UMA NOVA REVISTA
Apresentei ontem, na Livraria da Assírio & Alvim do Chiado, uma nova revista que promete vir para ficar e intervir num espaço «cultural» e numa área específica que já teve melhores dias... Deixo aqui o que me ocorreu dizer nessa apresentação.
Estamos aqui para falar de mais
uma revista literária, num momento em que elas não abundam fora do âmbito
universitário e mais ou menos institucional, onde algumas sobrevivem e outras foram
surgindo e desaparecendo, com modelos estritamente crítico-teóricos, ou mais
híbridos (a Diacrítica, em Braga; a ex-Plural (INCM), a Colóquio-Letras, a LER, a
Foro das Letras ou O Escritor; a Golpe d'Asa, de um dos Centros da Faculdade de Letras de Lisboa...).
O que falta são revistas de perfil
mais livre, não propriamente geracional, e abertas à colaboração no âmbito de
todos os géneros literários e das artes em geral. É este o caso da Delphica – uma iniciativa dos
escritiores Jorge Fernandes, José Manuel de Vasconcelos, Vergílio Alberto
Vieira e Rui Vieira –, que assim se insere, com perfil próprio, na longa
tradição do século XX português desde Orpheu
e a Presença ou a Távola Redonda, até experiências e
aventuras mais recentes, com revistas mais ou menos duradouras, quase sempre
feitas por poetas, escritores e artistas: lembro algumas que a memória me traz,
a Limiar
de Egito Gonçalves, a Hífen de Inês
Lourenço, as efémeras Correspondência
Literária de António Franco Alexandre e Helder Moura Pereira, ou a Bumerangue de um grupo de poetas novos
de Guimarães, a Sema, etc.; e também
as ainda presentes Relâmpago e Telhados de Vidro, ou recentíssimas, como
a Criatura e a original Cão Celeste.
Mas voltemos ao que nos traz aqui:
o aparecimento de mais uma revista de «Letras e Artes», diz a capa – mas na
contracapa lemos «Cadernos de Literatura e Arte», o que nos remete para uma
outra interessante e importante tradição, a das revistas (sobretudo de poesia,
mas não só) que assim se designavam: os Cadernos
do Meio-Dia (com Ramos Rosa e Casimiro de Brito em Faro, nos anos 50) ou os
Cadernos de Poesia de Cinatti, José
Blanc de Portugal e Tomaz Kim, nos anos 40/50; ou os Cahiers du cinéma e as muitas revistas alemãs de todo o século XX
assim chamadas (Hefte...).
Em todos estes casos, o que era/é
uma «revista»? É interessante olhar para a palavra, e pensar nela nas várias
línguas mais próximas de nós: revista,
revue, rivista, review, um termo que, nas origens, indicava um órgão de
re-visão ou revisitação (em síntese), de ideias, temas, objectos de estudo, textos de criação. A
revista seria então qualquer coisa como um espaço de segunda mão (sentido que
hoje, evidentemente, perdeu). Mas revista também se chama magazine, e então a coisa assim chamada torna-se – o que ainda é o
caso – armazém, lugar de acolhimento ou espaço onde se acumulam ou são
guardadas coisas diversas (e dispersas, ainda que muitas vezes à volta de um
tema): a revista faz então chegar aos
seus leitores vozes singulares, mas muitas vezes comprometidas com um
«programa», uma ideia condutora (que é o que me parece acontecer com a nossa Delphica). E há ainda o singular termo
alemão para revista, Zeit-schrift
(escrita do tempo/no tempo/para o(s) tempo(s)), que remete, quer para o
carácter de actualidade do que aí se pode ler, quer também para uma vontade de
intervir no seu tempo (desiderato que parece ser também o da Delphica). Implícita no termo está ainda
a consciência da sua transitoriedade e precaridade (mais evidente ainda no jo(u)rnal, sobretudo por comparação com
a aparente «solidez» e perenidade do
livro).
Falar de uma revista é, assim,
sempre falar de um corpo estilhaçado, embora atravessado por um impulso ou uma
vontade de unidade (talvez impossível, sempre desejada) – aqui, na re-vista, magazine e escrita-do-tempo,
os rostos são sempre vários, mas o horizonte é muitas vezes um, frequentemente
até programático. A Delphica não anda longe disso: é evidente a sua intenção de
intervir, fugindo a uma cómoda neutralidade.
Duas perguntas se me impõem ao
abrir este primeiro número da Delphica e
ao ler o Editorial e o texto de abertura do Prof. Delfim Leão, helenista de
Coimbra («Porquê a Grécia?»):
1. O que fez os responsáveis por
mais uma revista literária e artística portuguesa regressarem hoje, tão
ostensiva e deliberadamente, à Grécia
antiga?
– A «actualidade» dessa civilização, que continua a ser o húmus fundamental
(embora não exclusivo) da nossa própria consciência cultural, ou daquilo que
nela resiste aos novos padrões civilizacionais?
– A actualidade do «problema Grécia» no nosso tempo, como paradigma do
desastre de uma Europa e de um sistema a que esta docilmente se submete?
2. Porquê este título, em si nem enigmático nem livremente
«poético», mas desde logo vinculado a uma ideia de recorte profético, que faz
ouvir de novo, em tempos obscuros, a voz da Pitonisa que ressoa do «umbigo do
mundo»? (aquele ómphalos tou kosmóu
que ainda ouço na voz fina do Padre Manuel Antunes nas aulas de História da
Cultura Clássica, eu completamente perdido na verdura dos meus dezoito anos
claramente impreparados para aquela fascinante dialéctica).
Ora, ao lermos o Editorial, e depois
a própria revista, esse grito arcaico da profetisa dá lugar à percepção de um
desígnio claramente «clássico», de um propósito de regressar a modelos estáveis,
de iluminar uma era de iliteracia, de materialismo e de ignorância.Entre aqueles dois pólos parece
mover-se este primeiro número (e provavelmente os que virão): entre o alerta em
relação ao estado do mundo e a vontade de «regresso a casa» – à casa europeia
que foi grega durante muitos séculos, e no fundo continua a sê-lo (como bem
mostra o artigo de Delfim Leão). Tratou-se claramente de uma escolha, bem expressa no Editorial, a partir de um excerto de
Herberto Helder em que se fala da «paixão grega». Isto, apesar de todos
sabermos que esta Europa que hoje ameaça afundar-se se alimentou também de
outras raízes: judaicas e árabes, romanas e helenísticas, bizantinas e celtas,
para não falar de uma herança cristã que a todas se sobrepôs, ou as assimilou
indelevelmente a si.Mas foi essa a escolha dos
responsáveis pela revista: a de não deixar esquecer o «génio grego» que o Padre
Manuel Antunes, naqueles meus anos de aprendizagem, definia, na sua dialéctica
entre hegeliana e jesuítica, como um «génio de contrastes» – que o mesmo é
dizer, complexo e irredutível, movendo-se entre a hybris do real e o ideal da sophrosyne
(a sabedoria e o comedimento); entre a existência comum apagada e a aretê (a exigência de ser o melhor);
entre o mythos (a palavra da
imaginação) e o lógos (a palavra da
razão); entre o ctonismo dionisíaco e o olimpismo apolíneo; enfim, entre o
destino (a moira) e a liberdade (a eleutheria)...
A Delphica espelha, à medida dos tempos de hoje, muito desta
diversidade e complexidade – para não nos deixar adormecer ao som da ladainha
diária e monocórdica das novas-velhas narrativas monetárias, globalizantes,
consumistas e desenvolvimentistas, banalizadoras e cerceadoras do pensamento.
Para podermos atravessar o pântano dos novos «tempos de indigência», os «da
ruína da Grécia», como lemos nesse longo poema, entre manifesto e threnos (a lamentação homérica), que é A Terceira Miséria, de Hélia Correia.
Escrito a olhar para a miséria da Atenas de hoje, e tendo como pano de fundo a
loucura branda desse outro adorador da Grécia, o Hölderlin da Torre de
Tübingen, deixando no ar a pergunta a que teremos de responder – a que esta
nova revista responde: «Para quê poetas em tempo de indigência?» E teremos de
lhe responder, insistentemente, para não nos transformarmos em meras sombras
no Hades dessa terceira miséria, a de hoje. A Hélia di-lo melhor, assim:
A de
quem já não ouve nem pergunta.
A de
quem não recorda. E, ao contrário
Do
orgulhoso Péricles, se torna
Num
entre os mais, num entre os que [se entregam,
Nos que
vão misturar-se como um líquido
Num
líquido maior, perdida a forma,
Desfeita
em pó a estátua.
Mas falemos da Delphica propriamente dita, e do que nos oferece este primeiro número. As colaborações confirmam em grande parte esse projecto da «paixão grega» e amplificam-no, trazendo até hoje matéria helénica, ou antiga: as versões de Gregos e de Catulo por Albano Martins (que não podia deixar de ser convocado neste contexto), os poemas da colombiana Lauren Mendinueta, uma espécie de encantamento nas ilhas do mar Egeu («en el Egeo el tiempo muere despacio»); o breve ensaio de Pires Laranjeira que recupera a «erótica solar» do materialismo hedonista antigo, para o contrapôr, num gesto crítico radical, a uma sociedade actual que vive de «fetiches e substitutos» e desconhece o verdadeiro «corpo amoroso»; e a revisitação de Tróia num fragmento do romance histórico do mexicano Antonio Sarabia. Pelos mesmos mares navega, na sua «Balsa» ficcional, a quase alegoria de Rui Vieira sobre uma Grécia e uma Europa hoje à deriva.
Fora da matéria específica desta
pulsão e da paixão grega, mas ainda e sempre no seu espírito, a Delphica abre-se a formas de escrita em
princípio sem limitações de género ou forma, de geração e de nacionalidade, ou
mesmo de língua (há textos em castelhano e galego).
Neste primeiro número temos já:
-
textos de ficção (de Jesús del
Campo, ou o já referido de Rui Vieira, ou ainda o mais híbrido de Santiago
Landero);
- crónica (eu próprio, com uma série de rememorações de uma infância
alentejana em tempos de cólera e resistência);
- glossas livres e textos para-ensaísticos, sobre livros e autores
(Gil de Carvalho sobre um livro de um sinólogo em que o autor se desdobra em
muitos outros: Les idées des autres,
de Simon Leys, alias Pierre
Ryckmans; e de Virgílio Alberto Vieira sobre Alexandre O'Neill a cair em cheio,
com a sua verve, no meio desta nossa «crise»);
- entrevistas (a Sérgio Azevedo, músico, por Pedro Silva; a Luís
Miguel Cintra, por Maria Leonor Nunes; e o, para mim, surpreendente depoimento
de José Mouga, artista do ínfimo que capta a vida aparentemente parada de
objectos e pequenos pormenores, numa prática de ostinato rigore com afinidades com a obra de Giorgio Morandi;
- Por fim, com ampla
representação, a poesia: a original, de Ivan Junqueira e de José Manuel de Vasconcelos (esta com remissões para o Nobel
Thomas Tranströmer em Lisboa, e para a nossa comum amiga austríaca Ilse Pollack);
de Eduardo Guerra Carneiro, num autógrafo à contraluz de Herberto; de Jorge
Fernandes, um dos coordenadores da revista, num jogo experimental hoje já pouco
visto, mas refrescante e inventivo; e ainda, em originais castelhano e galego,
poemas de Mario Campaña e Xosé Maria Cáccamo.
- Finalmente, a poesia em tradução traz-nos nomes pouco
ou nada vistos por cá: o russo Turgueniev na tradução do brasileiro Rubens
Figueiredo; o italiano Eugenio de Signoribus e o belga Yves Namur passados para
o português por José Manuel de Vasconcelos.
Especialmente gratificante para
mim – para além da companhia, nestas páginas, de nomes que muito prezo – foi também
o do reencontro de alguns autores estrangeiros que tive o prazer de conhecer
pessoalmente: os brasileiros Ivan Junqueira e Rubens Figueiredo (que conheci no
Rio de Janeiro há mais de dez anos) e o poeta belga Yves Namur (que veio a
Lisboa num dos Festivais de Poesia em Lisboa, que organizámos durante anos no
PEN Clube).Mas mais ainda me congratulei com
o facto de o dossier final deste
número da Delphica ser dedicado a uma
figura como Raul Brandão, que desde
cedo me acostumei a ver como um dos «meus» autores «expressionistas»!
O «Caderno Raul Brandão» é, aliás,
um ponto alto neste número, com cerca de 50 páginas dedicadas a um grande e
diverso espectro de textos com novidades inéditas e autógrafos. Evocando
livros, a biografia, lugares ou a prática jornalística de Raul Brandão, estas
páginas constituem um dossier extremamente
revelador, com os contributos de José António Gomes (Os Pescadores e o seu contexto), Sara Reis Silva (sobre Brandão
autor de literatura infanto-juvenil), Ernesto Rodrigues a propósito da
prolifica colaboração do autor em jornais e revistas, com um exaustivo
levantamento; de Mário Cláudio sobre «O ofício da escrita em R. B.»; um
comentário à versão cinematográfica de O
Gebo e a Sombra, de Manuel de Oliveira; e last not least, a investida de fundo, neste caderno, sobre a
metafísica niilista de Húmus,
explorada em função da ideia de Deus no excelente ensaio de José Manuel de
Vasconcelos.
Delfos
Permitam-me ainda – como tributo
ao título desta revista – um breve excurso até Delfos. Este lugar, como sabem, representava
para os Gregos antigos o centro do mundo, o seio da Terra. Lugar de todas as
promessas e de todas as esperanças, mas que também podia trazer as mais
inesperadas revelações, capazes de fazer desabar o mundo. Estive uma única vez
em Delfos, e senti aí o peso do sagrado e a leveza da insignificância humana,
que levaram um poeta nosso, Pedro Tamen, que teve também essa experiência de um
lugar para ele mágico, a escrever um belo livro de poesia a que chamou Delfos. Opus 12 (1987).
A caminho do
oráculo, passei por um outro lugar, um mosteiro ortodoxo de seu nome Ossias
Loukas, onde vi, numa grande pintura mural, uma figura que até hoje me
persegue: um anjo imponente, belíssimo, mas apenas com uma asa. Um anjo
amputado, talvez impedido de voar, como tantos de nós hoje, Pássaros de asas cortadas, para lembrar
o título alegórico de uma peça de Luiz Francisco Rebello em tempos
salazarentos. Recuperei a imagem daquele anjo numa crónica de que já me
esqueci. Mas não esqueci o anjo do caminho de Delfos, que regressa hoje,
trazido pela «paixão grega» da Delphica.
Um artefacto, uma obra que será, como ele, humanamente incompleta, mas que,
com este primeiro número, ensaia o seu voo monoalado – até que nasça a segunda
asa, como mais uma arma, e depois outras, aquelas de que tão precisados
estamos, e de que, por enquanto, ainda podemos dispor, como diz o último poema
do livro da Hélia, com que vos deixo:
De que
armas disporemos, senão destas
Que
estão dentro do corpo: o pensamento,
A ideia
de polis, resgatada
De um
grande abuso, uma noção de casa
E de
hospitalidade e de barulho
Atrás
do qual vem o poema, atrás
Do qual
virá a colecção dos feitos
E
defeitos humanos, um início.
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