03 novembro, 2007

CRÓNICA DA CASA FUTURANTE

O plano do mundo à imagem das palavras



(VIII)
A terrina cor-de-rosa

Ficou ali, do último jantar. Canja de galinha com miúdos. Um jantar comum naquela casa: a avaliar pela foto de família, umas oito pessoas à mesa.

A mesa: poderia ter sido feita pelo meu pai, não é muito diferente da que havia na nossa casa de jantar. O conjunto, o travejamento da base, trazem a marca dos anos cinquenta. O design ainda não tinha nascido, mas havia um saber funcional e estético adquirido e transmitido que dava a muitos móveis uma indiscutível justeza de aspecto e função. O óbvio ganhava forma, e estava aí para durar. Vinham longe ainda os tempos do capitalismo do descartável (a expressão é, no fundo, uma tautologia!). Só os pares de perninhas suplementares, afiladas, nos topos de uma mesa que nem é assim tão comprida, me causam engulhos e destoam: nunca poderiam ser obra da oficina do meu pai. Excrescências enigmáticas, numa casa carregada de enigmas.

A sopa na terrina, essa não seria, afinal, para o jantar: os hábitos de então situavam essa refeição pelas cinco da tarde. Antes ceia, pelas nove da noite, mais coisa menos coisa. Mas uma ceia, pese embora a aura mais solene do termo, ainda por cima em dia comum, não tem história. Uma terrina abandonada, sentinela resistente à espera do último conviva, décadas mais tarde — essa sim!

Ficou aberta, a tampa à distância, desterrada para uma ponta fria da mesa, no meio de estranhos objectos de metal e de restos. A forma, e sobretudo a cor, delicadas e humanas, no lugar certo do humano, nem baixela, nem inox, falam-me ainda e sempre da alma delicada da mulher da casa (não sei se não a imagino e reconstituo à imagem da minha mãe...) — o olhar zeloso, o passo leve, as mãos seguras que podem ter acariciado o esmalte das asas no caminho da cozinha até à mesa.
Outras terão sido as mãos, mais rudes — e porventura mais felizes — da cozinheira que matou e depenou a galinha, a chamuscou e arranjou, separou miudezas e patas para a canja, fez o guisado ou a cabidela. Que dizem as mãos de uma cozinheira num lugar destes, há cinquenta anos? Falam de cores e cheiros e artes que se perdem no tempo. Gritam carências. Silenciam revoltas.

Como a terrina cor-de-rosa. Ficou ali em protesto, ostensivamente a marcar o seu território abandonado. Não tem já, como as suas irmãs das origens — mais genuínas, mas também mais vulneráveis —, corpo de terra (barro), mas é bela como as mais belas, na harmonia de pé, braços e bojo (busto), no brilho discreto e quase erótico da conjunção do branco quente da pele de dentro com o rosa velho, pálido, da capa de esmalte. É o centro resplandecente das ruínas. O seu destino está traçado: servirá de pátera no sacrifício ritual que um dia ditará o fim definitivo da casa futurante.

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