10 janeiro, 2007
SALVADOS
Uns dias de gripe bem aproveitados suspendem o ritmo regular da oficina, mas abrem a cada momento pequenas brechas que dão para outros tempos. O próprio tempo se torna outro, abranda a pressão, esfuma-se. Instala-se uma espécie de indiferença criativa, que pode ser ilusória, mas é gratificante. Precisamos destas pausas em que qualquer pequena coisa, acasos insignificantes, são aproveitados, e um blog vive disso, e agradece estes «salvados do esquecimento».
Em dois dias fiz pequenas descobertas, topei com coisas esquecidas, dei importância a factos que na pressa dos dias talvez passassem despercebidas.
1 - De outras eras
Antes da era do computador, eu fazia colagens e escrevia nelas textos à mão (hoje – hélas! – quase tudo sai da máquina, digitalizado). Caligrafias de afectos, as mais das vezes, coisas pessoais, ad usum privatissimum. Não fiquei com nenhuma, foram todas parar a outras mãos.
Fui dar agora por acaso a uma pasta onde guardava imagens, fundos, bocados de revistas, catálogos, que depois utilizava nas colagens, parcelas de territórios onde o meu olho de caçador descobria e abatia a iconografia que, pensava, me podia servir – e servia. E lá estavam também, entre recortes e papéis de cor, umas fichas com frases soltas, deste e daquele, provavelmente à espera de serem embutidas em alguma dessas colagens, ampliadas, comentadas, transformadas em texto meu. Estas vêm todas, claramente, de uma certa fase, imagino que dos anos setenta, em que devo ter lido ou relido dois livros de onde extraí esses farrapos:
o fragmento Mon Faust, de Paul Valéry, uma versão moderna e subtilmente irónica do assunto de Fausto;
e O Sentimento Trágico da Vida, de Don Miguel de Unamuno.
E havia ainda uma frase de Goethe, certamente de data posterior. Começo por essa, e transcrevo de seguida as outras:
Felizes os que não escrevem:
«As pessoas que não escrevem têm uma vantagem: não se comprometem» (Goethe)
Homens de letras:
«O homem de letras que nos diz que despreza a glória mente como um velhaco.» (Unamuno)
Definições (1):
«Hegel, grande definidor, pretendeu reconstituir o universo com definições, como aquele sargento de artilharia que dizia: Constroem-se canhões tomando um furo e pondo-lhe ferro em volta.» (Unamuno)
Definições (2):
«C'est toujours tromper le monde que de se définir.» (Valéry)
Os políticos e a História:
«Tous les politiques ont lu l'histoire; mais on dirait qu'ils ne l'ont lue que pour y puiser l'art de reconstituer les catastrophes.» (Valéry)
Perfeição:
«La suppression de tout ce qui nous manque.» (Valéry).
2 - Ecografias literárias
Ao pesquisar nas edições originais a localização de alguns poemas de Heinrich Heine (pedem-me traduções para uma edição digital no Brasil) musicados por Schumann, descubro que um dos motivos marcantes da célebre «Fuga da Morte», de Paul Celan, vem de um poeminha de Heine incluído no ciclo «O regresso», no seu primeiro livro. Não tinha dado por isso antes. É um poema sobre uma tempestade no mar – um poema da natureza –, abre com o motivo do ataque musical da dança da tempestade: «Der Sturm spielt auf zum Tanz...», e continua com os micromotivos do «assobiar», do «uivar» e do «berrar», que também ecoam no poema de Celan.
O incipit do poema de Heine é assim:
E em Celan dá:
A tempestade no mar, motivo frequente na pintura e na poesia romântica, resulta no poeta moderno em inferno na terra – num dos grandes poemas históricos da literatura das vítimas do holocausto. Ao desequilíbrio da Natureza em fúria, controlável com alguma sorte e perícia, do século dos idílios, corresponde no século trágico o insuportável e terrível vendaval da História.
É claro que não há nesta utilização do motivo de Heine qualquer espécie de plágio. Apenas a constatação de que Celan, como muitos outros poetas do século XX (quase todos eles poetas «políticos»), leu o seu Heine. A estes cruzamentos chama a teoria literária «intertextualidade». Também lhe podemos chamar uma forma de «ecografia literária», escrita de ecos: a história da literatura é um vasto campo de ecos, ressonâncias, reflexos, reverberações. E nem sempre dos poetas «fortes» para os «fracos». E nem sempre há nisto a «angústia da influência». O metabolismo poético dos tempos, ao contrário do político, acontece num espaço mais livre, como uma respiração serena, sem convulsões violentas. A «Fuga da Morte» é uma grande caixa de ressonância onde uma ténue nota, ao se extinguir pouco a pouco, vai naturalmente dar ao poema de Heine. E outras notas, sabemo-lo, remetem aí para outros textos, também do próprio autor.
3 - Jaspers, ontem e hoje (com Hannah Arendt em fundo)
Recebi do Arquivo de Literatura Alemã, em Marbach, os habituais «presentes de Ano Novo», desta vez um livrinho com textos sobre as metrópoles de Paris e Londres publicados no jornal do grande editor alemão Cotta, Morgenblatt für gebildete Stände (Folha matinal para as classes cultas), e ainda o facsimile de um autógrafo do filósofo Karl Jaspers, preparatório do seu livro sobre Hannah Arendt (Do Pensamento Independente. H. Arendt e os seus críticos), de quem se comemorou em 2006 o centenário do nascimento (o Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa organiza ainda este mês um colóquio sobre esta importante figura do pensamento político livre no século XX).
O fragmento manuscrito ocupa-se do riso. Do riso de Hannah Arendt face à incarnação da «banalidade do mal», Adolf Eichmann, o carrasco, Eichmann, o palhaço, Eichmann, o manga-de-alpaca da História, como Arendt o vê no livro Eichmann em Jerusalém.
Ao arrumar o folheto junto de outros livros de Jaspers, dou de caras com o meu primeiro contacto com este filósofo do «existencialismo cristão» (que me foi dado a conhecer, disso tenho a certeza, pelo Padre Manuel Antunes na Faculdade de Letras dos idos de sessenta): a edição portuguesa de Razão e Contra-razão do Nosso Tempo, prefaciado por Delfim Santos e traduzido (nunca imaginaria, hoje!) por Fernando Gil.
O livro tem na página de ante-rosto o meu nome e a data da compra (Dezembro de 1962), como costumava fazer na altura o estudante que começava timida e humildemente a formar uma biblioteca própria. E uma outra anotação, mais tardia e a lápis, que lembra o fim da editora Minotauro, de que tenho ainda quase todos os livros, às mãos da PIDE, que lhe inundou a cave e destruiu toda a existência – no duplo sentido do termo.
Não devo ter entendido bem, nessa altura, as ideias do livro, nem as ambiguidades de fundo de um existencialismo cristão e racionalista. Hoje sei que não lhe sigo sem reservas as teses maiores, que não acredito nessa racionalidade englobante, até dos seus contrários, que Jaspers propõe. O absurdo da História revelado naqueles sintomas que uma obra maior deste filósofo designa de «Situação 'espiritual' do nosso tempo» está fora de toda a razão, há meio século como hoje, em Hitler como em Bush.
E o corpo continua a ter razões que a razão desconhece.
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