19 outubro, 2007

EXPERIÊNCIA
ou

TRAVESSIA DE RISCO


Interrompo a «Crónica da casa futurante» (que terá continuidade), para reproduzir uma simples trroca de mails com um amigo brasileiro, psiquiatra e actualmente envolvido numa tese de doutoramento sobre a escrita autobiográfica de Freud.
O exemplo mostra que as solicitações nos levam muitas vezes a mergulhar em matérias que de outro modo talvez ficassem enterradas ou menos esclarecidas para nós próprios. E mostra também, como o célebre e longo poema de Brecht «Lenda da origem do Livro Taoteking quando Laotsé ia a caminho da emigração» Tradução de Paulo Quintela em B. Brecht, Poemas e Canções. Coimbra, Almedina, 1975), que percebemos melhor quem somos ao responder a quem nos chama. M. G. Llansol dirá também: «Quem me chama?» é a pergunta do homem livre. É pelo outro — que pode ser alguém, qualquer ser, o mundo — que melhor me posso conhecer.

© Anabela Mendes

E agora os dois mails:

A pergunta:

Oi João,

estou te escrevendo para fazer uma consultinha, que espero não te aborreça, nem te ocupe mais que alguns minutinhos, com o que você já tem na cabeça, de sua própria experiência. É exatamente sobre a questão da «experiência em si». Estou pesquisando este termo, e nos dicionários de filosofia a coisa é bastante ampla, mas não valoriza a conotação que mais me interessa que é exatamente a da etimologia, e que encontro em vosso texto sobre «Amigo e Amiga»: uma travessia de risco.
Dos termos alemães, há algum mais específico (encontro Erfahrung, Erlebnis, Versuch, Empfindung...), semanticamente mais próximo dessa idéia do risco, perigo, e também de algo que se vivencia, que é transitório, que passa, que acaba, etc.? Não sei se na filosofia encontraria algo interessante.
É notável como a palavra é super-utilizada, a experiência é sempre de alguma coisa, ou sempre adjetivada, etc., mas, do que se trata, em si..., isso é difícil de encontrar. Você não acha?
Bem, talvez os usos que a língua alemã faz disso possam me interessar. Particularmente pq é a experiência freudiana, como única, inaugural, invenção de algo novo...

Grande abraço
Mauro

A resposta:

De facto eu referi a experiência como travessia de risco, porque pensei nas duas etimologias, a latina e a alemã. O verbo latino para «passar por uma experiência», «experimentar» é ex-perior / ex-periri (forma de acusativo, para experiência de alguma coisa), e significa fazer um percurso arriscado, isto é que implica submissão a uma prova.
O alemão tem a palavra Erfahrung: decomposta dá Er- (partícula que tem muitas vezes o sentido de: vindo de um lugar e atravessando espaço, que vai através de, aparentada à partícula Ur-, que quer dizer «das origens») e -fahrung (o que dá o verbo: er-fahren). Fahren é andar, viajar, atravessar. E erfahren (fazer uma experiência, passar por uma experiência) tem a mesma componente semântica de Gefahr (perigo, risco!). Er-fahrung e Ge-fahr associam-se. A partícula Er- dá o sentido de travessia, a partícula Ge- tem sentido passivo, de qualquer coisa que sofremos ou se abate sobre nós.
Foi partindo destas afinidades etimológicas que cheguei à ideia de experiência como travessia de risco. Que também é sugerida por alguns filósofos, por exemplo Heidegger.
Os outros termos alemães têm todos sentidos diferentes:
Erlebnis: vivência, aquilo que se vive.
Versuch: experimentação, experiência científica, tentativa.
Empfindung: sensação, experiência sensorial
E há ainda Ereignis: acontecimento, ou seja aquilo que surge de uma origem (Er- / Ur-) e se apresenta com marca muito própria (eigen), quase como uma «revelação».
Bom, espero que a Erfahrung esteja um pouco mais esclarecida.

jb

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