13 agosto, 2007


DO NOSSO TEMPO

Há alguns anos tentei fazer, numa sessão pública da Culturgest, uma síntese dos temas dominantes de um dos meus livros de ensaios, A Espiral Vertiginosa - Ensaios sobre a cultura contemporânea. O título, pedi-o de empréstimo ao grande poema do desencanto de Vasco Graça Moura, intitulado uma carta no inverno. Os ensaios são reflexões sobre este tempo, o «nosso tempo», e isso significa para mim o tempo que me foi dado viver, acrescentado de alguma memória histórica do que veio depois da segunda grande guerra e operou a grande mudança, de uma modernidade cultural que durou um século para uma pós-modernidade em que ainda nos encontramos. No fundo, as reflexões desse livro elaboram matéria que tanto pode centrar-se sobre o momento presente (e o lugar, ou não-lugar, dos clássicos, da contracultura ou da dor nele), como alargar-se a problemáticas que ocuparam o período a que o historiador inglês Hobsbawm chamou «the short century», entre o fim dos impérios europeus que vinham do século XIX (com a Primeira Guerra) e o fim do império soviético, com a queda do Muro de Berlim.
Nem sempre, ao falarmos impensadamehnte do «nosso tempo», estamos a falar dda mesma coisa, nem necessariamente em termos de «época», nem isso me interessa agora. Sei, isso sim, que a «espiral» de que fala o título é a da cegueira feliz e da imparável ascensão do optimismo irresponsável deste apocalipse alegre em que vamos vivendo há décadas: tudo se dilui e é absorvido numa vertigem da velocidade e da superficialidade, em que as contradições são apagadas ou neutralizadas pelos media, em que o pensamento foi deixando de ter lugar público, porque foi substituído pelo espectáculo, em que a dor e a morte são anestesiadas, dessacralizadas ou ocultadas, no ponto extremo de um processo de secularização e «profanização» que tem as suas raízes mais distantes na primeira fase da Idade Moderna, entre os séculos XV e XVIII, mas que a dialéctica negativa das Luzes veio abastardar e perverter.


Eduardo Prado Coelho perguntava-me então por que razão há veemência e alguma cólera nestas análises. A resposta é simples: porque elas tomaram consciência de que vivo numa cultura (do quotidiano e intelectual e estética) que me choca e não me permite a «qualidade de vida» (não confundir com direito ao consumo) a que tenho direito e que tenho o dever de exigir; que caiu na mais rasa banalização de tudo e perdeu o sentido estético do mundo, porque é uma cultura em que vingam os feios, porcos e maus, vivendo na alegre inconsciência de si, porque se perdeu o sentido dos valores mais (humanamente) elementares e essenciais, porque é uma cultura do simulacro pobre, porque oferece uma estúpida resistência ao pensar, porque pratica uma clamorosa e crescente dessolidarização do Lebenswelt e das relações humanas. E tudo isto é bastante para criar (em mim e muitos outros) um enorme mal-estar nesta civilização americanizada (não esquecendo que a América é um genuíno produto da Europa!).
O que procuro é apenas ler indícios e fazer diagnósticos, olhando também para trás: o meu berço e o meu horizonte é o século XX, um século heróico e trágico, tragicamente heróico, século de extremos, de programas radicais e totalitarismos declarados, que começou por ser o tempo de uma cultura de rotura (em profundidade), para se tornar uma anticultura do inconsequentemente radical (em extensão).
O balanço final, que recupero de um caderno de 2002, não é desesperado nem desencantado: talvez, hoje mais do que então, indiferente e pragmático. Com um sentido clarividente da actualidade, e com um único fim em vista: procurar entender o que acontece, olhando para o que aconteceu, para, sem profetismos nem futurologia, perceber minimamente para onde vamos.

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