09 fevereiro, 2007
WALTER BENJAMIN E O TERRAMOTO DE LISBOA
A escrita de Walter Benjamin, que muitos conhecem apenas através dos ensaios filosóficos ou de estética, é de facto um mar muito mais vasto. Entre outras formas de expressão, mais literárias do que filosóficas, Benjamin cultiva com assiduidade, entre 1929 e 1932, vários géneros radiofónicos: o Hörspiel (peça radiofónica), as histórias infantis, a conferência radiofónica, transmitidas aos microfones das principais estações de rádio da Alemanha, numa época em que esta forma de comunicação era extremamente popular, como demonstra o seu papel determinante na ascensão e consolidação do poder nazi.
A produção radiofónica de Benjamin é imensa, e ocupa quase trezentas páginas da edição crítica alemã. Resolvi traduzir, como curiosidade, uma dessas intervenções (transmitida pelas emissoras Berliner Rundfunk em 31 de Janeiro de 1931, e Frankfurter Rundfunk em 3 de Fevereiro de 1932), que tem por tema o terramoto de 1755, e que inserirei aqui em três partes.
O TERRAMOTO DE LISBOA
[I]
Já alguma vez, ao esperar na farmácia por uma receita, observaram a maneira como o farmacêutico a prepara? Pesa numa balança, com pesos levíssimos, grama a grama e decigrama a decigrama, todas as substâncias e pozinhos que entram na composição do remédio. Passa-se comigo o mesmo que com o farmacêutico quando vos conto alguma coisa neste programa radiofónico. Os meus pesos são os minutos, e tenho de pesar com muito rigor as quantidades deste e daquele ingrediente, para que a mistura resulte certa.
Direis com certeza: Ora, mas que comparação! Se nos quer contar alguma coisa sobre o terramoto de Lisboa, então comece por dizer como começou. E depois conta o que aconteceu a seguir. – Mas, se eu fizesse as coisas desse modo, duvido que isso vos divertisse. Casas a ruirem umas a seguir às outras, famílias a morrer umas atrás das outras, os terrores do fogo a alastrar e os terrores das águas, a escuridão e os saques e os lamentos dos feridos e dos que procuram os familiares… Ouvir contar isso e apenas isso não agradaria a ninguém, e no entanto são coisas dessas que acontecem e se repetem em qualquer catástrofe natural.
Mas o terramoto que destruiu Lisboa no dia 1 de Novembro de 1755 não foi apenas uma desgraça como tantas outras, teve muitos aspectos únicos e dignos de registo. É dessas particularidades que vos quero falar. Em primeiro lugar, foi um dos maiores e mais destruidores terramotos que já aconteceram. Mas não foi só por isso que ele comoveu e ocupou, como poucos outros acontecimentos, todo o mundo nesse século. A destruição de Lisboa foi qualquer coisa que corresponderia hoje, digamos, à destruição de Chicago ou de Londres. Em meados do século XVIII Portugal estava ainda no auge do seu enorme poder colonial. Lisboa era uma das cidades comerciais mais ricas da Terra; o porto, na foz do Tejo, estava permanentemente cheio de navios, rodeado das mais imponentes casas comerciais inglesas, francesas, alemãs, em particular de comerciantes de Hamburgo. A cidade contava com 30.000 casas e mais de 250.000 habitantes, dos quais quase um quarto morreu no terramoto. A corte era célebre pelo seu rigor e o seu fausto, e nas muitas descrições de Lisboa nos anos anteriores ao terramoto podem ler-se as mais estranhas coisas a propósito da solenidade rígida com que, nas noites quentes de Verão, na praça central da cidade, o Rossio, os nobres e as suas famílias se pavoneavam nos seus coches, entabulando conversa sem porem um pé no chão. E do rei de Portugal criara-se uma imagem de tal modo sublime que uma das muitas folhas volantes que espalharam descrições pormenorizadas da tragédia por toda a Europa não conseguia imaginar como tão grande rei pôde ser atingido por ela. «Como a gravidade de uma desgraça só se manifesta depois de ultrapassada», escrevia o estranho jornalista, «cada um poderá agora ter a exacta ideia do que foi este ominoso acontecimento se souber que um grande rei e a sua esposa, abandonado por toda a gente, passou um dia inteiro, em condições abomináveis, dentro de uma carruagem.» As folhas volantes em que se podiam ler coisas destas eram na altura o equivalente dos nossos jornais. Quem podia reunia testemunhos oculares, na medida do possível relatos completos, que mandava imprimir e vendia. É de um desses relatos, feito com base na experiência de um Inglês residente em Lisboa, que vos quero ler algumas passagens.
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