12 fevereiro, 2007

BENJAMIN E NÓS: A CIDADE – O OLHAR – A MEMÓRIA


Na Culturgest, 23 de Fevereiro 2007, às 18 horas:

Debate em torno da Modernidade estética e da actualidade do pensamento de Walter Benjamin sobre a cidade, com a participação de:
Bernd Witte (Universidade de Düsseldorf, que falará em inglês) , Maria Filomena Molder, Manuel Gusmão e João Barrento.
A pretexto da saída do terceiro volume (A Modernidade), das «Obras Escolhidas», um grande projecto editorial em curso de publicação pela editora Assírio & Alvim. Este volume inclui o conjunto de ensaios sobre Baudelaire e a Paris do século XIX, e ainda os principais textos sobre estética e sociologia da arte, quase todos escritos por Benjamin no exílio de Paris (1933-1940).


O excerto que se segue é da segunda parte («O flâneur») do ensaio A Paris do Segundo Império na obra de Baudelaire:

A Paris de Baudelaire…
Havia ainda barcas cruzando o Sena, nos lugares onde depois se construiram pontes. No ano da morte de Baudelaire, um empresário teve ainda a ideia de pôr em circulação quinhentas liteiras para facilitar a vida a habitantes mais abastados. Ainda se apreciavam as passagens, onde o flâneur não tinha de se preocupar com os veículos, que não admitem os peões como concorrentes. Havia o transeunte que fura pelo meio da multidão, mas também havia o flâneur, que precisa de espaço e não quer perder a sua privacidade. Ocioso, deambula como uma personalidade, protestando contra a divisão do trabalho que transforma as pessoas em especialistas. E protesta também contra o seu dinamismo excessivo. Durante algum tempo, por volta de 1840, era de bom tom passear tartarugas nas passagens. O flâneur deixava de bom grado que elas lhe ditassem o ritmo da passada. Se dependesse dele, o progresso teria de aprender esse passo. No entanto, a última palavra não foi sua, mas de Taylor, cujo lema era «Abaixo a flânerie!»
[...]
Se a passagem é a forma clássica do interior, que para o flâneur é representado pela rua, a sua forma decadente é o grande armazém. O armazém é o lugar do último passeio do flâneur. Se a princípio a rua se lhe transformou em interior, agora era este interior que se transformava em rua, e ele vagueava pelo labirinto das mercadorias como antes o fazia na cidade. Há um rasgo de génio no conto de Poe [O Homem da Multidão]: ele inscreve numa das primeiras descrições do flâneur a imagem do seu fim.
Jules Laforgue disse de Baudelaire que ele foi o primeiro a falar de Paris «como um condenado à existência quotidiana na grande capital». Também poderia ter dito que ele foi o primeiro a falar do ópio dado como conforto a esse condenado – e apenas a ele. A multidão não é apenas o novo asilo do proscrito: é também a última droga do abandonado. O flâneur é um homem abandonado no meio da multidão. Isso coloca-o na mesma situação da mercadoria. Apesar de não ter consciência dessa particularidade, ela nem por isso deixa de actuar sobre ele. Penetra-o como um narcótico que o compensa de muitas humilhações. O transe a que se entrega o flâneur é o da mercadoria exposta e vibrando no meio da torrente dos compradores.
Se existisse aquela alma da mercadoria, de que Marx por vezes fala, gracejando, ela seria a mais cheia de empatia que alguma vez se encontrou no reino das almas, porque teria de ver em cada um o comprador a cuja mão e casa se quer acolher. Ora, a empatia é também a essência do transe a que se entrega o flâneur no meio da multidão. «O poeta desfruta do incomparável privilégio de poder ser, a seu bel-prazer, ele próprio e um outro. Como as almas errantes que procuram um corpo, assim também ele entra quando quer na pessoa de um outro. Tem à sua disposição as de todos os outros; e se certos lugares lhe parecem fechados, é porque, a seus olhos, eles não merecem ser inspeccionados.» (Baudelaire) Aqui fala a própria mercadoria. As últimas palavras dão mesmo uma ideia muito clara daquilo que ela murmura ao ouvido do pobre diabo que passa por uma montra cheia de coisas belas e caras. Elas não se interessam minimamante por ele, não entram em empatia com ele. Nas frases do importante poema em prosa «As multidões» fala, por outras palavras, o próprio fetiche, que tão fortemente toca as cordas sensíveis de Baudelaire, a ponto de a empatia com o inorgânico ser uma das fontes da sua inspiração.



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