27 novembro, 2007


DERRUBAR ÁRVORES
ou: o mundo visto de uma poltrona de orelhas





Não temos de nos justificar… Não nos fazemos a nós próprios.» Esta frase, que encontro no romance de Thomas Bernhard Betão [1982] (onde um escritor, candidato a biógrafo do músico Felix Mendelsohn- Bartholdy, leva dez anos à procura da primeira frase), tanto pode ser lida como um programa exacerbadamente individualista ou mesmo anarquista, como querer dizer que são insondáveis, quer os caminhos da existência, quer os mecanismos da escrita, que não decidimos, nem num caso nem no outro.
Mas aplica-se bem a Derrubar Árvores. Uma irritação, o último romance editado em Portugal (juntamente com Correcção) – aplica-se, tanto ao livro em si, enquanto romance «de formação e desencanto», como ao livro enquanto «romance cifrado» (roman à clé) que, como se sabe, deu origem a um processo judicial e à apreensão temporária do livro na Áustria. Tudo aí se decide, de facto, a partir de um encontro fortuito e do jantar de artistas que se lhe segue, um acontecimento banal e afinal insólito que, no romance, tem um centro – um observador implacável, hetero- e auto-fágico, como em quase todos os livros de Thomas Bernhard – e que, neste caso (contrariamente ao do escritor em Betão, a quem «as frases metem medo»), despoleta um impulso incontrolável para a escrita. Em Derrubar Árvores sai-se da existência (da experiência do funeral de uma ex-amiga suicida e de um jantar em que se encontram, num só dia, as mesmas pessoas, figuras do mundo artístico vienense que o Eu-narrador conhece, mas não vê há mais de vinte anos) e entra-se imediatamente na escrita – nas últimas linhas do livro as duas coisas quase se sobrepõem:
«Vou escrever sobre esse chamado jantar artístico na Gentzgasse, sem saber o quê (…), seja o que for, só escrever e imediatamente sobre esse jantar artístico na Gentzgasse, imediatamente, pensei eu, repetidamente, correndo pelo centro da cidade, e imediatamente e , já antes que seja tarde de mais.» (p. 196).
É o romance como ourobouros, a serpente que morde a própria cauda, e em que o leitor, a ser consequente, teria de voltar imediatamente ao princípio, à sua primeira frase, que começa logo por apresentar o narrador, o seu posto de observação, o espaço da acção e a matéria narrativa central:
«Enquanto estavam todos à espera do actor, que lhes prometera vir cerca das onze e meia, depois da representação do Pato Bravo, ao seu jantar na Gentzgasse, observava eu com toda a atenção, da poltrona de orelhas em que, no princípio dos anos cinquenta, me sentava quase todos os dias, o casal Auersberger e pensava que cometera um grande erro ao aceitar o convite do casal. Durante vinte anos não tinha voltado a ver os Auersberger…»

Vinte anos depois, um homem está sentado numa poltrona de orelhas, posto de comando da acção neste romance sem acção, em casa de amigos que o filtro da memória subitamente transforma em figuras execráveis, observa os outros (e a si próprio) e reflecteescreve já mentalmente, re-memora, re-constrói uma vida como quem reconstrói uma casa que entrou em processo de ruína (Bernhard reconstruirá realmente, na vida e na ficção).
O que observa e recorda este narrador implacável? Vejamos se é possível um resumo da «acção», embora com a consciência de que não é a história das figuras reais que importa, em particular para um leitor estrangeiro, mas a tempestade de palavras que vai na cabeça daquele Eu que pensa, sentado na poltrona de orelhas. Quando o livro saiu em 1984, a crítica do jornal Süddeutsche Zeitung – assinada por Wolfgang Schreiber, e provavelmente a melhor que se escreveu sobre este romance – confirmava-o: «Para desilusão de todos os leitores que vão à procura de chaves: aqui só há mundo interior, gerado pela linguagem. A cabeça do narrador, deste sujeito-de-narração-Thomas-Bernhard, que vai produzindo torrentes de recordações, de observação, de raiva, de auto-dilaceramento, é, pode dizer-se, o único mundo deste livro (…) É a linguagem que apela para o leitor, mais do que aquilo de que se fala. (…) É este o indesmentível realismo de Bernhard…» (disto já falei também no texto do Jornal deste ciclo, reproduzido num post anterior).


Ainda assim, arrisco o resumo. Para acompanharmos por uns instantes as figuras desta história exemplar, modelo paradigmático e exacerbado de tantos outros livros de Bernhard, com elementos que permitem uma reconstituição dos modelos reais dessas personagens, que imagino pouco ou nada conhecidos do leitor português. No romance, a história é mais ou menos esta:
O casal Auersberger convidou a melhor sociedade artística vienense para um jantar: ele é um compositor, «continuador de Webern» arruinado pelo álcool, ela uma ex-cantora (cuja voz o narrador até admirava trinta anos antes), hoje uma dama de sociedade hipócrita e fútil – mas rica. O eu-narrador, inconfundível alter ego do autor, observa da sua poltrona de orelhas, qual deus sentado na cadeira do Juízo Final, o que se diz e faz à sua volta. O pretexto do jantar é o de receber um afamado actor do Burgtheater, que lhes dará a honra da sua presença depois de mais uma representação d' O Pato Bravo, de Ibsen, numa das salas do "Burg", o Akademietheater. Acontece que este actor se atrasa tanto que o facto dá ao narrador muito tempo para fazer os seus juízos demolidores sobre todos e tudo, não se poupando também a si próprio por ter aceitado o convite que lhe fora feito no Graben, a rua do centro de Viena onde encontrara por acaso os Auersberger. Cedera ao seu «sentimentalismo», no meio de uma cidade que ama e odeia, ao comprar uma gravata para ir ao funeral de uma amiga de juventude (a «Joana») que se suicidara na província, depois de anos de alcoolismo e depressões. O «jantar artístico» desenrola-se em rituais grotescos, e será o único espaço-tempo de uma acção de menos de vinte e quatro horas, e de onde saltam todas as recordações e respectivas figuras, todas elas representantes de uma geração e de uma cultura artística austríaca que é a do narrador e do autor, e que serão arrasadas sem contemplações ao longo das quase 200 páginas do romance: os próprios Auersberger e as suas duas casas, em Viena e na Estíria (de facto, na Caríntia!); a coreógrafa Joana (Thul) e o marido, o «tapeceiro» Fritz (Riedl); a escritora Jeannie Billroth (de facto Jeannie Ebner), sobrinha do filósofo da «pneumatologia» Ferdinand Ebner (que nos anos vinte desenvolve uma teoria dialógica da linguagem, na sequência e nos antípodas de Wittgenetsin) e durante anos directora da revista Literatur und Kritik (no romance: Literatur in der Zeit); o par de escritores Anna Schreker e o seu companheiro (Friederike Mayröcker e o poeta do concretismo Ernst Jandl, expoente da chamada «Escola de Viena»), vistos como repugnantes lambe-botas do Estado austríaco; finalmente o «actor do Burg», de quem se sabe apenas que estava a representar O Pato Bravo no Akademietheater – o suficiente para eu o identificar, através do site de Ibsen na Internet, como sendo o actor Klaus Behrendt, que representa o papel do velho Ekdal nessa produção, estreada em Viena em 24 de Outubro de 1982, e que se manteve vários meses em cartaz, portanto imediatamente antes da fase de escrita de Derrubar Árvores. Será esse actor do Burg quem, depois de fazer o seu número à mesa do jantar, com uma catadupa de discursos sobre a sua arte teatral, tudo bem regado a vinho branco, faz um excurso que proporciona uma viragem nos juízos negativos que sobre ele fizera o narrador, para se transformar na «figura filosófica» da noite, com o seu «pensamento de ser apenas natureza», fornecendo uma tirada programática em que se fundem arte e natureza, e da qual o escritor, com toda a ironia de que Bernhard é capaz, acabará por retirar o título do seu livro: «Floresta, floresta de grandes árvores, derrubar árvores, isto é que foi sempre importante…».



O que pensa um homem, escritor, vinte anos depois, sentado numa poltrona de orelhas, no meio de gente que já não sabe bem se ama ou se odeia, que deixou de amar para odiar, e que se inclui a ele próprio nessa gente? Os lugares do seu périplo mental, totalmente interior, através de um daqueles longos monólogos de Bernhard, são, num só dia: o Graben em Viena, Kilb, uma aldeia na Baixa Áustria e a casa dos Auersberger, também em Viena, vista da sua poltrona. O homem está no centro de Viena, a cidade de todas as ambiguidades, cidade-canibal que destrói os artistas, e sobretudo os não-artistas que a demandam, e que são, para o narrador, todos os que se reunem naquele «jantar artístico». O centro desta cidade é para ele, ao mesmo tempo, o centro da sua austrofobia e uma espécie de catalizador do pensamento e do impulso para a escrita. Paradoxalmente, um lugar de recuperação, um ambiente de terapia, uma «montanha mágica» urbana, com as suas ruas do centro histórico, o pequeno labirinto do narrador (e dos seus cafés preferidos), logo referido nas primeiras páginas (Graben, Kohlmarkt, Kärntnerstrasse, Spiegelgasse, Stallburggasse, Dorotheengasse, Wollzeile, Operngasse…), e alguns dos seus cafés, em que, na década de 80, era fácil encontrar Bernhard, como me aconteceu um dia, em 1982(?) – o Bräunerhof (onde conversei com ele sobre aquilo a que ele na altura chamou o inevitável «aburguesamento» da revolução portuguesa), o Eiles, o Museum e o Zartl (que foram também cafés de Musil), o Hawelka (um dos mais significativos pontos de encontro dos novos escritores e artistas depois da Guerra, e cuja proprietária se queixava do silêncio e do mau feitio de Bernhard!)…




O homem que, no romance, por aí deambula mentalmente é escritor, um escritor «filosofante» (como, no final, o actor do Burg, que acaba por salvar aquele jantar tardio e dar o título ao livro!), com paralelos na literatura austríaca e fora dela: em Musil, o céptico, ou Cioran, o niilista. Com o primeiro (a quem Bernhard não se refere em particular) talvez partilhasse o desejo de ser escritor sem mais (por oposição aos pretensos «grandes escritores», cujo modelo era, para Musil, Thomas Mann), ou, como Musil anota nos Diários, «homem do circo» (aquele que arrisca o mergulho radical no circo da existência, da sociedade e do mundo). Ao segundo ligava-o a consciência de ser uma figura maldita (provocatória e contraditória), «homem afastado do mundo e à distância de si» (Cioran), o que talvez explique em parte a «fortuna crítica» dos seus livros no estrangeiro, mais do que na Áustria.
E esse que escreve mentalmente sentado na poltrona de orelhas é também um escritor que só fala de si, o que nos coloca directamente no centro da questão, muito discutida, mas que podemos abordar de forma concisa, da escrita autobiográfica de Thomas Bernhard. Pessoalmente, e enquanto leitor, não me interessa particularmente o lado autobiográfico da escrita de um romancista (o que fiz antes, ao identificar as personagens deste romance, foi uma curiosidade, pensando em leitores portugueses menos familiarizados com a cena vienense). Toda a escrita, para ter credibilidade e força (não digo «autenticidade», porque nenhuma escrita é «autêntica» – a não ser talvez para o actor do Burg, que Bernhard ridiculariza ao extremo ao lhe roubar o título para o livro!), tem de ser auto-bio-gráfica: escreve-se sempre o que se vive, ainda que isso seja o que outros escreveram (o que não é certamente o caso de nosso autor, que não escreve com outros, mas confessadamente os esquece). E um leitor português de hoje não tem de conhecer a biografia de Bernhard para ler os seus livros. É um princípio universal: a biografia pode levar-me a ler um romance de modo diferente, mas nada me garante que isso seja literariamente melhor, mais adequado ou mais produtivo. Não se lê um romance como quem lê uma vida de santo, como lembra Thomas Mann, que (num discurso comemorativo dos 80 anos de Freud) vê a escrita biográfica como uma forma de «hagiografia secularizada». Para Bernhard, tudo o que se escreve é autobiográfico, não no sentido de uma qualquer tradição clássica da «poesia e verdade», mas porque «ao fim e ao cabo, o que importa é apenas o conteúdo de verdade da mentira» (Der Keller/ A Cave, um dos volumes da autobiografia). É este o grande paradoxo da maior parte das obras ficcionais (para as distinguir da escrita da imaginação poderia recorrer-se também a Musil, para quem à realidade só se chega através da sua sua reconstituição contraditória, chocante e paradoxal, à luz do seu «sentido de possibilidade»): é o carácter ficcional das narrativas autobiográficas que as faz parecer tão incrivelmente realistas e historicamente concretas.


Eu sei que num caso como o de Derrubar Árvores haverá sempre (e houve na altura), para alguns leitores – mais os austríacos do que os estrangeiros – a tentação da descodificação das figuras, dos lugares, dos acontecimentos; e até admito que, de um ponto de vista mais culturalista/histórico do que literário, isso possa ser muito esclarecedor de uma certa leitura do mundo artístico e intelectual austríaco do pós-guerra (o que nem é muito difícil de fazer, dado estarmos em presença de figuras bastante conhecidas, algumas mesmo paradigmáticas, desse meio artístico). Também para o leitor português pode ser interessante ou curioso – mas não mais do que isso – o reconhecimento de uma topografia cultural vienense (de que já falámos), de uma geografia física e humana da Áustria (presente também neste romance, nos flashbacks sobre o funeral de Joana em Kilb, ou nas referências ao "Tonhof", a quinta dos Auersberger, centro de alguma vida artística austríaca entre os anos 50 e 60), ou ainda, noutros livros (especialmente em Correcção), do processo de reconstrução de uma casa, das várias casas de Thomas Bernhard (ver post anterior sobre isto).


Todos estes aspectos biográficos não serão determinantes para ler a prosa de Thomas Bernhard, que se alimenta de facto desses ingredientes, que se constrói à imagem da casa, que está indissoluvelmente ligada a lugares – Salzburgo, Viena, a província austríaca, toda a Áustria –, mas consegue potenciar o local em universal - como sempre fizeram, afinal, os grandes autores, desde Homero! Os ingredientes pseudo-austríacos do universo de Thomas Bernhard são os da sopa que todos engolimos, damos a comer ou cozinhamos na casa de doidos do mundo, tal como o conhecemos: o grotesco, a perversidade, a futilidade, o ódio, a doença, a genialidade problemática, a boçalidade simplória, o snobismo, a misantropia, um niilismo existencial e social em que tudo isso está presente, e que se tornou suspeito no «apocalipse alegre» em que vamos sobrevivendo hoje.
Mas Bernhard tem mais para oferecer: há nas suas visões amargas um fundo de amabilidade (que transparece na sua fisionomia quando se vêm alguns retratos), de delicadeza e humor, que um contacto pessoal, ainda que breve, pode facilmente evidenciar. O papa da crítica alemã, Marcel Reich-Ranicki definiu um dia lapidarmente a obra de Thomas Bernhard em termos que confirmam esta dualidade: «Esta obra é um motim permanente, uma rebelião infinita. Os elementos essenciais da sua prosa são a litania e o lamento – a litania cómica, o lamento sereno.» E o próprio Bernhard lembra, em O Náufrago: «Quem não é capaz de rir, não pode ser levado a sério.»
Bernhard tem acima de tudo para oferecer a sua prosa, ela mesma, com o seu niilismo redundante e musical instalado no cerne da própria linguagem (e talvez só aí, como já se disse), o fôlego e o ritmo próprios desses longos e únicos monólogos interiores que são quase todos os seus livros, e o que eles representam enquanto ruptura, corte radical com toda a tradição literária austríaca do século XX. Ao ler-se um livro de Thomas Bernhard percebe-se como a acutilância do pensamento e a música da linguagem se misturam num ácido corrosivo que ataca todos os mitos e ideologias, austríacos e ocidentais, começando logo no primeiro romance, Frost / Geada (1963), por não deixar de pé nenhum dos estereótipos sobre os quais assentava uma pretensa identidade austríaca. E continuando-se, depois do último, como uma espécie de rasto de cometa que vem formando aquilo a que um historiador da literatura austríaca contemporânea (Klaus Zeiringer) chamou o «hipertexto contínuo» em que a obra de Bernhard é continuada, em autores contemporâneos tão diversos como Alois Brandstetter, Werner Kofler, Gerhard Ammanshauser ou Josef Haslinger. Ironica e paradoxalmente, a obra de Bernhard, que traz em si um enorme potencial de destruição, gera novas obras que renovam, destroem e multiplicam a sua.


Thomas Bernhard talvez não gostasse de saber que é assim. O seu narrador e alter ego, consciente do que significa escrever sem compromissos, define-se a certa altura neste romance como «escritor, apesar de tudo, apesar de tudo, apesar de tudo…» (147) Antes, dera já de si uma outra definição que me parece servir ainda melhor a quem queira ler os textos de Bernhard como a mais pura ficção lucidamente realista, sem amarras limitadoras da sua liberdade criativa. Resumo-a na fórmula o grande simulador: «durante toda a minha vida apenas simulei e representei como num teatro, vivo e existo apenas como num teatro, tive sempre apenas uma vida teatral» (74). Perguntamo-nos: e se tudo, nos livros e na vida de Thomas Bernhard, for, tiver sido, uma simulação permanente? O escritor que escreve «apesar de tudo» fá-lo porque sabe que a arte é essa simulação. É o velho tema austríaco, calderoniano, barroco do grande teatro do mundo e da vida como sonho (ou então há aqui reminiscências do tema da «mentira vital», explorado precisamente por Ibsen e por alguns filósofos da linguagem no século XIX, para circunscrever o lugar da arte perante a violência da realidade). Não é só nisto que Bernhard é barroco (apesar de todo o seu minimalismo): toda a sua escrita é barroca, no seu excesso e no paroxismo dos seus labirintos do sempre-igual. Seguindo o próprio sistema (algo maniqueísta) de oposições e posições irredutíveis criado por este autor, poderia dizer-se que nele se opõe a simulação (própria do artístico, que em Derrubar Árvores se distingue da arte, melhor, da não-arte dos outros) ao artificialismo (dos comportamentos sociais e da arte que não é arte, porque vive de modas e epigonismos: como nos círculos vienenses que Bernhard conhece e desmistifica, e a que chama «a matilha social de há trinta e vinte anos», «a corja artística da cidade»).
Nesta atmosfera, o narrador-escritor assume-se, «apesar de tudo», temporariamente e com auto-ironia, como «lenhador» na selva artística de um mundo que é também o seu, demolidor de árvores a abater, exterminador, como lhe chamou Eduardo Prado Coelho quando saiu o seu primeiro romance em português, O Náufrago – precisamente um dos livros em que é mais visível aquela duplicidade, ou complementaridade a que aludi antes, entre uma interminável linha de destruição e o permanente adiamento da morte, entre os que se afundam e os que se salvam: no romance O Náufrago, entre a figura de «Wertheimer, o Thomas Bernhard destruído, e a de Glenn Gould, pianista e o mais clarividente de todos os loucos, o Bernhard salvo», como escreveu um crítico (Benjamin Henrichs, no semanário Die Zeit).
O mais clarividente de todos os loucos: é este Bernhard que importa salvar. Porque há uma loucura genial em todos os artistas do excesso. Um livro como Derrubar Árvores, um cenário como o que aí encontramos, sairiam porventura ainda mais reforçados nos seus efeitos hilariantes, hiperbólicos e irritantes se fossem postos em cinema, por um Fellini ou, melhor ainda, por um João César Monteiro. Seriam certamente dois filmes muito diferentes, mas qualquer um certamenmte digno de um expoente contemporâneo de um certo absurdo e do niilismo como Thomas Bernhard, na melhor linhagem de outros grandes autores do «estilo da vontade radical», como diria Susan Sontag. O narrador de Bernhard, na sua poltrona de orelhas, é da estirpe daqueles que – para citar ainda o já referido Cioran – cultivam «o ódio próprio como raiz da consciência» e seguem o lema: «Odeio-me: sou homem». Foi sempre assim com Thomas Bernhard, o amoralista, o «homem sem qualidades» possível neste nosso tempo. Já em 1968 (numa altura em que ainda recebia, precisava de receber, prémios do Estado austríaco!) existia nele uma consciência agónica, que o leva a afirmar, no polémico discurso de agradecimento do Prémio Nacional Austríaco: «somos criaturas de agonia…, habitamos um sonho no fundo do qual se erguem, já muito nítidos, os gigantes da angústia». Porque «tudo se torna ridículo quando pensamos na morte.»


(Na apresentação do romance, ontem, no CCB)



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