21 janeiro, 2007


FIAMA: EXISTIMOS SOBRE O ANTERIOR

Fiama partiu. Fiama está aí.
Faço meu, hoje, o último poema da sua primeira colectânea de poesia reunida (O Texto de João Zorro, 1961-1974), que me diz que continuaremos a existir sobre e com a sua poesia, e que essa é a homenagem mais autêntica que lhe podemos prestar:

Levando ao limite, homenagem, o gesto da escrita, posso atribuir os meus textos
a joão zorro. Existimos sobre o anterior. O movimento da escrita e da leitura
exerce-se a partir da menor mutabilidade aparente da pedra
e da maior mutabilidade da grafia. O progresso dos textos
é epigráfico. Lápide e versão, indistintamente.


O anterior é, em Fiama, tanto toda a escrita dos outros, que sempre fez sua, desde o Cântico Maior, como a anterioridade ontológica radical do Ser, que atravessa os seus últimos livros. Fiama fez a sua poesia sobre estes dois mundos anteriores, de que sobressaía sempre o perfil nítido do seu verso. Um pouco como em Baudelaire («La vie antérieure»), está sempre presente na sua poesia uma memória (involuntária) que nada exclui da escrita e do Ser anteriores. E que tem o seu suporte poético em «correspondências» que só compreenderemos se nos situarmos numa dimensão temporal da durée. Daí vem, sobretudo desde Cantos do Canto, a aura própria da poesia de Fiama, e o sopro órfico puro que marca a sua última fase. Aqui, surpreendemo-nos a cada poema, por aquilo que em cada um é a sua qualidade mais intrínseca: a intensidade (luminosa) com que os objectos são ditos e o mundo se enche de sinais para dizer sempre mais do que aquilo que nele podemos ver - porque o olhar tem de ser completado pelos sentidos mais profundos que a superfície do mundo esconde. A esses sentidos chega-se pela consciência do «Tempo [que] faz e desfaz a vida»: «Nada tão silencioso como o tempo / no interior do corpo». Esta consciência intuitiva do tempo é tão importante em Fiama como a sabedoria órfica que arranca sentidos ocultos a coisas e lugares. É assim que, nesta dupla perspectivação da imagem viva das coisas (dos textos) e dos tempos que as percorrem, cada poema é como os olhos que «marcam (...) o rebordo de cada objecto, dos seres, / o limite de uma crónica dos dias»: são registos do olhar dirigidos ao Ser e à memória das suas origens, quase sempre poemas do ocaso do dia, últimos cantos, cantos do fim - porque se trata da escrita de quem sabe ou busca as coisas últimas do mundo, cada coisa ou ser que nele está ou esteve inscrito e existe, à espera do oficiante que lhe confira existência real. A poesia de Fiama é um dos lugares em que esse ofício mais ofuscantemente nos maravilha. Como nesse extraordinário poema-testamento que é «Sumário lírico», que encerra Cenas Vivas, último livro em que a poesia de Fiama chega àquele ponto mais alto da perfeição do lírico em que sujeito, mundo e linguagem se encontram numa serenidade totalmente desconflitualizada:

Nesta janela de ver passar os barcos em vidraças,
começo devagar a reescrever o mundo quedo
que é o único que conheço e vivo, sei e de cor vejo.
Ninguém me deu outras formas que não minhas
mas deram-me todos juntos o cerne das palavras.

Reescrevo-me a mim própria sem outra alternativa.
[...]
E o tempo não existe quando tudo se reúne.
Mas as frases de todos estão no lugar, meus poetas,
sendo o olhar sempre o puro tacto, quando o som
sai desta boca, sopro, e toca em sons e seres.
A faixa solar vermelha é um profundo fundo, só sonoro
e tangível na boca. E morrerei sem lançar um som vivo
para África, neste sumário lírico, redito.
Satisfaz-me o meu sol vermelho em mês de pouco ver,
pois passavam golfinhos antes de ter havido sol assim,
e mudamente vistos: imagem tão íntegra lírica

que vai descer à boca em última palavra minha.

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