06 dezembro, 2006



A FORÇA DO OBSCURO

Benjamin lembra que o teatro jesuíta do século XVII, escrito e representado em latim, era visto também por um público que não sabia latim. Porque «a autoridade de uma afirmação depende tão pouco da sua inteligibilidade que pode sair reforçada se for obscura». Esta relação entre autoridade e inteligibilidade funciona também hoje, nomeadamente na esfera do discurso político: numa época em que só conta a imagem e o espectáculo, o público ensurdeceu, não ouve se o que lhe dizem tem ou não sentido e fundamento. Só é preciso «saber estar», «ter estilo» e «boa imagem» (ao que se diz, Durão Barroso aprendeu a «saber estar», e isso só lhe pode trazer dividendos eleitorais; e Marco Paulo, essa coisa de quem se diz que atrai multidões, «tem estilo na voz», como dizia a D. Suzete que me alugava uma casa no Verão).

J. B., Diário para W. B.

Na arte que acaba por vingar, seja ela de que tipo for, é ao contrário: a aparente ininteligibilidade está carregada de significação, mas não quer ser ou ter autoridade (nem aquela que decorre de haver por detrás de cada obra um «autor»: também essa autoridade desaparece a partir do momento em que a obra se expõe). A autoridade da arte é o seu mistério, aquele resto que desafia o olhar e o pensamento.
Mas talvez se possa dizer – como Benjamin também anota e desenvolve a propósito da linguagem do drama barroco – que ambas, a política e a arte, tendem para a música: a primeira, para embalar o eleitor, a segunda, para (e)levar o leitor/espectador para lá da pesadez do sentido (na linguagem: do empecilho da dupla articulação do signo), ao encontro de um encontro «natural» com o corpo, como nas «origens» (as duas formas mais naturais desse encontro são o nascimento e a morte).



Num caso como no outro, o discurso adormeceu as faculdades mais racionais, a vontade de conhecimento, para envolver a percepção numa névoa intuitiva. Na visão alegórica, porém, a palavra escrita ou a imagem isolada perfilam-se com invulgar nitidez. Se virmos as coisas do ponto de vista de uma teoria da linguagem como a do físico romântico Ritter, em que a palavra, e mesmo a letra, são projecções naturais e necessárias de uma vida das coisas, se pensarmos que elas são também imagem, e como tal «assinatura, monograma da essência» (como toda a imagem «escrita»), estamos no cerne da visão alegórica. Aí, pelo menos no drama do Barroco e do Romantismo, arte e discurso político encontram-se na sua intencionalidade comum: projectar o homem comum para lá dos limites do senso comum e da razão prática. Nisto, o discurso político participa do teológico (é a linguagem dos milagres que não acontecerão), e a arte é sempre a expressão do paradoxo (linguagem destinada a abrir-se e a abrir, mas que, por imposições intrínsecas da expressão, se fecha nos seus mais fundos arcanos).

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