, explode (de significação) no presente e se dissipa, disponível para novos futuros. A lenda talmúdica di-lo, na imagem das legiões de anjos novos que, imagino, desfilarão ad aeternum perante Deus, sempre os mesmos e sempre outros:

«... Tocamos no lado efémero desta revista, de que ela tem consciência desde a primeira hora. É este o preço justo exigido pela sua busca da verdadeira actualidade. Há mesmo uma lenda talmúdica segundo a qual os anjos – a cada momento sempre novos, em legiões infinitas – são criados para, depois de terem entoado os seus hinos na presença de Deus, deixarem de existir e se dissolverem no nada.»

A FLOR



Que faz o olhar de um pensador crítico, «sério» e radical como o de Walter Benjamin – que estamos mais acostumados a ver pousar sobre livros e apontamentos – quando interroga uma florzinha colhida no parque da abadia de Pontigny em 1938? A fotógrafa, Germaine Krull, fixou-o em plena experiência aurática, uma forma de relação com o mundo cuja perda Benjamin constata nas sociedades contemporâneas dominadas pela informação, nestes finais da década de trinta, em que se ocupa quase exclusivamente do grande projecto inacabado das «Passagens de Paris».
Benjamin está, nesta fotografia, numa pausa do pensar. Ou praticando uma forma-outra do pensar, pensando com o olhar. Isto terá provavelmente acontecido com outros, suas almas gémeas no culto do delicado e do fracasso – Pessoa, Kafka, Robert Walser. Ou também, imagino, nas selvas da Bolívia, com essa outra figura radical e heterodoxa que agora se cruza em mim com a de Benjamin: Che Guevara, de quem o poeta alemão Hans Magnus Enzensberger (no livro Mausoléu. A história do progresso em trinta e sete baladas, Cotovia, 2004), escreve:

... Um rapazinho tímido,
alérgico, muitas vezes quase a sufocar.
Em luta com o seu corpo,
fumando charutos, fez-se homem
(o que isso seja, não é história para aqui).
[...]
Por toda a parte bufos,
intrigas que nunca conseguiu entender.
Um eterno estrangeiro.
[...]
No fundo,
uma mimosa: a sua leitura preferida eram poemas
(sabia Baudelaire de cor).
Fraco e delicado, os serviços secretos chamavam-lhe um figo...


Talvez o traço mais significativo da leitura, por Benjamin, de uma modernidade alargada, que vem de Baudelaire e chega até hoje, seja a de uma experiência do tempo que cada vez mais foi liquidando a capacidade dos sujeitos (no contexto da realidade urbana, a única no mundo globalizado, pelo menos em termos do seu espírito) de retribuir o olhar, ou de restituição do resto inassimilável que existe nas coisas que nos olham. Esse resto é o rasto ou vestígio daquilo a que Benjamin chama beleza. E a experiência que possibilita o acesso a ela na intuição é a experiência da aura.
São inúmeras as passagens, nos ensaios e fragmentos sobre Baudelaire, o cinema, a fotografia, em que esta experiência é descrita nestes termos. Eis algumas delas:

… no olhar vive a expectativa de ser correspondido por aquele a quem ele se oferece. Quando essa expectativa é correspondida (e, no pensamento, ela tanto pode aplicar-se a um olhar intencional da atenção como ao olhar puro e simples), o olhar vive plenamente a experiência da aura. «A capacidade de percepção é uma forma de atenção», escreve Novalis. Esta capacidade de percepção não é outra senão a da aura. A experiência da aura assenta, assim, na transposição de uma forma de reacção corrente na sociedade humana para a relação do mundo inerte ou da natureza com o homem. Aquele que é olhado, ou se julga olhado, levanta os olhos. Ter a experiência da aura de um fenómeno significa dotá-lo da capacidade de retribuir o olhar. (p. 142)
Um conceito de aura: «o aparecimento único de algo distante». Esta definição tem a vantagem de tornar transparente o carácter de culto do fenómeno. O essencialmente distante é o inacessível. De facto, a inacessibilidade é uma qualidade fundamental da imagem de culto). Não será preciso ressaltar que Proust conhecia muito bem o problema da aura. É notável o modo como ele por vezes o aflora com conceitos
que contêm em si a teoria da aura: «Alguns amantes de mistérios sentem-se lisonjeados pelo facto de permanecerem nas coisas vestígios dos olhares que um dia sobre elas pousaram.» (Portanto, certamente aquela capacidade de os retribuírem.)
A definição que Valéry dá da percepção no sonho, vendo-a como aurática: «Quando digo: estou a ver aquilo ali, isso não significa que tenha sido estabelecida uma equação entre mim e a coisa… Mas no sonho está presente uma equação. As coisas que eu vejo vêem-me, tal como eu as vejo a elas.» (p. 143)
Explicação dedutiva da aura como projecção de uma experiência social (entre pessoas) na natureza: o olhar é retribuído. (p. 165)

O silêncio como aura. Maeterlinck leva a limites inconcebíveis o desenvolvimento do aurático. (p. 170)

Conceito de aura aplicado a objectos da natureza. Podemos defini-la como o aparecimento único de algo distante, por muito perto que esteja. Seguir com o olhar uma cadeia de montanhas no horizonte ou um ramo de árvore que deita sobre nós a sua sombra, ao descansarmos numa tarde de Verão – isto é respirar a aura dessas montanhas, desse ramo. Pegando nesta descrição, é fácil compreender o condicionalismo
social da actual decadência da aura. Baseia-se em duas circunstâncias, que têm a ver com o significado crescente das massas na vida actual. (p. 213)


(Walter Benjamin, A Modernidade. Obras Escolhidas, vol. 3. Assírio & Alvim, 2006)

20 fevereiro, 2007



A LÍNGUA – ONTEM COMO HOJE

Em 2000, não sei já a que pretexto, fui fazer uma conferência sobre a língua portuguesa ao Luxemburgo. Escolhi o fio condutor dos poetas e daquilo que muitos deles, desde Pessoa, têm escrito sobre ela. Vejo hoje a língua por aí maltratada e desprezada, e ao folhear o caderninho desse ano constato, pelo que recolhi de poetas desde Jorge de Sena e O'Neill, que as coisas não eram muito melhores há trinta anos. Mas também que a nossa relação com a língua, contrariamente ao que se passa com outras, é pacífica e aproblemática. Como quase tudo, afinal, neste pacato rectângulo avesso a traumas.
Respigo uma passagem desse caderno, e transcrevo um impagável e revelador soneto de Natália Correia.


«A nossa condição nunca foi trágica. Os poetas portugueses, mesmo quando mergulham no fel da sátira ou no pântano do desencanto em relação ao estado da língua - que é sempre metonímia deste nosso "país relativo" (O' Neill) - esses poetas, de Alexandre O'Neill a Jorge de Sena e de Armando Silva Carvalho a Vasco Graça Moura, têm com ela, apesar de tudo, uma relação feliz ou, pelo menos, conciliadora, e não trágica. Porque é nos poetas que a língua está "a salvo", como não pode estar por exemplo num poeta apátrida e judeu como Paul Celan, por melhor que ele a conheça e por mais que a ame. Quando Graça Moura escreve "mas apesar de tudo ainda és nossa, / e crescemos em ti (...)", está, com isso, a transformar a língua, não apenas em casa ou varanda para o mundo, mas numa espécie de útero, no que de mais íntimo e próprio existe em cada um de nós: uma raiz, um fundo identitário que, no caso português, é estável e inequívoco. O mesmo não podem dizer outros. Citei o caso, esse sim trágico, de Paul Celan, judeu romeno, escrevendo em alemão, exilado em Paris e do mundo, do qual se despede cedo. Não pode imaginar-se maior contraste com os nossos poetas, cujos "lamentos" pela língua portuguesa não vão além da elegia mais ou menos conformada, jocosa e sem consequências - mesmo quando se reconhece que a língua pouco mais é que "a miséria das palavras" (Jorge de Sena), "spray linguístico" (Armando Silva Carvalho), "mater dolorosa" (Natália Correia), "refugo e cicatriz" (Vasco Graça Moura), "impostura" (Maria Gabriela Llansol), "vocábulos de sílica, aspereza" (Carlos de Oliveira) ou "animais doentes, as palavras" (A. O'Neill)».



Língua mater dolorosa [1976]

Tu, que foste do Lácio a flor do pinho
dos trovadores a leda bem-talhada
de oito séculos a cal o pão e o vinho
de Luiz Vaz a chama joalhada

tu o casulo o vaso o ventre o ninho
e que sôbolos rios pendurada
foste a harpa lunar do peregrino
tu que depois de ti não há mais nada,

eis-te bobo da corja coribântica:
a canalha apedreja-te a semântica
e os teus verbos feridos vão de maca.

Já na glote és cascalho és malho és míngua,
de brisa barco e bronze foste a língua;
língua serás ainda... mas de vaca.

(Natália Correia: Poesia Completa, 1999)

18 fevereiro, 2007


DA EXTINÇÃO

Leio o último livro – romance não é, mas é muito melhor do que se fosse – de Enrique Vila-Matas, Doutor Pasavento (acabado de sair na Teorema). E logo a primeira página deste meta-romance-ensaio me traz ao meu domínio mais próprio e mais próximo, o do ensaio, quando aí leio: «... paradoxalmente, toda essa paixão por desaparecer, todas essas tentativas, chamemos-lhe suicidas, são ao mesmo tempo tentativas de afirmação do meu eu.»

Estou em casa, em pleno paradoxo do ensaio. Mas só tenho perguntas, e não admira, porque também isto é o mais próprio do ensaio. O que é o ensaio? Vila Matas sugere-me: pode ser a biografia a retirar-se (o deus absconditus a ocultar-se) e a subjectividade pura a afirmar-se. O ensaio é o poema sem eu? A voz sem sujeito? A ideia a emergir de um corpo que quer dar a ver, e ao mesmo tempo vai apagando e reacendendo intermitentemente, numa escrita tacteante?


A poética do ensaio, que é o género por excelência do diferimento na relação com a sua matéria (que persegue e nunca alcança totalmente, e tem consciência disso – senão não seria ensaio, mas estudo ou tratado), será, como a do «romance» de Robert Walser, de W. G. Sebald ou do próprio Vila Matas, uma poética da extinção? É com certeza a poética que serve a uma forma de escrita ex-perimental, isto é, uma travessia de risco. E uma cegueira benigna que nunca deixa ver bem onde se irá dar, e que possibilita quase sempre a visão clara, e sobretudo funda, das coisas.
Blindness & insight.



O NOVO PÚBLICO

Não adianta adiantar muitas razões, quando as coisas estão à vista: o novo Público ficou igual às novas televisões e a quase todos os outros jornais. Não se arrisca manter a diferença. Vai tudo na mesma onda colorida de superfície, até que este e os outros jornais um dia se afundem. Na sua crónica do Diário de Notícias de sexta-feira, Jacinto Lucas Pires falou do novo Público sem falar do novo Público. E falou bem. Disse o que há a dizer, e que o futuro confirmará.


Os melhores «jornais de referência» de todo o mundo não cederam a estas tentações de «virança», não se transformaram em mosaicos furtacores em que pretensamente são os leitores que têm voz, mas em que se lhes pede cada vez menos massa cinzenta. Os jornais de referência permaneceram jornais, não se aPINKalharam (o Guardian inglês não é referência, nem o grande e certamente muito bem pago designer escocês que o reformou, e ao novo Público).
Leia-se Jacinto Lucas Pires aqui.

12 fevereiro, 2007

QUEM MATOU WALTER BENJAMIN?

No âmbito de um colóquio de dois dias em torno da figura de Walter Benjamin, a Culturgest mostra (no dia 24 de Fevereiro às 18 h.), pela primeira vez em Portugal, o documentário do realizador argentino David Mauas sobre a estranha morte de Benjamin em Port Bou, em Setembro de 1940. A seguir à projecção haverá uma conversa (moderada por mim, J. B.) entre o realizador e o compositor José Júlio Lopes, cuja ópera W, com libretto sobre a morte de Benjamin, estreará em Dezembro na Culturgest.



SINOPSE

PORT BOU, 1940. Em 25 de Setembro, após sete anos de exílio, Walter Benjamin atravessa os Pirenéus num esforço desesperado de escapar à ocupação de França pelos nazis. Dispõe-se a passar a fronteira clandes-tinamente e, atravessando a Espanha franquista, chegar a Lisboa, com um visto para os Estados Unidos no bolso. Uma súbita mudança na legislação espanhola impede-lhe a entrada na Península. Benjamin vê-se obrigado a pernoitar numa pensão de Port Bou, sob apertada vigilância de três polícias que têm ordens de deportá-lo para França na manhã seguinte. Nessa mesma noite, Benjamin inicia uma agonia que o levará à morte vinte e quatro horas mais tarde. A tese até hoje corrente é a de que se tratou de suicídio. Mas o relatório médico refere o caso como morte natural.
Terá o médico escondido a verdadeira causa da morte? Tinham as autoridades espanholas conhecimento da importância deste «viajante estrangeiro», judeu que foi enterrado segundo o rito católico e com o nome trocado («Dr. Benjamin Walter»)? Tratou-se realmente de suicídio?
Quién mató a Walter Benjamin... busca respostas para as duvidosas circunstâncias da morte, há mais de sessenta anos, deste ilustre refugiado, ao mesmo tempo que traça o retrato de um lugar de fronteira, encravado entre duas frentes, testemunho de evasões, perseguições e esperanças defraudadas...




O realizador explica a génese do documentário e as linhas de sentido que orientaram o seu trabalho de investigação e realização:

Cualquier estudiante universitario que haya abordado estudios de comunicación, arte, cine, traducción, lenguaje o pensamiento filosófico se topo alguna vez con el nombre de Walter Benjamin. Mi primera incursión en el pensador, como estudiante en la Academia de Artes de Jerusalén, fue a través de “La Obra de Arte en la Era de su Reproductibilidad Técnica”, texto obligado de lectura y escrito clave a la hora de intentar aprehender el destino de la realización artística —especialmente audiovisual— como resultado del progreso tecnológico.
Años más tarde, ya radicado en Barcelona, se me encarga, por parte de la Televisión Israelí, la realización de un reportaje especial con motivo del sesenta aniversario de la muerte del filósofo. Grande fue mi sorpresa —y mi ignorancia retroactiva— cuando me entero que este ilustre pensador culmina su vida a unas pocas horas de viaje de Barcelona, en una pequeña localidad hasta el momento desconocida, llamada Portbou.
Como consecuencia de la realización del reportaje, empieza a crecer en mí la necesidad de investigar más a fondo lo sucedido de cara a una posible propuesta documental. Todo lo leído hasta el momento sobre su muerte no terminaba de convencerme, y la verificación in situ , es decir, en el pueblo, dejaba mucho lugar a dudas.
Lentamente fue cristalizando una figura clara. La muerte de Walter Benjamin en Portbou, no era solo el fracaso de un personaje ilustre, sino la representación de toda una generación de refugiados que intentaban salvarse de las garras del nazismo huyendo desesperadamente a través de los Pirineos. Pero también era, el encuentro con otro avatar histórico no menos relevante: las heridas de una guerra fraticida, la ocupación, las represalias, la corrupción. Tenía ante mí la posibilidad de trazar la confluencia entre dos universos, entre dos encuentros violentos que marcaron el siglo veinte: La Segunda Guerra Mundial y la Guerra Civil española.
A medida que se iba avanzando en la investigación, era mayor el convencimiento de que era necesario apartarse del modelo histórico clásico, que intenta inútilmente aprehender lo sucedido sin detenerse en la investigación del escenario. No era suficiente con centrarse solo en Walter Benjamin, era imperativo también detenerse en el estudio de esa pequeña localidad: en sus redes de contrabando, en las relaciones entre los vecinos, en dilucidar la participación de cada uno de los distintos personajes que directa o indirectamente, se encontraron aquella fatídica noche de septiembre de 1940: el médico, el dueño de la fonda, el juez, el alcalde, el comisario, otros.
Esta manera de aproximación al tema, nos permite trazar una estrategia narrativa, a la vez universal y a la vez local. Por un lado, Walter Benjamin, y el mundo en que se encontraban estos refugiados, por el otro, Portbou, el retrato de un pueblo catalán, uno de los últimos reductos de resistencia frente al avance imparable de las tropas franquistas sublevadas. Finalmente ocupado, se convertiría en el escenario terrible del hambre, la corrupción, las represalias, los favoritismos. Un pueblo con las heridas apenas cicatrizadas, por momentos deseoso de expresarse, por otros de callar. Una especie de enigma que es necesario desentrañar. Y que, a pesar de los años, continúa siendo escenario de pasos clandestinos, inmigraciones, deportaciones y silencio deliberado.
Lo universal y lo local. El desafío de retratar una época que no se agota, llena de grietas por donde seguir mirando, o si se quiere, la fascinación por un momento histórico que visto desde la distancia de este nuevo siglo, tiene mucho de actualidad.
Y así, más de diez años después, me encuentro nuevamente con los textos benjaminianos sobre mi mesa, y algo más, la historia de un pueblo, las biografías de personas hasta el momento desconocidas para mí, pero que podrían venir en nuestra ayuda a la hora de descifrar el enigma, ya no del filósofo, si no de Benjamin hombre, solitario, refugiado.

David Mauas


Mais informação e um trailer do filme aqui.
BENJAMIN E NÓS: A CIDADE – O OLHAR – A MEMÓRIA


Na Culturgest, 23 de Fevereiro 2007, às 18 horas:

Debate em torno da Modernidade estética e da actualidade do pensamento de Walter Benjamin sobre a cidade, com a participação de:
Bernd Witte (Universidade de Düsseldorf, que falará em inglês) , Maria Filomena Molder, Manuel Gusmão e João Barrento.
A pretexto da saída do terceiro volume (A Modernidade), das «Obras Escolhidas», um grande projecto editorial em curso de publicação pela editora Assírio & Alvim. Este volume inclui o conjunto de ensaios sobre Baudelaire e a Paris do século XIX, e ainda os principais textos sobre estética e sociologia da arte, quase todos escritos por Benjamin no exílio de Paris (1933-1940).


O excerto que se segue é da segunda parte («O flâneur») do ensaio A Paris do Segundo Império na obra de Baudelaire:

A Paris de Baudelaire…
Havia ainda barcas cruzando o Sena, nos lugares onde depois se construiram pontes. No ano da morte de Baudelaire, um empresário teve ainda a ideia de pôr em circulação quinhentas liteiras para facilitar a vida a habitantes mais abastados. Ainda se apreciavam as passagens, onde o flâneur não tinha de se preocupar com os veículos, que não admitem os peões como concorrentes. Havia o transeunte que fura pelo meio da multidão, mas também havia o flâneur, que precisa de espaço e não quer perder a sua privacidade. Ocioso, deambula como uma personalidade, protestando contra a divisão do trabalho que transforma as pessoas em especialistas. E protesta também contra o seu dinamismo excessivo. Durante algum tempo, por volta de 1840, era de bom tom passear tartarugas nas passagens. O flâneur deixava de bom grado que elas lhe ditassem o ritmo da passada. Se dependesse dele, o progresso teria de aprender esse passo. No entanto, a última palavra não foi sua, mas de Taylor, cujo lema era «Abaixo a flânerie!»
[...]
Se a passagem é a forma clássica do interior, que para o flâneur é representado pela rua, a sua forma decadente é o grande armazém. O armazém é o lugar do último passeio do flâneur. Se a princípio a rua se lhe transformou em interior, agora era este interior que se transformava em rua, e ele vagueava pelo labirinto das mercadorias como antes o fazia na cidade. Há um rasgo de génio no conto de Poe [O Homem da Multidão]: ele inscreve numa das primeiras descrições do flâneur a imagem do seu fim.
Jules Laforgue disse de Baudelaire que ele foi o primeiro a falar de Paris «como um condenado à existência quotidiana na grande capital». Também poderia ter dito que ele foi o primeiro a falar do ópio dado como conforto a esse condenado – e apenas a ele. A multidão não é apenas o novo asilo do proscrito: é também a última droga do abandonado. O flâneur é um homem abandonado no meio da multidão. Isso coloca-o na mesma situação da mercadoria. Apesar de não ter consciência dessa particularidade, ela nem por isso deixa de actuar sobre ele. Penetra-o como um narcótico que o compensa de muitas humilhações. O transe a que se entrega o flâneur é o da mercadoria exposta e vibrando no meio da torrente dos compradores.
Se existisse aquela alma da mercadoria, de que Marx por vezes fala, gracejando, ela seria a mais cheia de empatia que alguma vez se encontrou no reino das almas, porque teria de ver em cada um o comprador a cuja mão e casa se quer acolher. Ora, a empatia é também a essência do transe a que se entrega o flâneur no meio da multidão. «O poeta desfruta do incomparável privilégio de poder ser, a seu bel-prazer, ele próprio e um outro. Como as almas errantes que procuram um corpo, assim também ele entra quando quer na pessoa de um outro. Tem à sua disposição as de todos os outros; e se certos lugares lhe parecem fechados, é porque, a seus olhos, eles não merecem ser inspeccionados.» (Baudelaire) Aqui fala a própria mercadoria. As últimas palavras dão mesmo uma ideia muito clara daquilo que ela murmura ao ouvido do pobre diabo que passa por uma montra cheia de coisas belas e caras. Elas não se interessam minimamante por ele, não entram em empatia com ele. Nas frases do importante poema em prosa «As multidões» fala, por outras palavras, o próprio fetiche, que tão fortemente toca as cordas sensíveis de Baudelaire, a ponto de a empatia com o inorgânico ser uma das fontes da sua inspiração.



10 fevereiro, 2007



WALTER BENJAMIN E O TERRAMOTO DE LISBOA

Gravura checa

[III]

O pior é quando, só os céus sabem porquê, esses abalos se sentem. E é caso para tomar mesmo à letra a expressão «só os céus sabem porquê», porque, como escreve o nosso Inglês – que finalmente pode entrar em cena –, «o Sol brilhava no seu máximo esplendor. O céu claro e limpo, sem dar o menor sinal de qualquer acontecimento natural extraordinário, até que, entre as 9 e as 10 da manhã, a minha secretária oscilou de uma forma que me surpreendeu, já que não percebi qual podia ter sido a causa. Enquanto eu ainda pensava na causa desse movimento, toda a casa tremeu. Uma trovoada subterrânea ribombava, como se a grande distância se soltasse um trovão. Nesse momento larguei a caneta e dei um salto. O perigo era grande, mas havia esperança de que aquilo passasse sem mais consequências; mas o momento seguinte pôs fim a estas dúvidas. Ouvi um pavoroso fragor, como se todas as casas da cidade se desmoronassem. Também o meu prédio foi tão fortemente abalado que os andares de cima ruiram imediatamente, e os aposentos em que eu vivia tremeram tanto que nenhum objecto e utensílio ficou no seu lugar. Receei ser esmagado a qualquer momento, porque as paredes estalavam e das brechas caíam grandes pedras, e as traves do tecto já estavam quase todas soltas. Nesses instantes, o céu ficou escuro de breu, de tal modo que não era possível reconhecer qualquer objecto. Trevas egípcias cairam sobre a cidade, ou devido ao pó acumulado pelo ruir das casas, ou porque da terra se soltavam vapores densos de enxofre. Finalmente, esta noite iluminou-se de novo e a intensidade dos abalos diminuiu; caí em mim e olhei em volta. Percebi que devia a minha vida a um ínfimo acaso: se estivesse vestido, teria corrido para a rua e seria esmagado pelos edifícios que se desmoronavam. Enfiei as botas e vesti umas calças, e corri então para a rua em direcção à igreja de S. Paulo, em cuja colina pensei que estaria mais seguro. Ninguém conseguia já reconhecer a rua onde vivia, muitos não sabiam sequer dizer o que lhes tinha acontecido, andava tudo sem norte e ninguém sabia para onde tinham ido os seus haveres ou os seus parentes. Do adro da igreja pude então ver um espectáculo de horrores: até onde a vista alcançava, mar adentro, muitos barcos baloiçavam furiosamente, entrechocando-se, como se estivessem no meio da mais violenta tempestade. De repente, o robusto cais, na margem, afundou-se, arrastando consigo todas as pessoas que aí se julgavam em segurança. Os barcos e as carruagens, onde tantos procuraram abrigo, foram no mesmo instante engolidos pelo mar.»


Através de outros relatos sabemos que foi mais ou menos uma hora depois do segundo e mais arrasador abalo que aquela onda gigantesca, de 20 metros de altura, e que o Inglês viu, se abateu sobre a cidade. Quando a onda refluiu, viu-se o leito do Tejo, quase seco; o seu refluxo foi tão violento que a onda arrastou consigo toda a água do rio. «Quando a noite caiu sobre a cidade devastada» – assim conclui o Inglês o seu relato – «esta parecia um mar de fogo: a luz era tanta que se podia ler uma carta. As labaredas elevavam-se em mais de cem lugares, e o fogo grassou durante seis dias, consumindo o que o terramoto poupara. Paralisados de medo, milhares de habitantes viam as chamas avançar, enquanto mulheres e crianças rezavam, pedindo ajuda a todos os santos e anjos. A terra continuava a tremer com mais ou menos intensidade, muitas vezes durante um quarto de hora seguido.»
Eis o que se passou nesse fatídico dia 1 de Novembro de 1755. A catástrofe que ele trouxe é uma das poucas em relação às quais os homens continuam hoje a ser tão impotentes como há 170 anos. Mas também neste domínio a técnica encontrará meios, nem que seja indirectamente, através das previsões. Por enquanto, ao que parece, os sentidos apurados de alguns animais são ainda superiores aos nossos melhores instrumentos. Em especial os cães, que dias antes dos terramotos parecem mostrar já um desassossego tão evidente que em algumas regiões eles são usados nas estações sismológicas.
E com isto cheguei ao fim dos meus vinte minutos. Espero que não os tenham sentido como demasiado longos.


09 fevereiro, 2007


WALTER BENJAMIN E O TERRAMOTO DE LISBOA


O rei D. José, entre o terramoto e os autos-da-fé (gravura inglesa)

[II]

Mas o facto de este acontecimento ter tocado tanto as pessoas, de inúmeras folhas volantes terem andado de mão em mão, de quase cem anos mais tarde ainda aparecerem novos relatos sobre ele, tem ainda uma explicação especial. É que este terramoto foi, nos seus efeitos, o mais abrangente de que já se ouviu falar. Foi sentido em toda a Europa e até em África, e calculou-se que abarcou, com as suas réplicas mais distantes, a incrível superfície de dois milhões e meio de quilómetros quadrados. Os abalos mais fortes alcançaram, de um lado, as costas de Marrocos, e do outro as da Andaluzia e da França. As cidades de Cádis, Jerez e Algeciras ficaram quase totalmente destruídas. Em Sevilha, de acordo com uma testemunha ocular, as torres da catedral oscilavam como canas ao vento. Mas os mais fortes abalos propagaram-se pelo mar. Sentiu-se o portentoso movimento das águas da Finlândia às Índias Holandesas, e calculou-se que a agitação do oceano se transmitiu a enorme velocidade, num quarto de hora, da costa portuguesa à foz do rio Elba.
Estas são impressões sentidas em simultâneo com a catástrofe. Mas a imaginação das pessoas de então foi alimentada, mais do que por estes factos, pelos estranhos fenómenos naturais observados nas semanas que os antecederam, e que posteriormente, as mais das vezes com razão, foram tomados por ominosos presságios da futura desgraça. Duas semanas antes do terrível dia terão começado subitamente a sair da terra em Locarno, no sul da Suíça, vapores que no espaço de duas horas se transformaram numa névoa vermelha que ao cair da noite desceu sob a forma de chuva cor de púrpura. A partir dessa altura há notícia de terríveis furacões, acompanhados de trombas de água e inundações, na Europa ocidental. Oito dias antes do abalo, a terra perto de Cádis encheu-se de vermes saídos dos seus buracos.


Ninguém na altura se ocupou mais destes fenómenos do que o grande filósofo alemão Kant, que provavelmente muitos de vós conhecerão, pelo menos de nome. No dia do terramoto ele era um homem novo, de 24 anos, nunca tinha saído, como acabaria por não sair, de Königsberg, a sua cidade natal, mas pôs-se a reunir com grande empenho todas as notícias que encontrou sobre este tremor de terra, e a pequena memória que escreveu representa, de facto, o começo da geografia científica na Alemanha. E sem dúvida o começo da sismologia. Gostaria de vos poder falar do caminho percorrido por esta ciência, desde aquela descrição do terramoto de Lisboa em 1755 até aos nossos dias. Mas tenho de ter algum cuidado, para que o nosso Inglês, cujas impressões do terramoto ainda vos quero ler, não sinta que lhe roubo a ocasião de o ouvirmos. Já está à espera, impaciente, porque ao cabo de 150 anos em que ninguém se preocupou com ele, quer voltar a ser ouvido. Por isso vos peço que me deixeis resumir em poucas palavras aquilo que hoje sabemos sobre os terramotos. E adianto já: as coisas não se passam como vocês imaginam. Aposto que se eu pudesse fazer agora uma pequena pausa para vos perguntar como explicam um terramoto, todos pensariam em primeiro lugar nos vulcões. De facto, muitas vezes as erupções vulcânicas andam associadas a terramotos, ou são anunciadas por eles. Por isso é que durante 2000 anos, dos Gregos até Kant (e mesmo mais tarde, mais ou menos até ao ano de 1870), as pessoas acreditavam que os terramotos vinham dos gases incandescentes, dos vapores no interior da Terra, e coisas semelhantes. Mas quando se começaram a observar e descrever esses fenómenos com a ajuda de instrumentos de medida e cálculos de cuja precisão e minúcia não vos posso dar conta – porque nem eu tenho disso uma ideia clara –, em resumo, quando se começou a estudar o assunto mais a fundo, chegou-se a conclusões bem diferentes, pelo menos para os terramotos de maior amplitude, como foi o de Lisboa. Estes não nascem no interior da Terra, que imaginamos ainda hoje líquido, ou melhor, um magma incandescente, mas de coisas que se passam ao nível da crosta terrestre. A crosta terrestre, ou seja, uma camada de mais ou menos 3000 quilómetros de espessura, que nunca tem descanso: estão sempre a acontecer deslocamentos de massas, e as placas procuram chegar a um equilíbrio na relação entre si. As razões da perturbação desse equilíbrio são em parte conhecidas, e as restantes vão sendo descobertas num trabalho de investigação permanente. Uma coisa é certa: as transformações decisivas resultam do arrefecimento constante da Terra, que provoca enormes tensões nas massas rochosas, resultando, na sua busca de novo equilíbrio, em roturas e deslocamentos que sentimos como terramotos. Outras alterações resultam da erosão das montanhas, que se tornam mais leves, ou dos depósitos acumulados nos fundos marinhos, que ficam mais pesados. As tempestades que, sobretudo no Outono, dão a volta à Terra, agitam por seu lado a sua superfície; finalmente, estão neste momento em curso estudos para determinar que forças actuam sobre a superfície da Terra devido à atracção de outros corpos celestes.
Mas dir-me-ão: A ser assim, então nunca mais a Terra terá descanso, e os terramotos nunca acabam. E de facto assim é. Os instrumentos de detecção de terramotos, extremamente precisos, de que dispomos hoje (só na Alemanha temos 13 estações sismológicas, em várias cidades) nunca têm descanso, o que significa: a Terra está sempre a tremer, mas as mais das vezes nós não damos por isso.



Documento da Sinagoga de Hamburgo, de apoio ao terramoto (1756)

WALTER BENJAMIN E O TERRAMOTO DE LISBOA

A escrita de Walter Benjamin, que muitos conhecem apenas através dos ensaios filosóficos ou de estética, é de facto um mar muito mais vasto. Entre outras formas de expressão, mais literárias do que filosóficas, Benjamin cultiva com assiduidade, entre 1929 e 1932, vários géneros radiofónicos: o Hörspiel (peça radiofónica), as histórias infantis, a conferência radiofónica, transmitidas aos microfones das principais estações de rádio da Alemanha, numa época em que esta forma de comunicação era extremamente popular, como demonstra o seu papel determinante na ascensão e consolidação do poder nazi.
A produção radiofónica de Benjamin é imensa, e ocupa quase trezentas páginas da edição crítica alemã. Resolvi traduzir, como curiosidade, uma dessas intervenções (transmitida pelas emissoras Berliner Rundfunk em 31 de Janeiro de 1931, e Frankfurter Rundfunk em 3 de Fevereiro de 1932), que tem por tema o terramoto de 1755, e que inserirei aqui em três partes.



O TERRAMOTO DE LISBOA

[I]

Já alguma vez, ao esperar na farmácia por uma receita, observaram a maneira como o farmacêutico a prepara? Pesa numa balança, com pesos levíssimos, grama a grama e decigrama a decigrama, todas as substâncias e pozinhos que entram na composição do remédio. Passa-se comigo o mesmo que com o farmacêutico quando vos conto alguma coisa neste programa radiofónico. Os meus pesos são os minutos, e tenho de pesar com muito rigor as quantidades deste e daquele ingrediente, para que a mistura resulte certa.
Direis com certeza: Ora, mas que comparação! Se nos quer contar alguma coisa sobre o terramoto de Lisboa, então comece por dizer como começou. E depois conta o que aconteceu a seguir. – Mas, se eu fizesse as coisas desse modo, duvido que isso vos divertisse. Casas a ruirem umas a seguir às outras, famílias a morrer umas atrás das outras, os terrores do fogo a alastrar e os terrores das águas, a escuridão e os saques e os lamentos dos feridos e dos que procuram os familiares… Ouvir contar isso e apenas isso não agradaria a ninguém, e no entanto são coisas dessas que acontecem e se repetem em qualquer catástrofe natural.


Mas o terramoto que destruiu Lisboa no dia 1 de Novembro de 1755 não foi apenas uma desgraça como tantas outras, teve muitos aspectos únicos e dignos de registo. É dessas particularidades que vos quero falar. Em primeiro lugar, foi um dos maiores e mais destruidores terramotos que já aconteceram. Mas não foi só por isso que ele comoveu e ocupou, como poucos outros acontecimentos, todo o mundo nesse século. A destruição de Lisboa foi qualquer coisa que corresponderia hoje, digamos, à destruição de Chicago ou de Londres. Em meados do século XVIII Portugal estava ainda no auge do seu enorme poder colonial. Lisboa era uma das cidades comerciais mais ricas da Terra; o porto, na foz do Tejo, estava permanentemente cheio de navios, rodeado das mais imponentes casas comerciais inglesas, francesas, alemãs, em particular de comerciantes de Hamburgo. A cidade contava com 30.000 casas e mais de 250.000 habitantes, dos quais quase um quarto morreu no terramoto. A corte era célebre pelo seu rigor e o seu fausto, e nas muitas descrições de Lisboa nos anos anteriores ao terramoto podem ler-se as mais estranhas coisas a propósito da solenidade rígida com que, nas noites quentes de Verão, na praça central da cidade, o Rossio, os nobres e as suas famílias se pavoneavam nos seus coches, entabulando conversa sem porem um pé no chão. E do rei de Portugal criara-se uma imagem de tal modo sublime que uma das muitas folhas volantes que espalharam descrições pormenorizadas da tragédia por toda a Europa não conseguia imaginar como tão grande rei pôde ser atingido por ela. «Como a gravidade de uma desgraça só se manifesta depois de ultrapassada», escrevia o estranho jornalista, «cada um poderá agora ter a exacta ideia do que foi este ominoso acontecimento se souber que um grande rei e a sua esposa, abandonado por toda a gente, passou um dia inteiro, em condições abomináveis, dentro de uma carruagem.» As folhas volantes em que se podiam ler coisas destas eram na altura o equivalente dos nossos jornais. Quem podia reunia testemunhos oculares, na medida do possível relatos completos, que mandava imprimir e vendia. É de um desses relatos, feito com base na experiência de um Inglês residente em Lisboa, que vos quero ler algumas passagens.


07 fevereiro, 2007


A MÃO ESQUERDA DE ORFEU

O fragmento «Mercadoria chinesa», de Rua de Sentido Único abre com uma afirmação enigmática, como tantas outras de Benjamin, e cuja relação com o título não se descortina: «Nos tempos que correm [...] o trunfo é a improvisação. Todos os golpes decisivos serão desferidos com a mão esquerda.» O que se segue, sobre a prática chinesa da cópia dos textos, é uma passagem que tomei como paradigmática da relação entre duas práticas de leitura: a mera leitura e a cópia, que para mim é aqui sinónimo de tradução (a escrita da tradução é também feita com a «mão esquerda de Orfeu», como pode sugerir uma conhecida «Arte poética» de David Mourão-Ferreira). Sobre isto escrevi em O Poço de Babel (Relógio d'Água, 2002):


A distinção de fundo, dada com as metáforas da estrada, para o texto, e do sobrevoo e do percurso a pé, respectivamente para a leitura e a «cópia», marca bem a distância que vai da flânerie do texto (por sobre o texto) à leitura atenta de vestígios e indícios de toda a ordem, com vista à reconstituição na «cópia» – que leio aqui como tradução. O leitor/flâneur – outra figura muito benjaminiana – move-se realmente num terreno, conhecido ou não, com a intenção de se perder: o seu movimento é o de uma deriva, não vai ter de reconstituir os percursos, não assume nenhum compromisso particular. A sua visão, como a do aviador, é indiferenciada, a sua recepção do texto (da estrada, das ruas da cidade) é «distraída» e globalizante, mais determinada pelos fluxos e refluxos das marés interiores do Eu do que pelos acidentes do terreno. Outro é o percurso atento do tradutor-copista, coleccionador (ainda um motivo caro a Benjamin) de indícios visíveis e invisíveis que, a partir do texto, se lhe impõem. O seu caminho passa por terrenos muito diversificados, desnivelados, atravancados (de efeitos, de sentidos, de efeitos de sentido e de linguagem), um espaço textual que constantemente remete (dos seus «miradouros», das curvas súbitas da estrada) para co-, con-, extra-, para-, pré-, inter- e sub-textos nos terrenos movediços de uma ambiguidade constitutiva do texto literário (e também da linguagem corrente, regida, mais do que se pensa, pelos mecanismos da metáfora e da ambiguidade): um campo cheio de bifurcações, desvios, disseminação de sentidos, que o «copista» vai ter de saber detectar e refazer (ou perder). O que, visto de cima, era indistinto, impõe-se agora com formas e vozes próximas, exige uma focalização rigorosa, recorta-se diante de nós para, como tantas vezes acontece na focagem excessiva e descontextualizada do pormenor, gerar incerteza e ambiguidade...