05 outubro, 2007


OUVINDO A ESCRITA


Em 4 de Fevereiro de 2002, o PEN Clube iniciava uma nova série das sessões públicas sobre livros e autores, que intitulámos «Ouvindo a escrita», porque se tratava de sessões que eram também transmitidas pela Antena 2 da RDP. A coisa foi sol de pouca dura, mas dessa sessão retenho os comentários que fiz a dois livros de poesia saídos em 2001:














Joaquim Manuel Magalhães


Alta Noite em Alta Fraga
(Relógio d'Água)


Talvez o melhor modo de falar deste livro de JMM, um livro fortíssimo e sem contemplações, depois de oito anos sem publicar poesia, seja o de partir do lugar comum para destruir o lugar comum: o tão badalado «regresso ao real», afinal, pouco diz sobre a poesia de JMM. Hoje, muito menos do que há vinte anos, em Os Dias Pequenos Charcos. Porque esta sua poesia, mal lida durante estes vinte anos — diz o Autor neste livro, no grande poema de revisão de um percurso com o título «Arqueiro» —, não é a de nenhuma forma de realismo.
É antes, agora com uma intensidade mais violenta, quase mortal, a da transfiguração do real na dor do real, que retira a poesia do abraço de ensimesmamentos, de esteticismos de salão e dos jogos com «leitores hipócritas» que não de baudelaire (vd. o último poema, implacável visão deste país e deste tempo). A poesia deste livro parece
ser tão visceralmentre antipoética que o seu desejo mais fundo seria o de deixar de ser poesia. Mas os leitores deste grande livro de poesia, até os «hipócritas», nunca lhe irão conceder esse desejo.


Manuel Gusmão

Teatros do Tempo
(Caminho)

A primeira coisa que este novo livro de Manuel Gusmão nos parece dizer é que a sua poesia é um poema contínuo. Não no mesmo livro, mas de livro para livro. De facto, os temas e os topoi que alimentaram os dois livros anteriores (Dois Sóis a Rosa a Arquitectura do Mundo, 1990, e Mapas o Assombro a Sombra, de 1996) reaparecem aqui, e nem sequer de forma escondida: é de tempos, de mapas, de arquitecturas poéticas, do mundo e dos seus teatros que se fala neste livro. Teatros do Tempo elabora uma cartografia de tempos sobrepostos que evoca Mapas o Assombro…: a escrita regista, em palimpsesto, passados muito vivos que se reinscrevem sobre um presente apagado, e também tempos do Eu que acorrem ao apelo de tempos do Nós — «como se no tempo se pudesse outra vez fazer / o nascimento outro: os imemoriáveis da alegria» (p. 14).

Nestes teatros do tempo em que se é actor de acasos num tempo vivido como descontínuo, há lugar, na poesia de M. Gusmão, para os tempo da terra e da casa, entre equinócios e solstícios, entre o amor, os livros, a doença; e também para os tempos da História e do mundo. E, contra todas as expectativas, face ao estado do mundo, quando o poema faz convergir esses tempos, nasce nele a alegria. Na sua solidão radical, o poema não clama no deserto: o poema chama para que alguém acorra, e «o mundo não cessa de vir ao lugar do encontro» (p. 39). Podemos, assim, perceber melhor como a poesia de M. Gusmão, sem cedências na sua exigência de rigor construtivo, sem hesitações ao convocar toda uma vasta herança literária que dela faz uma poesia carregada de reenvios, faz nascer o júbilo do fundo de uma crença última, que pode vir de Hölderlin e passar por Broch, Wittgenstein ou Benjamin: a crença de que a coisa estética é indissociável de uma ética e mesmo de uma forma de conhecimento própria do poema. Só assim o poema se pode transformar, como acontece aqui, no lugar da vita nuova que traz «a promessa a esperança a alegria justa // a perfeição das coisas o mundo inacabado», como se lê no grande poema «Do corpo, as sílabas do fogo» (p. 38). Mas sem ilusões: o que poderiam ser as três Graças confundem-se, na larga sequência central do livro, com as três Parcas, e o poema, sendo a «promessa justa», nada pode garantir (p. 85). A não ser — o que não é pouco, e constitui todo um programa — servir de abrigo àquela «insustentável perfeição das coisas», como uma «ruína inacabada» a dominar a «devastadora beleza do mundo» (pp. 93-94).


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