04 dezembro, 2006

ENSAIO GERAL DO ENSAIO



Continuo a seguir o rasto dos meus cadernos. Deste nasceu, entre outras coisas, um ensaio sobre o ensaio, que pouca gente deve conhecer, e a que dei o título: «Geografia do acaso. Ensaio geral do ensaio». Transcrevo três ou quatro fragmentos:
«O ensaio faz-se a bordo dos dias. E a bordo dos livros, na leitura acidental, mais do que na dirigida. É sempre mais o tangencial que me leva ao centro, núcleo duro, pérola de ostra, nó de rizoma, ponto e ponte da fuga. E o ensaio expande-se, dissemina-se, constrói-se. Trabalha como a gisandra de Finisterra: pulula, mata, faz renascer.»




«Quando começa a configurar-se um ensaio, é uma dupla configuração que acontece: impõe-se-me a ideia, vislumbro-lhe o corpo (a forma). Mas desconheço a lei por que se rege. O ensaio é um género sem género, mas tem sexo(s) [...], não é neutro, mas andrógino. O seu princípio é o da contaminação, e não rejeita o incesto. Se nenhum género tem origens puras, estigmatizado que está, no nome mesmo (genos / genus) pelo sema (sémen) da gestação, o ensaio é, entre todos, aquele sobre o qual mais pesa esse pecado original. Traz consigo o estigma dos cruzamentos, da enxertia, pode ser mesmo um clone de laboratório, um coelho albino às riscas pretas, ou uma zebra sem elas (a imagem caiu-me literalmente nas mãos em plena génese deste ensaio, cruzando-o com outro, de experiências de escrita diversas, dos afectos aos textos e do corpo ao inefável). O ensaio é a ambiguidade consciente. A pureza, sente-a como violência, a sua lei é sempre mais a do hibridismo, da travestização genológica.»



«O ensaio é uma filologia do inútil. Numa daquelas pequenas e tristes «tábuas» de Alvarez (Chuva, como tinha de ser) há um magote de figuras, negras e tremidas, de chapéu de chuva, crianças pela mão, como quem lhes quer ensinar algum caminho. É claramente um grupo, um clã, que parece saber para onde vai, mas o quadro não mostra destinos visíveis: o ocre de fundo é um deserto. Num dos cantos, como que entrando em cena pela esquerda baixa, mas claramente à margem dela, um cão, vadio, por certo.
Numa leitura alegórica e arbitrária da tábua, eu diria que esse cão é o ensaísta, e que o magote que sabe para onde vai, mas não tem destino visível, é a abominável comunidade dos que... "sabem". Se há passo decidido e porte indiferente nesta cena, eles são sem dúvida os do cão. Só ele é livre.»