16 agosto, 2007


Tenho estado variadíssimas vezes em Viena, mas da última, há cerca de um ano, resolvi perseguir mais de perto um dos grandes nomes da arquitectura vienense da viragem do século, Otto Wagner. Fiz um roteiro e, em vários dias, fui passando por villas e grandes edifícios residenciais, por complexos públicos como o edifício dos Correios, por igrejas como a de Steinhof. De permeio, atravessavam-se diante do olhar outros lugares e construções da época – ruas, pontes, edifícios, cafés, equipamentos – que permitem reconstituir todo o brilho e todo o vazio da Viena de 1900. Na Viena histórica, do Ring a estes percursos da Arte Nova e do nascimento do design com as Wiener Werkstätte, respira-se a grande vida da «Cacânia», o país imperial imaginário e bem real que Musil retrata com ironia em O Homem sem Qualidades.


E foi precisamente a tradução do primeiro grande volume deste torso gigantesco, que estou em vias de concluir, que me levou a revisitar algumas fotografias dessa última viagem. A relação com essa «grande época», como lhe chamou Karl Kraus em 1914, imediatamente anterior à Primeira Grande Guerra, é ambivalente e controversa, mais para os próprios austríacos do que para quem, de fora, visita estes lugares evocativos de um fausto imperial e de uma segurança burguesa como a que Stefan Zweig descreve na sua autobiografia (O Mundo de Ontem, saído em 2005 na Assírio & Alvim, numa excelente tradução de Gabriela Fragoso). Para lá de todas as controvérsias, e da consciência de que existem outras Vienas (e estou a lembrar-me da Viena dos bairros judeus, da «Viena Vermelha», operária, e dos seus edifícios de tijolo, da Viena absorvida hoje pela emigração, particularmente do Leste europeu que já foi Império Austro-Húngaro), não há dúvida de que nos lugares emblemáticos da Viena de há cem anos – cafés e museus, edifícios burgueses e monumentos, parques e lojas revivalistas em que a Arte Nova tem lugar de honra – se respira cultura, bom gosto e história como em poucas outras capitais europeias.


Em 1998, num programa Ritornello sobre a Viena de 1900 («Viena, século sem fim», no âmbito do 1º Festival Internacional de Músicas Contemporâneas de Lisboa), com Jorge Rodrigues e Paulo Ferreira de Castro, então director do São Carlos, achava eu que 1900 representa um corte mítico, mas arbitrário, já que o século XX, ou o que de melhor nele apareceu com os movimentos modernos, está todo já no século XIX (no relativismo filosófico e no cepticismo linguístico, no Sionismo e na psicanálise, em parte na pintura e na poesia). E perguntava-me de que modo a insustentável e proverbialmente leviana leveza da atmosfera vienense se pôde e pode conciliar com as revoluções estéticas decisivas que por ela passaram desde então. A jornalista e amiga de Kafka Milena Jesenská, que em 1919 caracterizava os vienenses como «materialistas bem dispostos e optimistas levianos», apercebe-se, com outros, desta ambiguidade de fundo, dizendo de Viena que é um lugar sempre em perigo, mas sem o mínimo sentido do trágico, uma cidade que não estimula o pensamento, lugar sem ideias, que aqui se dissipam como sombras…


E no entanto, Viena, particularmente em 1900, é um fervilhar de ideias, de formas novas de arte, um mundo de muitos mundos, em que nascem realizações, obras, descobertas, geniais e seminais. Talvez nunca tanto tenha nascido num só lugar para durar tanto tempo. Viena era já em 1900 um alfobre «pós-moderno» avant la lettre. Nunca foi «moderna» como outras capitais europeias dos Modernismos, foi até refractária ao seu espírito, mas com espíritos da grandeza de Hermann Broch ou de Karl Kraus, de Musil ou de Wittgenstein, de Freud ou de Mahler. A Viena da viragem do século, centro da macrocefalia de um império a abrir brechas é a mais grandiosa manifestação concentrada dos valores da era «pós-nietzschiana»: a fragmentação e o caos, o relativismo e o «decadentismo activo», num misto de provincianismo e cosmopolitismo em que coabitavam o homem racional e liberal com o novo homem psicológico, o sonho, a sensibilidade e o »nervosismo moderno» do Simbolismo com a revolução e o anti-semitismo. Viena era uma cidade amoral e aristocrática, interiorista e narcisista, mas também o lugar da crise do liberalismo e dos valores à deriva, e da consciência crítica implacável desse incomparável «apocalipse alegre», como lhe chamaria Hermann Broch. O maior painel de contrastes do seu tempo, em que se chocavam (e chocam) a valsa e o culto da morte, o clericalismo e as vanguardas, a arte e a anti-arte mais violenta, hoje associada a nomes como Thomas Bernhard e Elfriede Jelinek. Tudo isso se funde, na cultura austríaca e no seu emblema maior, Viena, numa palavra: o amoródio a esse lugar e ao país que representa.


De tudo isso eu tinha e tenho consciência de cada vez que deambulo pelo centro histórico e pelos lugares de 1900, em particular os cafés, microcosmos de todas estas contradições – o Central de Peter Altenberg e o Griensteidl da «Jovem Viena», o Museum de Musil e o Landtmann das leituras públicas de Kraus, o Sterz e o Havelka das gerações mais recentes, sem esquecer o Bräunerhof, onde um dia conversei com Bernhard à sua mesa habitual… E de cada vez que aí volto sinto, curiosamente, que estou mais em casa – numa casa chamada Europa, e no seu requintado salão maior, a que alguns chamaram vagamente Mitteleuropa, e onde vejo simplesmente o espelho da genialidade criativa da grande burguesia (judia) europeia de há um século. Um pequeno périplo por alguns desses lugares pode seguir-se aqui.
Quem quiser prolongar a viagem, pode fazê-lo, em português, por exemplo com os seguintes livros:
- Claudio Magris, Danúbio (Cap.4: Café Central). Dom Quixote, 1992
- L. Scheidl (organ.), Histórias com Tempo e Lugar. Prosa de autores austríacos 1900-1938. Publicações Europa-América, s.d.
- Karl Kraus, O Apocalipse Estável. Aforismos. Apáginastantas, 1987
- Ilse Pollack, Mundos de Fronteira. Lugares e figuras da Europa Central (Cap. IV: Teatro do olvido e da eternidade - Carta da viscondessa Amélia de Sousa Carvalho a um amigo do Porto). Livros Cotovia, 2000

(continua)

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