05 outubro, 2007


O POEMA É UMA HIPÓTESE




Ainda a poesia a saltar de mais um caderno de 2002. Em 20 de Agosto desse ano fazia eu uma conferência na Universidade Federal Fluminense (em Niterói, no Brasil), a pedido de uma colega e amiga que me pedia que falasse de «Poesia e utopia». Preferi falar do poema, e não da poesia em abstracto, e chamei a essa palestra «O poema é uma hipótese». Parti de uma epígrafe que me foi fornecida por Maria Gabriela Llansol («Os poetas vêem, e anunciam a geografia imaterial por vir») e me dizia que o poema se limita a agir com as palavras, a ver e ouvir o mundo vivo (visível ou da imaginação).
Dessa intervenção escolhi a parte final, em que proponho uma série de «definições» possíveis do poema, que, naturalmente, pode ser tudo isso e muito mais.



O poema é o assombro (a «insídia do real») do peixe vermelho a mudar de cor diante dos meus olhos, no aquário de Herberto Helder («Teoria das cores»), para me mostrar que há apenas uma lei, a da metamorfose, «abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação»:

O poema é o corpo material das palavras, que possibilita o espanto de ver as coisas sempre pela primeira vez (o poema é o «Serdespanto», e não só no livro com esse título, do brasileiro Vicente Franz Cecim).

O poema é um estaleiro do inconsciente, o lugar por excelência do ça parle de Lacan e do isso de Freud, que os outros discursos, incluindo o da ficção, recalcam.

© J. B.

O poema é o que nasce no lugar do nada: e cada coisa que nasce, que é gerada — um ser, um afecto, uma ideia — é uma promessa e uma utopia.

O poema é revelação e celebração, «mesmo no âmago das festas do abismo e do nada» (diz o argentino Roberto Juarroz).

O poema é a descoberta aterradora, porta de entrada para o reino das Mães, aquele momento que nos diz, como no poema de Rilke «Torso arcaico de Apolo», ou em Maria Gabriela Llansol, que temos de mudar de vida (Rilke: «Tudo nele vê, te está a olhar: / Tens de dar novo rumo à tua vida»).

© J. B.

— O poema é o prisma através do qual é possível «ver o mundo num grão de areia» (Blake), perceber no objecto mais familiar um enigma perturbador (Novalis chama a isso «romantizar o mundo»), unir o que nunca esteve unido, para descobrir mundos novos, ou, quem sabe, fundar uma «nova mitologia» do real, sob a égide da nova física e da filosofia dos afectos e da imaginação, de Spinoza, como no programa romântico de Friedrich Schlegel.

— O poema é o resultado da associação do acaso com um saber-outro.

O poema é uma dádiva proteica, o resultado de um peditório que o poeta vai fazendo pelas esquinas do real, apanhando «o que os dias vão deixando cair» (Rolf Dieter Brinkmann).

© Nuno Cera

O poema é a exposição, ingénua ou quase obscena, do Eu (cantigas de amigo, sonetos de Florbela), ou a destituição da subjectividade em favor do discurso, num gesto cujo emblema é o sacrifício de Empédocles (já em Hölderlin, poeta grego-moderno em tempo de Romantismos).

O poema é a projecção verbal do desejo puro, nas suas versões amorosa ou metafísica (outras não há, na nossa tradição), um Ersatz, portanto, algo que ocupa o lugar de uma perda (do outro ou da sua imagem ideal) ou de uma ausência (de Deus). O poema enquanto utopia preenche o vazio gerado por essa dupla perda: do outro e de Deus.

© Nuno Cera

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