07 fevereiro, 2007


A MÃO ESQUERDA DE ORFEU

O fragmento «Mercadoria chinesa», de Rua de Sentido Único abre com uma afirmação enigmática, como tantas outras de Benjamin, e cuja relação com o título não se descortina: «Nos tempos que correm [...] o trunfo é a improvisação. Todos os golpes decisivos serão desferidos com a mão esquerda.» O que se segue, sobre a prática chinesa da cópia dos textos, é uma passagem que tomei como paradigmática da relação entre duas práticas de leitura: a mera leitura e a cópia, que para mim é aqui sinónimo de tradução (a escrita da tradução é também feita com a «mão esquerda de Orfeu», como pode sugerir uma conhecida «Arte poética» de David Mourão-Ferreira). Sobre isto escrevi em O Poço de Babel (Relógio d'Água, 2002):


A distinção de fundo, dada com as metáforas da estrada, para o texto, e do sobrevoo e do percurso a pé, respectivamente para a leitura e a «cópia», marca bem a distância que vai da flânerie do texto (por sobre o texto) à leitura atenta de vestígios e indícios de toda a ordem, com vista à reconstituição na «cópia» – que leio aqui como tradução. O leitor/flâneur – outra figura muito benjaminiana – move-se realmente num terreno, conhecido ou não, com a intenção de se perder: o seu movimento é o de uma deriva, não vai ter de reconstituir os percursos, não assume nenhum compromisso particular. A sua visão, como a do aviador, é indiferenciada, a sua recepção do texto (da estrada, das ruas da cidade) é «distraída» e globalizante, mais determinada pelos fluxos e refluxos das marés interiores do Eu do que pelos acidentes do terreno. Outro é o percurso atento do tradutor-copista, coleccionador (ainda um motivo caro a Benjamin) de indícios visíveis e invisíveis que, a partir do texto, se lhe impõem. O seu caminho passa por terrenos muito diversificados, desnivelados, atravancados (de efeitos, de sentidos, de efeitos de sentido e de linguagem), um espaço textual que constantemente remete (dos seus «miradouros», das curvas súbitas da estrada) para co-, con-, extra-, para-, pré-, inter- e sub-textos nos terrenos movediços de uma ambiguidade constitutiva do texto literário (e também da linguagem corrente, regida, mais do que se pensa, pelos mecanismos da metáfora e da ambiguidade): um campo cheio de bifurcações, desvios, disseminação de sentidos, que o «copista» vai ter de saber detectar e refazer (ou perder). O que, visto de cima, era indistinto, impõe-se agora com formas e vozes próximas, exige uma focalização rigorosa, recorta-se diante de nós para, como tantas vezes acontece na focagem excessiva e descontextualizada do pormenor, gerar incerteza e ambiguidade...

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