
27 novembro, 2007
26 novembro, 2007
Thomas Bernhard
UM ROMANCE É UMA CASA
(O «Vierkanthof», Obernathal, Ohlsdorf / Alta Áustria
UM ROMANCE É UMA CASA
(O «Vierkanthof», Obernathal, Ohlsdorf / Alta Áustria
O processo de reconstrução de uma casa (e Bernhard fê-lo com várias casas ) é um tópico extremamente significativo em alguns dos seus livros (particularmente em Correcção, acabado de sair em tradução portuguesa na editora Fim de Século), na medida em que a casa surge aí como uma espécie de obra-de-arte-vital (um Lebenskunstwerk), mas não total (no mundo de Bernhard tudo é parcial e transitório), como metáfora de uma outra relação entre arte e natureza (que altera a própria noção de natureza, deslocando-a para o artificialismo da construção). O romance é então como que o contraponto literário da casa a re-construir, mais do que a construir de raiz – como na casa-cone de Roithamer em Correcção, ou na célebre casa que Wittgenstein projectou para a irmã em Viena, que funcionam como contra-utopias racionalistas a que o rigor arquitectónico-musical da prosa de Bernhard, aliás, não é estranho.
O pequeno video que aí está diz isto muito melhor, na sobreposição ritmada de elementos da casa de Bernhard em Obernathal/Ohlsdorf, numa breve visita – apenas exterior – que é como um passeio por um livro seu. Há uma sequência de páginas (fachadas, janelas, portas, ritmos arquitectónicos, a neve), que se sobrepõem e repetem na sua música, acompanhada por outra, música minimal e repetitiva, mas em que cada acorde (cada página) é ouvido (é lida) num momento diferente, encadeada com as anteriores e as que se seguem, como nos livros de Bernhard, em que o efeito de repetição e variação cria no leitor o desejo de prosseguir, na esperança de que o tom, o registo, os conteúdos, mudem. Mas geralmente não mudam, porque são um baixo contínuo com tema e variações em primeiro plano. Este pequeno video da casa é um excelente espelho disso.
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THOMAS BERNHARD
Sobre Derrubar Árvores e a irritação/excitação de escrever
Sobre Derrubar Árvores e a irritação/excitação de escrever
A excitação/irritação de escrever um livro. Bernhard fala disso neste video, a propósito do romance Derrubar Árvores. Uma irritação, agora saído na Assírio & Alvim, e que apresentei hoje no CCB.
Traduzo a seguir o que se diz, para quem não o possa acompanhar no seu alemão de austríaco. A dupla «irritação / excitação» explica-se pelo facto de o termo alemão ter os dois sentidos, umas vezes mais um, outras mais o outro...
Jornalista: Esta obra de prosa é parte do seu trabalho de recuperação do passado?
Th. B.: É um fragmento da minha vida. Fragmento decisivo. A certa altura precisamos de… como é que se diz… fixar momentos decisivos. Com a pena, não é, como se diz. Foi isso o que fiz. Com os anos 50. Agora estamos nos anos 80, já podemos ir buscar uns amigos e metê-los entre as capas de um livro… Fixamo-los, fotografamo-los, tornamo-los públicos, é o trabalho do editor… É assim…
Jornalista: Foi o tempo sobre o qual escreveu que lhe provocou irritação, ou o quê…?
Th. B.: Não, foi a recordação. O tempo de há trinta anos já não nos irrita, a recordação dele sim. Tornamo-lo presente e vemos que há aí uma série de feridas mais ou menos abertas, injectamos um pouco de veneno e tudo isso se incendeia e depois nasce daí um estilo irritado. Depois aparece-nos uma série de pessoas, quando as vemos deixam-nos como doidos e depois metemo-las num livro como este, numa irritação, é isso…
Jornalista: Mas quando se escreve sobre o passado, pensar-se-ia que a distância nos torna um pouco mais sensatos…
Th. B.: Isso é o lugar comum do olhar retrospectivo sobre o passado… É claro que está completamente errado. As pessoas velhas podem escrever livros desses, confortavelmente instaladas na sua poltrona. Não é esse o meu estilo de escrita, ainda não - talvez depois de amanhã… Quando escrevo, ainda me irrito / me excito, também quando escrevo um livro assim… fico irritado / excitado. A irritação /excitação é um estado agradável, agita o sangue frouxo, fá-lo pulsar, e a nós faz-nos mais vivos e daí nascem livros. Sem excitação não há nada disto… É melhor ficar logo deitado na cama e não sair de lá. Também na cama nos divertimos quando nos excitamos, não é?, e com os livros é a mesma coisa. Escrever livros é uma espécie de acto sexual, muito mais cómodo do que antes, escrever um livro é muito mais cómodo do que ir com alguém para a cama…
Traduzo a seguir o que se diz, para quem não o possa acompanhar no seu alemão de austríaco. A dupla «irritação / excitação» explica-se pelo facto de o termo alemão ter os dois sentidos, umas vezes mais um, outras mais o outro...
Jornalista: Esta obra de prosa é parte do seu trabalho de recuperação do passado?
Th. B.: É um fragmento da minha vida. Fragmento decisivo. A certa altura precisamos de… como é que se diz… fixar momentos decisivos. Com a pena, não é, como se diz. Foi isso o que fiz. Com os anos 50. Agora estamos nos anos 80, já podemos ir buscar uns amigos e metê-los entre as capas de um livro… Fixamo-los, fotografamo-los, tornamo-los públicos, é o trabalho do editor… É assim…
Jornalista: Foi o tempo sobre o qual escreveu que lhe provocou irritação, ou o quê…?
Th. B.: Não, foi a recordação. O tempo de há trinta anos já não nos irrita, a recordação dele sim. Tornamo-lo presente e vemos que há aí uma série de feridas mais ou menos abertas, injectamos um pouco de veneno e tudo isso se incendeia e depois nasce daí um estilo irritado. Depois aparece-nos uma série de pessoas, quando as vemos deixam-nos como doidos e depois metemo-las num livro como este, numa irritação, é isso…
Jornalista: Mas quando se escreve sobre o passado, pensar-se-ia que a distância nos torna um pouco mais sensatos…
Th. B.: Isso é o lugar comum do olhar retrospectivo sobre o passado… É claro que está completamente errado. As pessoas velhas podem escrever livros desses, confortavelmente instaladas na sua poltrona. Não é esse o meu estilo de escrita, ainda não - talvez depois de amanhã… Quando escrevo, ainda me irrito / me excito, também quando escrevo um livro assim… fico irritado / excitado. A irritação /excitação é um estado agradável, agita o sangue frouxo, fá-lo pulsar, e a nós faz-nos mais vivos e daí nascem livros. Sem excitação não há nada disto… É melhor ficar logo deitado na cama e não sair de lá. Também na cama nos divertimos quando nos excitamos, não é?, e com os livros é a mesma coisa. Escrever livros é uma espécie de acto sexual, muito mais cómodo do que antes, escrever um livro é muito mais cómodo do que ir com alguém para a cama…

20 novembro, 2007

THOMAS BERNHARD:
Um realismo agónico
Um realismo agónico
Como se pode ler Bernhard? Como uma espécie de música, claro. É o que todos já disseram. Ainda assim, insistamos no truísmo: Bernhard é um orquestrador de linguagem, muitas vezes de farrapos de linguagem. Estrutura polifonicamente o material linguístico, reduzindo-o essencialmente a dois registos: clichés e banalidades (para os desmistificar) e generalizações filosóficas (para as transformar em afirmações apodícticas). E organiza tudo num ritmo redundante, quebrado aqui e ali por catadupas verbais que levam o baixo contínuo da própria linguagem ad absurdum, mas ao mesmo tempo criam efeitos de estranhamento encantatório. As suas personagens são figuras obcecadas e obsessivamente autocentradas que fazem longos monólogos para sugerir que «as palavras com que falamos, na verdade, já não existem» (O Ignorante e o Louco). A salvação estará, quando muito, na música.

E assim é, de facto. Toda a prosa de Bernhard se lê de forma musical (como a pintura de Mark Rothko, que só pode ser vista musicalmente, como o fez, concretamente, Morton Feldmann). Só a entendemos se formos capazes de desfazer os limites entre a chamada literatura e o permanente murmúrio sem sentido, cheio de falsas promessas e de inesperados ritmos, que é a linguagem que usamos dia a dia. A sua música é a do ritmo das suas frases banais. A sua música é a do cantabile de palavras mais que correntes, e que de facto correm, arfando, pelas páginas, criando harmonias e dissonâncias no corpo dos textos. A sua música é a de uma prosa que «floresce e desabrocha como uma bela flor ou uma flor feia, ou como erva daninha. É um texto todo corpo. Podemos citá-lo, podemos conversar horas a fio com frases de Bernhard. Podemos viver com as suas frases» (o actor Bernhard Minetti sobre Thomas Bernhard). A sua música, ou seja: a partitura em que a linguagem se organiza como dissonância ritmicamente estruturada, segundo o princípio da ecolalia até ao limite da irritação ou do cómico – porque tudo é ridículo perante a morte.

Aí convergem então, como tinha de ser numa prosa ficcional em que tudo é autobiográfico, todos os planos do teatro da existência, do de dentro e do de fora; tragédia, tragicomédia, farsa, cegada, grotesco, absurdo. Aproximamo-nos pouco a pouco da ideia de um realismo agónico como referência possível para ler Bernhard. Esse realismo é o da palavra descarnada e repetida, posta na boca de figuras de inclinação solipsística e de condição monologal. A linguagem, espaço por excelência do artifício, e o monólogo, expressão por excelência do solipsismo, convocam todos aqueles planos existenciais (que, na sua pluralidade tensional, traçam o grande arco do mundo), para que nasça um texto radicalmente realista. Em O Sobrinho de Wittgenstein lemos: «Na verdade, amo tudo menos a natureza». E na «narrativa» O Italiano: «Nas minhas peças tudo é artificial». Wittgenstein, ele mesmo, escreveria por sua vez no Tratado Lógico-Filosófico (5.64): «O solipsismo, consequentemente prosseguido, coincide com o realismo puro». É deste realismo da tábua rasa literária (que espelha, sem mediação, o desencanto histórico do mundo do segundo pós-guerra) que fala também Adorno na Teoria Estética a propósito de Beckett, em muitos aspectos irmão mais velho de Bernhard, e mais radical ainda na redução ao absurdo dos mecanismos comunicacionais e do «sentido» da existência. Adorno explica: «No ponto zero a que chega a prosa de Beckett, à semelhança das forças do plano infinitamente pequeno da física, nasce um segundo mundo de imagens, tão desolado quanto rico, um concentrado de experiências históricas… O carácter sórdido e transtornado desse mundo de imagens é a transposição, o negativo, do mundo alienado. Neste sentido, Beckett [Bernhard] é um realista.» O realismo de Bernhard estará então na sua linguagem não literarizada, mas artificializada ao ponto de se tornar reconhecível, no seu estranhamento quase caricatural, como sendo a do mundo. Também o Tratado de Wittgenstein já vê a linguagem como espelho do mundo, um seu modelo. Um simulacro e um sucedâneo, portanto. E Bernhard: «Tudo o que se diz é citação» (em Caminhar). Ainda como Beckett, Thomas Bernhard leva à prática literária aquilo de que muitos falam e procuram «representar», mas poucos mostram no plano concreto dos signos e da frase (menos que todos os que escrevem, ainda, romances de teor «realista»). «O que se reflecte na linguagem, ela não o pode representar», e «Aquilo que se pode mostrar não se pode dizer» (Wittgenstein, Tratado, 4.121 e 4.1212).
O que nos livros de Bernhard se mostra é então como um círculo (vicioso), a linguagem e as suas insuficiências e redundâncias, no interior de outro círculo (viciado), o mundo a marcar passo, que o outro realismo julga conhecer, o mundo que não é «o desconhecido que nos acompanha», feito de múltiplas estéticas e «puramente estético», como diria Maria Gabriela Llansol. Nisto, a estrutura de um livro de Bernhard revela subitamente paralelos evidentes com a novela clássica, que Goethe definia como o desenvolvimento e a amplificação de um «acontecimento insólito»: a partir de um centro obsessivo vão-se formando ondas concêntricas, mas de órbita irregular, semelhantes, mas de amplitudes diversas, que conferem às obras de Thomas Bernhard a sua natureza constitutivamente redundante (e às de Llansol a impressão de intensidade em permanência). Ler Bernhard seria então descobrir esse núcleo central e seguir os círculos que dele nascem e constituem o mundo próprio do romance, das suas figuras (e do seu autor). O resto, o que está fora dos círculos desse mar de linguagem, é… o mundo – que não existe, ou não interessa, ou, se esse mundo for a Áustria, é objecto de amoródio. Inesperadamente, encontram-se assim dois autores tão distantes como Bernhard e Llansol: penso que Thomas Bernhard não rejeitaria a ideia de que o mundo é puramente estético – ou pelo menos o desejo de que assim fosse. E Llansol, como Bernhard (e Wittgenstein), extrai desse pressuposto conclusões de natureza ética, que orientam todo o seu projecto de escrita e de vida. O grande escândalo, para um mundo de gerentes da arte e merceeiros da cultura (como Bernhard em grande parte o via), esteve sempre no facto de o romancista austríaco transformar em obsessão e em razão de ser de uma vida e de uma obra o que para o seu «modelo» implícito, Ludwig Wittgenstein, era um postulado filosófico: que «a ética e a estética constituem uma unidade» (Tratado, 6.42). Em Bernhard, a ascese e a depuração da linguagem, e o modo hiperbólico, excessivo, do seu uso espelham um modo (ético) de estar no mundo. Porque – e nisto encontram-se os três autores que aqui convoco – a obra é o objecto visto sub specie aeternitatis, e a «vida correcta» é o mundo visto sub specie aeternitatis. A ética de Thomas Bernhard é a da sua arte e, podíamos acrescentar, a do seu excesso num mundo de tibiezas e hipocrisia. Tanto a arte como a loucura criam ilhas de isolamento, até à morte (esperada e quase preparada numa corrida agónica), em relação à festa sem sentido, vazia e desprezada, da sociedade dos outros, criando uma muralha chinesa em torno de uma existência intransigentemente individualizada.

O isolamento solipsista e a intervenção social radical (sempre por via da arte, não como manifestação «política»), expressos no registo monológico e no gesto hiperbólico da prosa de Bernhard, trazem a marca do absoluto e da radicalidade na sociedade dos compromissos e das concessões fáceis. E são fonte de grandes contradições (muitas vezes deliberadas) na obra deste espírito demolidor, do seu acabado niilismo e da sua encenada imperfeição. Mas é precisamente esse registo monologal, essa linguagem da obsessão alucinada, que salva a obra de Bernhard da queda no realismo banal e a torna inconfundível (e a muitas das suas personagens de romance e teatro, que, no entanto, quase sempre se afundam). Esse círculo interior da linguagem é o do despojamento, da redução e da redundância, em blocos encadeados que se fixam muitas vezes em «balões de linguagem hiperdimensionais», à semelhança da banda desenhada. A originalidade desta Obra estará então numa das suas contradições de fundo: a da obsessão da escrita como fracasso necessário. Há paralelos noutros autores do século XX, austríacos e não só (Ingeborg Bachmann ou Robert Walser, Kafka ou Pessoa). É a originalidade da «genial imperfeição» (a expressão é usada pelo narrador do romance Betão) de um autor que conseguiu fazer de uma fórmula a que desde cedo aderiu livros sempre iguais e sempre diferentes, optimizando o princípio da variação. É, no fundo, o caminho dos grandes autores, que desde sempre reflectiram sobre os paradoxos e as contradições de existências que não decidimos, e sobre os imprevisíveis mecanismos ou imperativos da própria escrita, por vezes nos limites do insustentável.

(no Jornal que acompanha o Ciclo Thomas Bernhard, iniciado ontem no CCB)
Na segunda-feira, 26 de Novembro, às 18 horas, na Sala de Leitura Jorge de Sena do CCB, apresento o romance de Bernhard acabado de sair em tradução portuguesa, Derrubar Árvores. Uma irritação. Trad. de José António Palma Caetano, Assírio & Alvim:

De Bernhard saíram em tradução portuguesa os seguintes livros, que o jornal do CCB anuncia (e mais dois: Betão, em tradução de Maria Olema Malheiro, nas Edições 70 em 1989; e O Fazedor de Teatro, com tradução de Idalina Aguiar de Melo, Aveiro, Livraria Estante Editora, 1987):

E assim é, de facto. Toda a prosa de Bernhard se lê de forma musical (como a pintura de Mark Rothko, que só pode ser vista musicalmente, como o fez, concretamente, Morton Feldmann). Só a entendemos se formos capazes de desfazer os limites entre a chamada literatura e o permanente murmúrio sem sentido, cheio de falsas promessas e de inesperados ritmos, que é a linguagem que usamos dia a dia. A sua música é a do ritmo das suas frases banais. A sua música é a do cantabile de palavras mais que correntes, e que de facto correm, arfando, pelas páginas, criando harmonias e dissonâncias no corpo dos textos. A sua música é a de uma prosa que «floresce e desabrocha como uma bela flor ou uma flor feia, ou como erva daninha. É um texto todo corpo. Podemos citá-lo, podemos conversar horas a fio com frases de Bernhard. Podemos viver com as suas frases» (o actor Bernhard Minetti sobre Thomas Bernhard). A sua música, ou seja: a partitura em que a linguagem se organiza como dissonância ritmicamente estruturada, segundo o princípio da ecolalia até ao limite da irritação ou do cómico – porque tudo é ridículo perante a morte.

Aí convergem então, como tinha de ser numa prosa ficcional em que tudo é autobiográfico, todos os planos do teatro da existência, do de dentro e do de fora; tragédia, tragicomédia, farsa, cegada, grotesco, absurdo. Aproximamo-nos pouco a pouco da ideia de um realismo agónico como referência possível para ler Bernhard. Esse realismo é o da palavra descarnada e repetida, posta na boca de figuras de inclinação solipsística e de condição monologal. A linguagem, espaço por excelência do artifício, e o monólogo, expressão por excelência do solipsismo, convocam todos aqueles planos existenciais (que, na sua pluralidade tensional, traçam o grande arco do mundo), para que nasça um texto radicalmente realista. Em O Sobrinho de Wittgenstein lemos: «Na verdade, amo tudo menos a natureza». E na «narrativa» O Italiano: «Nas minhas peças tudo é artificial». Wittgenstein, ele mesmo, escreveria por sua vez no Tratado Lógico-Filosófico (5.64): «O solipsismo, consequentemente prosseguido, coincide com o realismo puro». É deste realismo da tábua rasa literária (que espelha, sem mediação, o desencanto histórico do mundo do segundo pós-guerra) que fala também Adorno na Teoria Estética a propósito de Beckett, em muitos aspectos irmão mais velho de Bernhard, e mais radical ainda na redução ao absurdo dos mecanismos comunicacionais e do «sentido» da existência. Adorno explica: «No ponto zero a que chega a prosa de Beckett, à semelhança das forças do plano infinitamente pequeno da física, nasce um segundo mundo de imagens, tão desolado quanto rico, um concentrado de experiências históricas… O carácter sórdido e transtornado desse mundo de imagens é a transposição, o negativo, do mundo alienado. Neste sentido, Beckett [Bernhard] é um realista.» O realismo de Bernhard estará então na sua linguagem não literarizada, mas artificializada ao ponto de se tornar reconhecível, no seu estranhamento quase caricatural, como sendo a do mundo. Também o Tratado de Wittgenstein já vê a linguagem como espelho do mundo, um seu modelo. Um simulacro e um sucedâneo, portanto. E Bernhard: «Tudo o que se diz é citação» (em Caminhar). Ainda como Beckett, Thomas Bernhard leva à prática literária aquilo de que muitos falam e procuram «representar», mas poucos mostram no plano concreto dos signos e da frase (menos que todos os que escrevem, ainda, romances de teor «realista»). «O que se reflecte na linguagem, ela não o pode representar», e «Aquilo que se pode mostrar não se pode dizer» (Wittgenstein, Tratado, 4.121 e 4.1212).


O isolamento solipsista e a intervenção social radical (sempre por via da arte, não como manifestação «política»), expressos no registo monológico e no gesto hiperbólico da prosa de Bernhard, trazem a marca do absoluto e da radicalidade na sociedade dos compromissos e das concessões fáceis. E são fonte de grandes contradições (muitas vezes deliberadas) na obra deste espírito demolidor, do seu acabado niilismo e da sua encenada imperfeição. Mas é precisamente esse registo monologal, essa linguagem da obsessão alucinada, que salva a obra de Bernhard da queda no realismo banal e a torna inconfundível (e a muitas das suas personagens de romance e teatro, que, no entanto, quase sempre se afundam). Esse círculo interior da linguagem é o do despojamento, da redução e da redundância, em blocos encadeados que se fixam muitas vezes em «balões de linguagem hiperdimensionais», à semelhança da banda desenhada. A originalidade desta Obra estará então numa das suas contradições de fundo: a da obsessão da escrita como fracasso necessário. Há paralelos noutros autores do século XX, austríacos e não só (Ingeborg Bachmann ou Robert Walser, Kafka ou Pessoa). É a originalidade da «genial imperfeição» (a expressão é usada pelo narrador do romance Betão) de um autor que conseguiu fazer de uma fórmula a que desde cedo aderiu livros sempre iguais e sempre diferentes, optimizando o princípio da variação. É, no fundo, o caminho dos grandes autores, que desde sempre reflectiram sobre os paradoxos e as contradições de existências que não decidimos, e sobre os imprevisíveis mecanismos ou imperativos da própria escrita, por vezes nos limites do insustentável.

(no Jornal que acompanha o Ciclo Thomas Bernhard, iniciado ontem no CCB)
Na segunda-feira, 26 de Novembro, às 18 horas, na Sala de Leitura Jorge de Sena do CCB, apresento o romance de Bernhard acabado de sair em tradução portuguesa, Derrubar Árvores. Uma irritação. Trad. de José António Palma Caetano, Assírio & Alvim:

De Bernhard saíram em tradução portuguesa os seguintes livros, que o jornal do CCB anuncia (e mais dois: Betão, em tradução de Maria Olema Malheiro, nas Edições 70 em 1989; e O Fazedor de Teatro, com tradução de Idalina Aguiar de Melo, Aveiro, Livraria Estante Editora, 1987):
03 novembro, 2007
CRÓNICA DA CASA FUTURANTE
O plano do mundo à imagem das palavras
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(VIII)
A terrina cor-de-rosa
Ficou ali, do último jantar. Canja de galinha com miúdos. Um jantar comum naquela casa: a avaliar pela foto de família, umas oito pessoas à mesa.



Outras terão sido as mãos, mais rudes — e porventura mais felizes — da cozinheira que matou e depenou a galinha, a chamuscou e arranjou, separou miudezas e patas para a canja, fez o guisado ou a cabidela. Que dizem as mãos de uma cozinheira num lugar destes, há cinquenta anos? Falam de cores e cheiros e artes que se perdem no tempo. Gritam carências. Silenciam revoltas.
Como a terrina cor-de-rosa. Ficou ali em protesto, ostensivamente a marcar o seu território abandonado. Não tem já, como as suas irmãs das origens — mais genuínas, mas também mais vulneráveis —, corpo de terra (barro), mas é bela como as mais belas, na harmonia de pé, braços e bojo (busto), no brilho discreto e quase erótico da conjunção do branco quente da pele de dentro com o rosa velho, pálido, da capa de esmalte. É o centro resplandecente das ruínas. O seu destino está traçado: servirá de pátera no sacrifício ritual que um dia ditará o fim definitivo da casa futurante.
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01 novembro, 2007
ANIVERSÁRIO COM (A) POESIA
O «Escrito a Lápis» faz hoje um ano.
Acendo-lhe uma vela com um livro de poesia, o último que li, ontem, no comboio para Sintra e lá mesmo, sentado no rebordo de pedra de um gradeamento. É o livro de um poeta que escreve sabendo que a poesia não é importante, e em nada influi no estado do mundo. Esta é a poesia que é possível escrever ainda – possível e necessário, embora o poeta não o diga, nem precisa, porque faz muito mais, insistindo em mostrá-lo com mais este livro –, num tempo que lhe voltou costas e num lugar de onde ela emigrou para outras costas, as de lugares ditos mais atrasados, onde ainda alimenta ilusões e onde sobrevive com alguma pujança ingénua.
Ler poesia hoje, mesmo aquela em que a morte é o único interlocutor possível – e essa parece ser a única poesia provável, i.e. tragável e à prova de prova – é entrar num espaço acentrado e raro, quase feliz. A poesia, esta poesia, é para ler sentindo o equilíbrio instável de estar no mundo hoje e aqui – como eu, na trepidação do comboio ou sentado no rebordo estreito, de pernas estendidas e atrapalhando as pessoas que transitavam no passeio, elas quase tropeçando em mim, eu tropeçando nas palavras sóbrias de poemas de sobre-viver. Hoje, ler poesia, só em espaços sem GPS, onde nos sentimos «perdidos, e a gostar de nos perder». Bem no meio da «barbárie do bem-estar / e dos fossos da democracia». E sabendo que, num tempo cheio de certezas e num «país de restos de palavras», a poesia é cada vez mais aquilo que, com uma vénia inócua ou um sorriso indulgente, se deixa sempre para outro dia — as mais das vezes para nenhum.
Assim seja.
Afinal, «os poetas não passam de estátuas inúteis num jardim / concebido por bestas que nem sequer os leram» (leia-se: o Parque dos Poetas, na Oeiras de Isaltino, ou: o gigantesco lunaparque em que vivemos).
E agora, para abrilhantar a festa de aniversário com uma pirueta-no-real à altura da melhor poesia de sempre, leio o último poema do livro, intitulado
Acendo-lhe uma vela com um livro de poesia, o último que li, ontem, no comboio para Sintra e lá mesmo, sentado no rebordo de pedra de um gradeamento. É o livro de um poeta que escreve sabendo que a poesia não é importante, e em nada influi no estado do mundo. Esta é a poesia que é possível escrever ainda – possível e necessário, embora o poeta não o diga, nem precisa, porque faz muito mais, insistindo em mostrá-lo com mais este livro –, num tempo que lhe voltou costas e num lugar de onde ela emigrou para outras costas, as de lugares ditos mais atrasados, onde ainda alimenta ilusões e onde sobrevive com alguma pujança ingénua.
Ler poesia hoje, mesmo aquela em que a morte é o único interlocutor possível – e essa parece ser a única poesia provável, i.e. tragável e à prova de prova – é entrar num espaço acentrado e raro, quase feliz. A poesia, esta poesia, é para ler sentindo o equilíbrio instável de estar no mundo hoje e aqui – como eu, na trepidação do comboio ou sentado no rebordo estreito, de pernas estendidas e atrapalhando as pessoas que transitavam no passeio, elas quase tropeçando em mim, eu tropeçando nas palavras sóbrias de poemas de sobre-viver. Hoje, ler poesia, só em espaços sem GPS, onde nos sentimos «perdidos, e a gostar de nos perder». Bem no meio da «barbárie do bem-estar / e dos fossos da democracia». E sabendo que, num tempo cheio de certezas e num «país de restos de palavras», a poesia é cada vez mais aquilo que, com uma vénia inócua ou um sorriso indulgente, se deixa sempre para outro dia — as mais das vezes para nenhum.
Assim seja.
Afinal, «os poetas não passam de estátuas inúteis num jardim / concebido por bestas que nem sequer os leram» (leia-se: o Parque dos Poetas, na Oeiras de Isaltino, ou: o gigantesco lunaparque em que vivemos).
E agora, para abrilhantar a festa de aniversário com uma pirueta-no-real à altura da melhor poesia de sempre, leio o último poema do livro, intitulado
ERRATA
Onde se lê Deus deve ler-se morte.
Onde se lê poesia deve ler-se nada.
Onde se lê literatura deve ler-se o quê?
Onde se lê eu deve ler-se morte.
Onde se lê amor deve ler-se Inês.
Onde se lê gato deve ler-se Barnabé.
Onde se lê amizade deve ler-se amizade.
Onde se lê taberna deve ler-se salvação.
Onde se lê taberna deve ler-se perdição.
Onde se lê mundo deve ler-se tirem-me daqui.
Onde se lê Manuel de Freitas deve ser
com certeza um sítio muito triste.
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