20 novembro, 2007


THOMAS BERNHARD:

Um realismo agónico


Como se pode ler Bernhard? Como uma espécie de música, claro. É o que todos já disseram. Ainda assim, insistamos no truísmo: Bernhard é um orquestrador de linguagem, muitas vezes de farrapos de linguagem. Estrutura polifonicamente o material linguístico, reduzindo-o essencialmente a dois registos: clichés e banalidades (para os desmistificar) e generalizações filosóficas (para as transformar em afirmações apodícticas). E organiza tudo num ritmo redundante, quebrado aqui e ali por catadupas verbais que levam o baixo contínuo da própria linguagem ad absurdum, mas ao mesmo tempo criam efeitos de estranhamento encantatório. As suas personagens são figuras obcecadas e obsessivamente autocentradas que fazem longos monólogos para sugerir que «as palavras com que falamos, na verdade, já não existem» (O Ignorante e o Louco). A salvação estará, quando muito, na música.


E assim é, de facto. Toda a prosa de Bernhard se lê de forma musical (como a pintura de Mark Rothko, que só pode ser vista musicalmente, como o fez, concretamente, Morton Feldmann). Só a entendemos se formos capazes de desfazer os limites entre a chamada literatura e o permanente murmúrio sem sentido, cheio de falsas promessas e de inesperados ritmos, que é a linguagem que usamos dia a dia. A sua música é a do ritmo das suas frases banais. A sua música é a do cantabile de palavras mais que correntes, e que de facto correm, arfando, pelas páginas, criando harmonias e dissonâncias no corpo dos textos. A sua música é a de uma prosa que «floresce e desabrocha como uma bela flor ou uma flor feia, ou como erva daninha. É um texto todo corpo. Podemos citá-lo, podemos conversar horas a fio com frases de Bernhard. Podemos viver com as suas frases» (o actor Bernhard Minetti sobre Thomas Bernhard). A sua música, ou seja: a partitura em que a linguagem se organiza como dissonância ritmicamente estruturada, segundo o princípio da ecolalia até ao limite da irritação ou do cómico – porque tudo é ridículo perante a morte.


Aí convergem então, como tinha de ser numa prosa ficcional em que tudo é autobiográfico, todos os planos do teatro da existência, do de dentro e do de fora; tragédia, tragicomédia, farsa, cegada, grotesco, absurdo. Aproximamo-nos pouco a pouco da ideia de um realismo agónico como referência possível para ler Bernhard. Esse realismo é o da palavra descarnada e repetida, posta na boca de figuras de inclinação solipsística e de condição monologal. A linguagem, espaço por excelência do artifício, e o monólogo, expressão por excelência do solipsismo, convocam todos aqueles planos existenciais (que, na sua pluralidade tensional, traçam o grande arco do mundo), para que nasça um texto radicalmente realista. Em O Sobrinho de Wittgenstein lemos: «Na verdade, amo tudo menos a natureza». E na «narrativa» O Italiano: «Nas minhas peças tudo é artificial». Wittgenstein, ele mesmo, escreveria por sua vez no Tratado Lógico-Filosófico (5.64): «O solipsismo, consequentemente prosseguido, coincide com o realismo puro». É deste realismo da tábua rasa literária (que espelha, sem mediação, o desencanto histórico do mundo do segundo pós-guerra) que fala também Adorno na Teoria Estética a propósito de Beckett, em muitos aspectos irmão mais velho de Bernhard, e mais radical ainda na redução ao absurdo dos mecanismos comunicacionais e do «sentido» da existência. Adorno explica: «No ponto zero a que chega a prosa de Beckett, à semelhança das forças do plano infinitamente pequeno da física, nasce um segundo mundo de imagens, tão desolado quanto rico, um concentrado de experiências históricas… O carácter sórdido e transtornado desse mundo de imagens é a transposição, o negativo, do mundo alienado. Neste sentido, Beckett [Bernhard] é um realista.» O realismo de Bernhard estará então na sua linguagem não literarizada, mas artificializada ao ponto de se tornar reconhecível, no seu estranhamento quase caricatural, como sendo a do mundo. Também o Tratado de Wittgenstein já vê a linguagem como espelho do mundo, um seu modelo. Um simulacro e um sucedâneo, portanto. E Bernhard: «Tudo o que se diz é citação» (em Caminhar). Ainda como Beckett, Thomas Bernhard leva à prática literária aquilo de que muitos falam e procuram «representar», mas poucos mostram no plano concreto dos signos e da frase (menos que todos os que escrevem, ainda, romances de teor «realista»). «O que se reflecte na linguagem, ela não o pode representar», e «Aquilo que se pode mostrar não se pode dizer» (Wittgenstein, Tratado, 4.121 e 4.1212).
O que nos livros de Bernhard se mostra é então como um círculo (vicioso), a linguagem e as suas insuficiências e redundâncias, no interior de outro círculo (viciado), o mundo a marcar passo, que o outro realismo julga conhecer, o mundo que não é «o desconhecido que nos acompanha», feito de múltiplas estéticas e «puramente estético», como diria Maria Gabriela Llansol. Nisto, a estrutura de um livro de Bernhard revela subitamente paralelos evidentes com a novela clássica, que Goethe definia como o desenvolvimento e a amplificação de um «acontecimento insólito»: a partir de um centro obsessivo vão-se formando ondas concêntricas, mas de órbita irregular, semelhantes, mas de amplitudes diversas, que conferem às obras de Thomas Bernhard a sua natureza constitutivamente redundante (e às de Llansol a impressão de intensidade em permanência). Ler Bernhard seria então descobrir esse núcleo central e seguir os círculos que dele nascem e constituem o mundo próprio do romance, das suas figuras (e do seu autor). O resto, o que está fora dos círculos desse mar de linguagem, é… o mundo – que não existe, ou não interessa, ou, se esse mundo for a Áustria, é objecto de amoródio. Inesperadamente, encontram-se assim dois autores tão distantes como Bernhard e Llansol: penso que Thomas Bernhard não rejeitaria a ideia de que o mundo é puramente estético – ou pelo menos o desejo de que assim fosse. E Llansol, como Bernhard (e Wittgenstein), extrai desse pressuposto conclusões de natureza ética, que orientam todo o seu projecto de escrita e de vida. O grande escândalo, para um mundo de gerentes da arte e merceeiros da cultura (como Bernhard em grande parte o via), esteve sempre no facto de o romancista austríaco transformar em obsessão e em razão de ser de uma vida e de uma obra o que para o seu «modelo» implícito, Ludwig Wittgenstein, era um postulado filosófico: que «a ética e a estética constituem uma unidade» (Tratado, 6.42). Em Bernhard, a ascese e a depuração da linguagem, e o modo hiperbólico, excessivo, do seu uso espelham um modo (ético) de estar no mundo. Porque – e nisto encontram-se os três autores que aqui convoco – a obra é o objecto visto sub specie aeternitatis, e a «vida correcta» é o mundo visto sub specie aeternitatis. A ética de Thomas Bernhard é a da sua arte e, podíamos acrescentar, a do seu excesso num mundo de tibiezas e hipocrisia. Tanto a arte como a loucura criam ilhas de isolamento, até à morte (esperada e quase preparada numa corrida agónica), em relação à festa sem sentido, vazia e desprezada, da sociedade dos outros, criando uma muralha chinesa em torno de uma existência intransigentemente individualizada.


O isolamento solipsista e a intervenção social radical (sempre por via da arte, não como manifestação «política»), expressos no registo monológico e no gesto hiperbólico da prosa de Bernhard, trazem a marca do absoluto e da radicalidade na sociedade dos compromissos e das concessões fáceis. E são fonte de grandes contradições (muitas vezes deliberadas) na obra deste espírito demolidor, do seu acabado niilismo e da sua encenada imperfeição. Mas é precisamente esse registo monologal, essa linguagem da obsessão alucinada, que salva a obra de Bernhard da queda no realismo banal e a torna inconfundível (e a muitas das suas personagens de romance e teatro, que, no entanto, quase sempre se afundam). Esse círculo interior da linguagem é o do despojamento, da redução e da redundância, em blocos encadeados que se fixam muitas vezes em «balões de linguagem hiperdimensionais», à semelhança da banda desenhada. A originalidade desta Obra estará então numa das suas contradições de fundo: a da obsessão da escrita como fracasso necessário. Há paralelos noutros autores do século XX, austríacos e não só (Ingeborg Bachmann ou Robert Walser, Kafka ou Pessoa). É a originalidade da «genial imperfeição» (a expressão é usada pelo narrador do romance Betão) de um autor que conseguiu fazer de uma fórmula a que desde cedo aderiu livros sempre iguais e sempre diferentes, optimizando o princípio da variação. É, no fundo, o caminho dos grandes autores, que desde sempre reflectiram sobre os paradoxos e as contradições de existências que não decidimos, e sobre os imprevisíveis mecanismos ou imperativos da própria escrita, por vezes nos limites do insustentável.


(no Jornal que acompanha o Ciclo Thomas Bernhard, iniciado ontem no CCB)

Na segunda-feira, 26 de Novembro, às 18 horas, na Sala de Leitura Jorge de Sena do CCB, apresento o romance de Bernhard acabado de sair em tradução portuguesa, Derrubar Árvores. Uma irritação. Trad. de José António Palma Caetano, Assírio & Alvim:


De Bernhard saíram em tradução portuguesa os seguintes livros, que o jornal do CCB anuncia (e mais dois: Betão, em tradução de Maria Olema Malheiro, nas Edições 70 em 1989; e O Fazedor de Teatro, com tradução de Idalina Aguiar de Melo, Aveiro, Livraria Estante Editora, 1987):

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