12 agosto, 2007


O trabalho da tradução sempre foi visto, desde S. Jerónimo, à luz de imagens e metáforas com as quais se procura destacar algum aspecto, sempre parcial, deste fazer complexo. Duas delas, de que tratei em tempos, são as metáforas dupla da ponte/torre e das redes/rizomas. Extraio desse ensaio(de 2001) uma passagem sobre o arquétipo da torre:


[...]
Qualquer dos exemplos contém um sentido (metafórico) que, em última análise, remete para uma situação que traz marcas de uma duplicidade, de uma ambivalência, de uma relação tensa, e mesmo conflitual (de cisão-atracção), entre um
Idem e um alter, entre um Mesmo e um Outro, entre um original e a rede possível das suas traduções. Mas não é tanto dessa relação de homologia ou de heteronomia, resultante da diversidade das línguas, fruto da maldição de Babel, que importa falar aqui.

A construção da Torre de Babel em iluminuras medievais

A construção da mítica torre, aliás, não terá tido apenas efeitos nefastos. (Estas palavras têm hoje, depois dos acontecimentos do 11 de Setembro de 2001, um eco trágico e irónico que transforma as torres, torres-poço, quer em símbolo de uma globalização hegemónica e infeliz e de um universo monolítico e cego, quer também numa espectacular encenação pós-moderna do destino de Babel). Sendo um estigma, Babel foi uma bênção. Imagine-se o que seria o mundo se nos pudéssemos entender sempre em tudo, sem os pequenos e grandes desvios, as ambiguidades, a opacidade, os qui pro quo, os mal-entendidos produtivos que fazem da linguagem e da comunicação (e da tradução intra- e interlinguística) um processo vivo e nunca acabado! Estaria aberto o caminho a todos os megalómanos deste mundo (sim, porque alguém deve ter tido a ideia de construir aquela torre!), que não teriam sequer de se preocupar com o obstáculo da confusão de linguagens. Talvez até a diversidade das línguas não venha de Babel, já que o que se passou de facto (aquilo que a narrativa mítica parece querer transmitir) não parece ter sido a diferenciação das línguas, que terá vindo depois, na fase que poderíamos dizer já da história empírica do homem, que é também o fim do monoteísmo original (com a pluralidade das línguas veio a idolatria, como lembra Henri Meschonnic). O que aí aconteceu poderá ter sido antes a confusão do entendimento, o nascimento da polissemia (o «embabelar» das linguagens, como sugerem a tradução e o comentário, por Meschonnic, deste episódio do Antigo Testamento). O nosso João de Barros parece ter esta intuição em 1540, no Diálogo em Louvor da Nossa Linguagem, e também a de que o Pentecostes representa o reverso de Babel, a epifania em que, por obra e graça do Espírito Santo, os falantes das mais desvairadas línguas – que aí, sim, já existiam separadas – entendem naturalmente o que se diz na outra, única e originária (o hebraico, «a linguagem primeira de Adam», diz João de Barros): é o milagre da «tradução automática», a que o computador ainda não chegou. Mas ouçamos como o gramático português interpreta Babel: "Quero dizer que, quando Deos, naquela soberba obra, confundiu a linguagem, nam foi inventarem-se em um instante setenta e um vocábulos diferentes em voz, que todos sinificassem esta cousa, pedra: mas confundiu o intendimento a todos pera por este nome, homem, uns entenderem pedra, outros as diferentes cousas que se, naquela edificaçam, tratavam. E este termo, confusam, nenhuma outra cousa quer dizer senam tomar uma cousa por outra. E assi ficaram todos com toda a linguagem em vocábulos, e com parte dos sinificados próprios."
O mito de Babel é sobretudo interessante na sua ideia original – construir uma torre que ligasse a terra e o céu –, ideia que espelha também o desejo de ligação com o outro (neste caso, o absolutamente Outro). A Torre transforma-se, assim, em
Ponte, Caminho e Porta. [...]

Babel por: Pieter Bruegel, o Velho (1563) e Lucas van Valckenborch (1595)

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