30 janeiro, 2007

INTERIORES

O interior burguês, atravancado de bric-à-brac e mole de veludos e pelúcias, é um dos objectos favoritos da especulação sociológica e da imaginação de Benjamin, em Rua de Sentido Único, em Infância Berlinense: 1900 e depois também nos ensaios sobre Baudelaire e a Paris do século XIX na época restauracionista do Segundo Império (que estão a sair na edição portuguesa em curso, na Assírio & Alvim).

Também aqui uma passagem, um impulso mimético presente no interior da habitação burguesa, em relação a uma aristocracia cujo universo fora dominado pelo espírito da representação. No interior burguês, ainda «castelo» e já espelho da alma da nova classe, revelam-se os arcanos mais exóticos e mais simplistas dessa alma e dessa classe que, de tão apegada aos bens materiais, deixou de saber o que era a alma. O seu exotismo é um exotismo de Ersatz, como os estilos da sua arquitectura e do seu mobiliário, os seus sonhos são os de um mundo de prazeres e lazeres que a expansão mercantil ajudara a entrar nas casas burguesas. Nada de comparável às profundezas daquelas outras almas que os poetas, filhos transviados dessa mesma burguesia, desdobrariam em espaços interiores do mundo exterior, que na poesia de um Rilke serão o verdadeiro equivalente da alma. Nada que se aproxime dos labirintos tortuosos do mundo interior de personagens austeramente burguesas, carregadas de tragicidade, que encontramos hoje nos filmes de um Ingmar Bergman, acima de todos no último, Saraband.

Benjamin dá ainda a ver, no fragmento «Casas de dez assoalhadas luxuosamente decoradas», uma burguesia sólida e feliz no seu casulo, com a moral sempre à espreita, mas sem sentimentos de culpa visíveis. Bergman é, como os seus grandes antecessores nórdicos Kierkegaard, Ibsen, Strindberg, um «mestre da culpa», um dos mais inquietantes e perturbantes cronistas dos fantasmas de um protestantismo em que uma vida é uma grande caverna, com um nicho para cada ano ou cada dia, onde se vai desenrolando o grande espectáculo das paixões amargas e dos dilaceramentos da alma. A burguesia de Benjamin é ainda a dos interiores à la Makart, o grande pintor da sociedade vienense de finais do século XIX: opulenta, festiva, inconsciente. Mas o olhar arguto do cronista Walter Benjamin vê já por toda a parte, nas paredes dos salões burgueses, as fendas que prenunciam o desmoronar da casa.

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