10 fevereiro, 2007



WALTER BENJAMIN E O TERRAMOTO DE LISBOA

Gravura checa

[III]

O pior é quando, só os céus sabem porquê, esses abalos se sentem. E é caso para tomar mesmo à letra a expressão «só os céus sabem porquê», porque, como escreve o nosso Inglês – que finalmente pode entrar em cena –, «o Sol brilhava no seu máximo esplendor. O céu claro e limpo, sem dar o menor sinal de qualquer acontecimento natural extraordinário, até que, entre as 9 e as 10 da manhã, a minha secretária oscilou de uma forma que me surpreendeu, já que não percebi qual podia ter sido a causa. Enquanto eu ainda pensava na causa desse movimento, toda a casa tremeu. Uma trovoada subterrânea ribombava, como se a grande distância se soltasse um trovão. Nesse momento larguei a caneta e dei um salto. O perigo era grande, mas havia esperança de que aquilo passasse sem mais consequências; mas o momento seguinte pôs fim a estas dúvidas. Ouvi um pavoroso fragor, como se todas as casas da cidade se desmoronassem. Também o meu prédio foi tão fortemente abalado que os andares de cima ruiram imediatamente, e os aposentos em que eu vivia tremeram tanto que nenhum objecto e utensílio ficou no seu lugar. Receei ser esmagado a qualquer momento, porque as paredes estalavam e das brechas caíam grandes pedras, e as traves do tecto já estavam quase todas soltas. Nesses instantes, o céu ficou escuro de breu, de tal modo que não era possível reconhecer qualquer objecto. Trevas egípcias cairam sobre a cidade, ou devido ao pó acumulado pelo ruir das casas, ou porque da terra se soltavam vapores densos de enxofre. Finalmente, esta noite iluminou-se de novo e a intensidade dos abalos diminuiu; caí em mim e olhei em volta. Percebi que devia a minha vida a um ínfimo acaso: se estivesse vestido, teria corrido para a rua e seria esmagado pelos edifícios que se desmoronavam. Enfiei as botas e vesti umas calças, e corri então para a rua em direcção à igreja de S. Paulo, em cuja colina pensei que estaria mais seguro. Ninguém conseguia já reconhecer a rua onde vivia, muitos não sabiam sequer dizer o que lhes tinha acontecido, andava tudo sem norte e ninguém sabia para onde tinham ido os seus haveres ou os seus parentes. Do adro da igreja pude então ver um espectáculo de horrores: até onde a vista alcançava, mar adentro, muitos barcos baloiçavam furiosamente, entrechocando-se, como se estivessem no meio da mais violenta tempestade. De repente, o robusto cais, na margem, afundou-se, arrastando consigo todas as pessoas que aí se julgavam em segurança. Os barcos e as carruagens, onde tantos procuraram abrigo, foram no mesmo instante engolidos pelo mar.»


Através de outros relatos sabemos que foi mais ou menos uma hora depois do segundo e mais arrasador abalo que aquela onda gigantesca, de 20 metros de altura, e que o Inglês viu, se abateu sobre a cidade. Quando a onda refluiu, viu-se o leito do Tejo, quase seco; o seu refluxo foi tão violento que a onda arrastou consigo toda a água do rio. «Quando a noite caiu sobre a cidade devastada» – assim conclui o Inglês o seu relato – «esta parecia um mar de fogo: a luz era tanta que se podia ler uma carta. As labaredas elevavam-se em mais de cem lugares, e o fogo grassou durante seis dias, consumindo o que o terramoto poupara. Paralisados de medo, milhares de habitantes viam as chamas avançar, enquanto mulheres e crianças rezavam, pedindo ajuda a todos os santos e anjos. A terra continuava a tremer com mais ou menos intensidade, muitas vezes durante um quarto de hora seguido.»
Eis o que se passou nesse fatídico dia 1 de Novembro de 1755. A catástrofe que ele trouxe é uma das poucas em relação às quais os homens continuam hoje a ser tão impotentes como há 170 anos. Mas também neste domínio a técnica encontrará meios, nem que seja indirectamente, através das previsões. Por enquanto, ao que parece, os sentidos apurados de alguns animais são ainda superiores aos nossos melhores instrumentos. Em especial os cães, que dias antes dos terramotos parecem mostrar já um desassossego tão evidente que em algumas regiões eles são usados nas estações sismológicas.
E com isto cheguei ao fim dos meus vinte minutos. Espero que não os tenham sentido como demasiado longos.


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