27 janeiro, 2007

A PROTO-ESCRITA DAS PASSAGENS


Num dos posfácios à edição brasileira das Passagens de Benjamin – um elefante branco editorial, livro-mamute num único volume, impossível de manusear! –, Willi Bolle, comentando a forma deste imenso aglomerado de fragmentos, e depois de o comparar, com pertinência, ao hipertexto actual, afirma «de maneira categórica»: «essa organização do saber histórico em forma de uma rede de categorias e fragmentos, elaborada por Benjamin, pode ser visualizada, mas não pode ser narrada. Estamos diante de uma escrita visual-espacial, baseada na tradição dos grafismos e diagramas, pictogramas e hieróglifos...»
Escrita visual-espacial? Não é bem disso que se trata. Em rigor, nem de «escrita» se trata: estamos perante um exemplo típico de proto-escrita, acumulação de materiais para posterior ordenação e redacção. Quando muito, anotções acumulativas, organizadas, no segundo momento em que Benjamin se ocupa das Passagens (1934-37, em Paris), segundo o modelo da enciclopédia barroca. É, de facto, de material não elaborado que se trata, como W. Bolle mais adiante reconhece. E o seu paralelo mais evidente não é o do espacialismo visual (barroco ou de Mallarmé) – as sinalefas e as cores usadas nos manuscritos para organizar o imenso material não bastam para o afirmar –, mas antes, de uma forma que me parece óbvia, a do grande projecto iconográfico do contemporâneo de Benjamin, Aby Warburg, o «Álbum Mnemosyne», nas suas várias ramificações.

Diagramatizada, a forma dos materiais que nos chegaram do «Trabalho das Passagens» poderia ser a do leque que se organiza em «florilégio», ou a do ficheiro enciclopédico disponível e combinável. Ou seja, não uma «escrita visual» (conceito fixado, mas que não se aplica a alguém que, como Benjamin, recusou todos os experimentalismos do seu tempo), mas massa e rede «hipertextual» de fragmentos com «ligações» múltiplas. Como o próprio Bolle acaba por reconhecer, não é de escrita que se trata, mas de arquivo, ou seja, proto-escrita: «deveríamos valorizar o projecto de Benjamin como arquivo, dispositivo aberto para novas pesquisas.»
Se as «Passagens» nunca chegaram a ser livro, como poderiam os seus materiais ser «escrita»?

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