16 agosto, 2007


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A Cacânia e nós



Musil analisa num dos primeiros capítulos do seu opus magnum as idiossincrasias e os sintomas da decadência desse mundo antes da Guerra. A abertura leva-nos para um universo diametralmente oposto, para uma atmosfera de Metropolis, para depois entrar no pântano da Viena imperial e nos labirintos aristo-, buro-, auto-, teo- e gerontocráticos da sua máquina social, política e ideológica. Musil (ou o seu narrador, numa acção que se situa em 1913) antevê uma entrada no «comboio do tempo», que, em quase todos os aspectos dessa sua antevisão, o traz ao nosso próprio tempo. Traça-se uma vez mais o arco que liga a Viena de 1900 à que nos é dado conhecer em 2006-07 (e que pode ser visitada, com olhar retrospectivo e – por que não admiti-lo? – ainda nostálgico, aqui).
Retiro da tradução em curso esse capítulo, antecipando a saída do primeiro volume em 2008.


A CACÂNIA

Na idade em que alfaiate e barbeiro são ainda de grande importância e gostamos de olhar para o espelho, imaginamos também um lugar onde gostaríamos de passar a vida, ou pelo menos um lugar onde fosse de bom tom ficar, ainda que sentindo que esse não seria o lugar da nossa escolha pessoal. Uma dessas ideias fixas sociais é, desde há muito tempo, uma espécie de cidade super-americana onde toda a gente corre ou pára, de cronómetro na mão. O ar e a terra formam um formigueiro atravessado por vários níveis de vias de trânsito. Comboios cruzam o ar, o solo e o subsolo, pessoas são transportadas por tubo pneumático, filas de automóveis deslocam-se a alta velocidade na horizontal, elevadores rápidos bombeiam massas humanas na vertical, de um nível de trânsito para outro; nos pontos de ligação salta-se de uma máquina de transporte para a outra, e o seu ritmo, que, entre duas velocidades alucinantes faz uma síncope, uma pausa, um pequeno espaço de vinte segundos, aspira-nos sem nos dar tempo para reflectir, e nos intervalos desta dinâmica geral trocamos apressadamente algumas palavras. As perguntas e as respostas engatam umas nas outras como peças de máquinas, cada um limita-se a executar tarefas bem definidas, as profissões foram agrupadas em determinadas zonas, come-se em movimento, a zona de diversões fica noutra parte da cidade, e num outro sector ainda ficam as torres onde vamos encontrar mulher, família, gramofone e alma. A tensão e a descontracção, a actividade e o amor têm os seus tempos próprios rigorosamente atribuídos e calculados com base em minuciosas experiências laboratoriais. Se deparamos com dificuldades em alguma dessas actividades, largamo-la pura e simplesmente, porque encontraremos outra, ou até um caminho mais conveniente, ou então outra pessoa dá com um caminho em que não tínhamos reparado antes; em tudo isto não há desperdício, pois nada é mais propício a desgastar a energia comum do que a pretensão de que temos uma tarefa pessoal a cumprir e não vamos desistir desse objectivo. Num tecido social irrigado por energias, todos os caminhos levam a um fim bom em si, se não hesitarmos e reflectirmos por muito tempo. Os objectivos estão próximos; mas também a vida é curta, e assim se obtém o máximo proveito, e de mais não precisa uma pessoa para ser feliz: porque aquilo que se alcança é que dá forma à alma, ao passo que aquilo que se persegue sem o atingir a deforma. A felicidade depende muito pouco daquilo que se quer, realiza-se apenas com aquilo que se alcança. Para além disso, a zoologia ensina-nos que um número de indivíduos limitados pode constituir um todo genial.


Não é seguro que assim tenha de vir a ser, mas ideias como esta fazem parte dos sonhos de viagem que reflectem a sensação de incessante movimento que nos arrasta. São superficiais, breves e agitadas. Só Deus sabe o que o futuro nos trará. Somos levados a acreditar que a cada momento temos o princípio na mão e que deveríamos fazer um plano que nos abrangesse a todos. Se toda aquela história da velocidade não nos agrada, inventamos outra, por exemplo uma muito lenta, com uma felicidade de véus flutuantes, misteriosa como uma lesma-do-mar e aqueles olhos mansos de vaca de que já os Gregos antigos tanto gostavam. Mas as coisas não são nada assim. É a história que nos domina, e não nós a ela. Dia e noite viajamos dentro dela e fazemos tudo o que tem de ser feito; barbeamo-nos, comemos, amamos, lemos livros, exercemos uma profissão, como se as nossas quatro paredes estivessem imóveis, quando o inquietante de toda essa história é que as paredes viajam sem que nós demos por isso, e projectam os seus carris como longos fios, curvos e tacteantes, e nós não sabemos para onde. E ainda por cima, o que nós gostaríamos era de pertencer também às forças que determinam o andamento do comboio do tempo. É um papel muito pouco claro, e quando, após uma pausa mais longa, olhamos lá para fora, acontece que a paisagem se transformou: o que passa a correr, passa porque não pode deixar de o fazer. Mas, por mais dedicados que sejamos, não podemos evitar que uma sensação desagradável se apodere de nós, como se tivéssemos ultrapassado o objectivo ou metido pelo caminho errado. E um dia chega aquela necessidade irresistível e premente: descer! saltar do comboio! Uma nostalgia de sermos travados, de não progredir, de ficar parados, de regressar a um ponto antes do desvio errado! E nos bons velhos tempos em que ainda existia o império austríaco, era possível, numa situação dessas, abandonar o comboio do tempo, sentar-se num comboio normal de uma linha normal e voltar a casa.


Aí, na Cacânia, nesse Estado incompreendido e entretanto afundado, a tantos títulos exemplar, mas não reconhecido, havia também um ritmo próprio, mas não excessivo. De cada vez que, a partir de fora, se pensava nesse país, surgia-nos diante dos olhos a lembrança das estradas brancas, largas, de aspecto próspero, do tempo das marchas a pé e das diligências, que o atravessavam em todas as direcções como rios da ordem, como fitas de claro cotim militar, com o braço branco de papel da administração a abraçar todos os seus territórios. E que territórios! Havia neles glaciares e mares, a pedra calcária do Karst e as searas da Boémia, noites do Adriático com a zoada estridente dos grilos e aldeias eslovacas onde o fumo subia das chaminés como de narinas abertas e a aldeia se acocorava entre duas pequenas colinas, como se a terra tivesse entreaberto um pouco os lábios para aquecer entre eles um filho. Naturalmente que nessas estradas rolavam também automóveis, mas não muitos. Também aí se preparava a conquista dos ares, mas sem pressas. De vez em quando largava um navio para a América do Sul ou o Extremo-Oriente, mas não tantos assim. Não existiam aí ambições económicas nem de domínio do planeta; estava-se no centro da Europa, na encruzilhada dos antigos eixos do mundo; as palavras «colónia» e «ultramar» ouviam-se como qualquer coisa ainda não experimentada e remota. Havia sinais de luxo, mas de modo nenhum tão requintado como em França. Praticava-se desporto, mas não tão fanaticamente como os anglo-saxões. Gastavam-se somas astronómicas com o exército, mas só o suficiente para garantir a sua posição de penúltimo lugar entre as mais fracas das grandes potências.


Também a capital era bastante mais pequena do que todas as outras grandes metrópoles do mundo, mas ainda um nadinha maior do que uma simples cidade grande. E era um país administrado de um modo esclarecido, pouco visível, limando prudentemente todas as arestas, e pela melhor burocracia da Europa, à qual só se podia apontar uma falha: a de considerar insolentes e presunçosos o génio ou as iniciativas geniais de pessoas que não fossem de alta estirpe ou não tivessem alguma missão oficial que justificasse tal privilégio. Mas quem é que gosta de receber lições de gente incompetente? E mais: na Cacânia, um génio seria sempre considerado um pulha, mas nunca, como acontece noutros lugares, um pulha poderia ser visto como um génio.
Quantas coisas curiosas não se poderiam dizer sobre esta Cacânia hoje afundada! Era, por exemplo, kaiserlich-königlich (real-imperial) e kaiserlich und königlich (real e imperial); não havia nada nem ninguém que não usasse uma dessas etiquetas, ou k. k., ou k. u. k.. Apesar disso, só quem dominasse uma certa ciência secreta poderia com segurança distinguir as instituições e as pessoas a quem se dirigir com k. k. ou com k. u. k.. Chamava-se, no papel, Monarquia Austro-Húngara, mas de viva voz toda a gente lhe chamava Áustria, um nome a que este país tinha renunciado com um juramento oficial e solene, mas que manteve em tudo o que tinha a ver com questões emocionais, para mostrar que os sentimentos são tão importantes como o direito público e que os regulamentos não são a coisa mais importante desta vida. De acordo com a constituição, era um país liberal, mas era governada de forma clerical. O governo era clerical, mas a vida regia-se por princípios liberais. Todos os cidadãos eram iguais perante a lei, mas acontecia que nem todos eram cidadãos. Tínhamos um Parlamento que fazia um tal uso da sua liberdade que o mantinham quase sempre fechado; mas havia também uma lei de excepção que permitia passar sem o Parlamento, e quando toda a gente já estava novamente feliz sob o absolutismo, a Coroa decretava que era altura de regressar ao regime parlamentar.


Acontecimentos destes eram frequentes neste Estado, e entre eles contavam-se também aqueles conflitos nacionalistas que, com razão, despertavam a curiosidade de toda a Europa e hoje são apresentados de forma totalmente falsa. Eram tão violentos que por causa deles o aparelho do Estado ficava paralisado várias vezes ao ano, mas nos intervalos e nos períodos mortos, de mudança de governos, todos se davam muito bem e agiam como se nada fosse. E, de facto, não era nada. Acontecia apenas que a aversão natural de qualquer um em relação aos esforços dos outros para lhe passarem à frente, coisa que todos conhecemos hoje, surgira muito cedo neste Estado, onde se pode dizer que se tornou um cerimonial sublimado que poderia ter tido um grande futuro, se a sua evolução não tivesse sido prematuramente interrompida por uma catástrofe.
Não foi apenas a aversão pelo outro que ali se intensificou até se tornar um sentimento de comunidade, foi também a descrença na pessoa e no destino próprios que ganhou foros de profunda certeza. Neste país – e por vezes até ao mais alto grau das paixões e suas consequências – , toda a gente agia de modo diferente do que pensava, ou pensava de modo diferente de como agia. Alguns observadores menos informados tomavam isto por afabilidade, ou mesmo por uma fraqueza daquilo que consideram ser o carácter austríaco. Mas estavam enganados; aliás, é sempre um engano querer explicar os fenómenos de um país simplesmente à luz do carácter dos seus habitantes. De facto, o habitante de um país tem pelo menos nove caracteres: o profissional, o nacional, o político, o de classe, o geográfico, o sexual, o consciente, o inconsciente e talvez ainda um carácter privado. Encontram-se todos nele, mas dissolvem-no, e ele acaba por não ser mais do que uma pequena depressão do terreno banhada por estes muitos riachos que nela desaguam, para dela voltarem a sair e encherem, com outros riachos, um novo vale. É por isso que cada habitante da Terra tem ainda um décimo carácter, que é nem mais nem menos do que a imaginação passiva de espaços não preenchidos. Permite ao indivíduo tudo, menos uma coisa: levar a sério o que fazem os seus outros caracteres, pelo menos nove, e o que lhes acontece. Por outras palavras: tudo menos aquilo que poderia preenchê-lo e realizá-lo. Esse espaço, reconhecidamente difícil de descrever, tem uma cor e uma forma diferentes em Itália ou em Inglaterra, porque aquilo que dele se destaca tem cor e forma diferentes, e é nos dois lugares o mesmo espaço: um espaço vazio e invisível em que a realidade se configura como uma pequena cidade de brincar que a imaginação da criança tivesse abandonado.


Na medida em que isto se pode tornar visível a todos, foi o que se passou na Cacânia; por isso a Cacânia, sem que o mundo ainda o soubesse, era o mais avançado de todos os Estados, o Estado que, por assim dizer, já mal podia acompanhar o seu próprio passo; nele, era-se negativamente livre, sempre com a consciência das razões insuficientes da existência própria e tocado pela grande visão do que não acontecera, ou do que não acontecera irrevogavelmente, banhado pelo bafo dos oceanos de onde saiu a humanidade.
Aconteceu, es ist passiert, dizia-se, quando noutros lugares toda a gente sentia que acontecera algo de extraordinário. Era uma maneira de dizer muito peculiar, única em alemão e nas outras línguas, uma expressão em cujo sopro os factos e os golpes do destino se tornavam tão leves como a penugem e os pensamentos. Apesar de tudo o que se possa dizer em contrário, talvez a Cacânia fosse, afinal, um país para os génios. E provavelmente foi isso que ditou o seu fim.

(Robert Musil, O Homem sem Qualidades, Livro Primeiro, Primeira Parte, capítulo 8)

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