01 novembro, 2007

ANIVERSÁRIO COM (A) POESIA


O «Escrito a Lápis» faz hoje um ano.

Acendo-lhe uma vela com um livro de poesia, o último que li, ontem, no comboio para Sintra e lá mesmo, sentado no rebordo de pedra de um gradeamento. É o livro de um poeta que escreve sabendo que a poesia não é importante, e em nada influi no estado do mundo. Esta é a poesia que é possível escrever ainda – possível e necessário, embora o poeta não o diga, nem precisa, porque faz muito mais, insistindo em mostrá-lo com mais este livro –, num tempo que lhe voltou costas e num lugar de onde ela emigrou para outras costas, as de lugares ditos mais atrasados, onde ainda alimenta ilusões e onde sobrevive com alguma pujança ingénua.
Ler poesia hoje, mesmo aquela em que a morte é o único interlocutor possível – e essa parece ser a única poesia provável, i.e. tragável e à prova de prova – é entrar num espaço acentrado e raro, quase feliz. A poesia, esta poesia, é para ler sentindo o equilíbrio instável de estar no mundo hoje e aqui – como eu, na trepidação do comboio ou sentado no rebordo estreito, de pernas estendidas e atrapalhando as pessoas que transitavam no passeio, elas quase tropeçando em mim, eu tropeçando nas palavras sóbrias de poemas de sobre-viver. Hoje, ler poesia, só em espaços sem GPS, onde nos sentimos «perdidos, e a gostar de nos perder». Bem no meio da «barbárie do bem-estar / e dos fossos da democracia». E sabendo que, num tempo cheio de certezas e num «país de restos de palavras», a poesia é cada vez mais aquilo que, com uma vénia inócua ou um sorriso indulgente, se deixa sempre para outro dia — as mais das vezes para nenhum.
Assim seja.
Afinal, «os poetas não passam de estátuas inúteis num jardim / concebido por bestas que nem sequer os leram» (leia-se: o Parque dos Poetas, na Oeiras de Isaltino, ou: o gigantesco lunaparque em que vivemos).
E agora, para abrilhantar a festa de aniversário com uma pirueta-no-real à altura da melhor poesia de sempre, leio o último poema do livro, intitulado

ERRATA

Onde se lê Deus deve ler-se morte.
Onde se lê poesia deve ler-se nada.
Onde se lê literatura deve ler-se o quê?
Onde se lê eu deve ler-se morte.

Onde se lê amor deve ler-se Inês.
Onde se lê gato deve ler-se Barnabé.
Onde se lê amizade deve ler-se amizade.

Onde se lê taberna deve ler-se salvação.
Onde se lê taberna deve ler-se perdição.
Onde se lê mundo deve ler-se tirem-me daqui.

Onde se lê Manuel de Freitas deve ser
com certeza um sítio muito triste.

(Edição: Teatro de Vila Real, 2007)
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