29 dezembro, 2006


CLASSIFICADOS
(Hoje no «Mil Folhas» do Público)

Para muitos será no mínimo estranha, talvez mesmo escandalosa, esta existência paredes-meias, nas páginas de um jornal. A morte e a vida. Os velhos e as novas. As cruzes e os corpos. Poderá ser estranha para olhos de hoje, mas na realidade é ancestral e intrínseca ao Vivo, nem promíscua nem obscena. A vida – a totalidade do que está aí e acontece no mundo – nunca é obscena. Obscenos são a injustiça, a hipocrisia da política, a guerra, o kitsch e o mau gosto em tudo aquilo a que falta qualquer réstia de beleza. Ali, nas páginas de um jornal diário, em natural sequência, a austeridade negra da necrologia e o eufemismo furtacores das mensagens e massagens da secção do «Relax», chocam-se apenas como se tocam os opostos, os limites extremados de uma única realidade. Para ligar as pontas e dar a ver o espectro total da existência no que de mais radicalmente vivo a constitui. Para mostrar a sustentável unidade entre Eros e Tanatos, numa espécie de grande elegia profana, burguesa e moderna (nas grandes elegias eróticas dos Antigos, como ainda nas Elegias Romanas de Goethe, a morte é uma presença natural e quase tranquila).
Leio a secção dos «Classificados» no Diário de Notícias. Leio mesmo, e mais do que um dia, porque me interessam hoje, estranhamente ou não, os conteúdos destas páginas, a sua escrita, os seus efeitos de estilo, as suas flores de retórica. Quem morreu e é objecto de «últimas homenagens» no jornal. Quem está vivo (melhor: viva, já que, por enquanto, o objecto dos anúncios destas páginas são apenas mulheres) e oferece o corpo. Não há choque nem escândalo nesta aproximação. Não imagino estas secções juntas com as do imobiliário, do emprego e dos automóveis, matéria corriqueira e sinal exterior de riqueza, sem a mínima afinidade com as «últimas coisas», puras realidades metafísicas, como são a Morte e o Sexo. O sexo: eterno retorno de pequenas e intensas mortes. A morte: inevitável passagem, serena ou dolorosa, que transporta para o Nada. Neste quadro não há lugar para a doença, essa sim, a grande obscenidade da natureza.


Sexo e morte sempre foram pilares inseparáveis da grande literatura desde os Antigos, e não apenas da escrita do erotismo – que, naturalmente, não se confunde com a dos pequenos prazeres de cama, mesa e roupa lavada, muito menos com a do kitsch sexual porno-mediático-sentimental hoje dominante. É a distância que vai de Homero, Henry Miller ou Bataille ao romance burguês mais caseiro ou aos seus simulacros actuais, em «escritoras» de classe média que transformam em matéria narrativa, anódina e sempre igual, rasteira e confessional, vivências de mulherzinhas mal-amadas ou de executivas dominadoras.
Nas páginas de anúncios não se encontra nada disto: são claras nos seus desígnios, graves ou borbulhantes, o seu discurso vive da respeitável frase feita e do sólido substantivo, ou então do colorido do adjectivo, da hipérbole superlativa, do chamariz do diminutivo («loirinha, meiguinha, gordinha"), da força viva do pormenor, da excitação da promessa. Escrita limpa e saudável, previsível e sem culpa (todo o romance burguês, que não abdica de ser espelho de uma vida limitada, carrega consigo um compexo de culpa que não pode ter grandeza trágica, e esta é uma das grandes perdas de toda a modernidade, ainda nossa). Aqui, nestas páginas estilisticamente marcadas, enquanto a da necrologia fala com circunspecção do que foi, a do «relax-mensagens» anuncia festivamente o que será, com as suas miragens de «deusas do prazer», «lindonas sensuais», «baronesas mestradas em dominação», «arrebatadoras cabritinhas» e – momentos altamente enigmáticos em páginas como estas – «Brunas (ou outras), 18 anos, primeira vez»!
As páginas da morte e do sexo deslocaram-se também já para a Internet, como seria de esperar. Um jornal do Centro oferece desde há algum tempo a necrologia em formato PDF, um blogueiro comenta o que designa de «necrologia suave», expressão não desprovida de sentido, nem chocante, já que o comentário distingue argutamente entre a necrologia suave de um Eça que se morreu e a violenta de um Camilo que se matou – o que me leva a regressar à tradicional página de jornal para constatar que, neste nosso mundo cada vez mais socialmente correcto ninguém ousa lembrar a morte livre de um suicida (porque a «deontologia» o não permite? Porque neste campo santo de papel não cabem, como nos de terra cristã, aqueles que ousaram «pôr a mão em si», como diz a forte expressão alemã?).
Por outro lado, essa mesma página admite sem problemas ser usada para inconfessáveis fins promocionais, num aproveitamento, esse sim, obsceno, da morte de personalidades de destaque (mais local do que nacional), para daí retirar dividendos político-financeiros: aconteceu há bem pouco tempo com a morte do pai de um conhecido autarca do Norte, que encheu as páginas de necrologia de um jornal com «sentidas» mensagens. No discurso apelativo, dirigido aos sentimentos e aos sentidos, das páginas da morte e do sexo, imiscui-se hoje o próprio discurso publicitário, essa inesgotável fonte de renovação da retórica da língua, húmus criativo como poucos, e como poucos agressivamente (de)formador das consciências. Nas páginas de necrologia, uma boa parte do espaço é ocupada pelos anúncios das agências funerárias e da própria associação do sector, que informam sobre os princípios pelos quais se devem reger os seus profissionais, exigindo e prometendo «Ética, Confiança, Dignidade, Humanidade, Qualidade, Profissionalismo», tudo em maiúsculas, como convém a uma indústria de pompes funèbres. No espaço de Eros, e para preencher o rodapé livre da página, dou com o anúncio do próprio jornal a promover os seus «Classificados», que, com o slogan publicitário escolhido, parece querer ir direito ao essencial e ser uma resposta clara, simples e directa às floridas mensagens verbais e visuais que ornamentam a página. Diz apenas (apelando ao envio de anúncios por SMS): «Resolva tudo com um dedo!»
Golpe de génio do «criativo» que inventou o anúncio!

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